sábado, 5 de setembro de 2009

Corte-e-costura e ainda a Encíclica “Caritas in veritate” (VI)

Carlos Nougué
Como vimos, para que pudéssemos tratar do que diz o magistério infalível da Igreja com respeito às relações entre poder eclesiástico e poder civil, era preciso antes resolver com Santo Tomás um preâmbulo, ou seja, responder às seguintes perguntas: Convém aos entes ter um fim último? Se sim, é possível um mesmo ente ter dois fins últimos? Se não, qual o único fim último do homem e qual o caráter de seus demais fins? Terminemos, pois, nesta parte, de resolvê-lo, para seguir mostrando, solidamente, a péssima arte liberal de recortar doutrinas alheias em favor de suas teses; e também para mostrar que, assim como “não se pode usar a linguagem moderna sem cair no poço [subjetivista e relativista] do pensamento moderno” (P. Calderón, A Candeia Debaixo do Alqueire, p, 181), assim também não se pode comungar com nenhum princípio do liberalismo sem cair no abismo desta que é a ideologia anticristã por antonomásia.*

Continuemos, pois, com a referida resposta do Aquinate.

5) Cabe agora, portanto, responder a “utrum unius hominis possint esse plures ultimi fines” (se para um homem pode haver muitos fins últimos). E parece que sim, porque, com efeito, é possível a vontade de um homem querer, simultaneamente, como a últimos fins, duas coisas ou mais. Sucede porém que, ao contrário do que se objeta, pelo menos três argumentos mostram ser tal impossível. Diga-se pois em primeiro lugar que, em razão de todos desejarem sua própria perfeição, cada um só pode desejar por fim último aquilo que ele considere o bem não só perfeito, mas capaz de aperfeiçoá-lo cabalmente; ou antes, capaz de atender tão perfeitamente aos desejos do homem, que fora dele não reste nada de desejável. Ora, exatamente por sua perfeição e sua capacidade de aperfeiçoar o homem e de atender plenamente seus desejos é que tal bem ou fim último não requer nada fora dele para aperfeiçoá-lo. Logo, é impossível ao apetite desejar dois bens ou fins enquanto perfeitos. Diga-se pois em segundo lugar que, assim como no processo da razão o que é princípio é naturalmente conhecido, assim também no processo do apetite racional ou vontade é princípio aquilo que é naturalmente desejado. Ora, o que naturalmente se apetece ou deseja não pode senão ser único, porque, em razão de toda e qualquer natureza tender inexoravelmente a uma só coisa, ou seja, à unidade de seu princípio formal, o princípio do apetite racional ou vontade não pode ser senão o próprio fim último. Logo, é necessário que seja único aquilo que a vontade busca enquanto fim último. E diga-se em terceiro lugar que, devido ao fato de as ações humanas receberem sua espécie do fim, é necessário que igualmente recebam seu gênero do fim último comum, tal como se dá nos entes naturais, que têm seu gênero de uma razão formal comum. Ora, enquanto tais, todas as coisas apetecíveis pela vontade estão num mesmo gênero. Logo, porque em cada gênero há um só primeiro princípio, e, como se viu, porque o fim último tem caráter de primeiro principio, o fim último igualmente não pode deixar de ser único. Assim, a relação entre o último fim do homem e o conjunto do gênero humano é a mesma do fim último de um homem singular e o de qualquer outro homem singular. Por isso, assim como a totalidade dos homens tende a um único fim último, assim também a vontade de cada homem se ordena a um só fim último.

6) Se assim é, indague-se agora “utrum homo omnia quae vult, velit propter ultimum finem” (se tudo quanto o homem deseja, o deseja em vista do fim último). E parece que não. Sucede porém que por duas razões o homem é levado, necessariamente, a desejar em ordem ao fim último tudo quanto deseja. Antes de tudo, tudo quanto o homem deseja, o deseja enquanto tem razão de bem. Se, todavia, este bem desejado não for o bem perfeito e, pois, o fim último, ele o terá de desejar necessariamente enquanto tendente ao bem perfeito: porque, com efeito, a incoação ou começo de algo, seja este algo natural ou artificial, sempre se ordena a seu aperfeiçoamento ou consumação. Logo, o começo de toda e qualquer perfeição não pode senão ordenar-se à perfeição total ou completa, que só pode encontrar-se no fim último. Além disso, porém, deve-se dizer que o fim último, enquanto move o apetite, está para o movimento deste assim como o primeiro motor está para os demais movimentos. Ora, como se sabe, as causas segundas não movem senão na medida em que são movidas exatamente pelo primeiro motor. As coisas desejadas segundamente, por conseguinte, só podem mover o apetite em ordem ao último fim, que, como visto, é o desejado primeiramente; e por isso mesmo todos os bens que não sejam o bem apetecido primeiramente enquanto fim último não podem ser com relação a este senão meios ou fins intermediários. (É esta conclusão, por sinal, o que nos norteia em tantos artigos escritos para este blog, como, por exemplo, os referentes à música e o belo.)

7) Por isso, não se pode deixar de insistir e perguntar “utrum sit unus ultimus finis omnium hominum” (se há um só fim último para todos os homens). E parece que não. Sucede, porém, que se pode considerar o fim último por dois ângulos. Pelo primeiro, quer dizer, quanto à razão de último fim ou de perfeição, todos os homens necessariamente o apetecem, porque, como vimos, todos apetecem sua própria perfeição. Mas pelo segundo, quer dizer, quanto àquilo em que se encontra tal razão de fim último ou de perfeição, divergem os homens. Sim, porque uns apetecem, como a fim último ou bem perfeito, a fama; outros, o poder político; outros, as riquezas; outros, ainda, os prazeres do sexo ou da comida; etc., etc., etc.; do mesmo modo como a música é agradável a todos, mas uns preferem a música de um compositor, outros a de outro, etc. Deve-se dizer, porém, que a música melhor ou efetivamente mais agradável é aquela que satisfaz o gosto da pessoa mais refinada ou que mais refinadamente saiba apreciar a música. Logo, o bem mais perfeito e desejado enquanto fim último será aquele apetecido por quem tiver o afeto mais bem ordenado ou disposto.

8) Visto todo o anterior, pergunte-se por fim “utrum in illo ultimo fine aliae creaturae conveniant” (se as demais criaturas convêm nesse último fim). E parece que sim. Sucede, porém, que também se pode falar do fim segundo se trate da própria coisa em que se encontra o bem ou segundo se trate de sua consecução ou fruição. Assim, o fim de quem tem ambição política é, pelo ângulo da própria coisa apetecida, o poder; mas, pelo outro ângulo, é seu atingimento ou usufruto. Ora, se se trata do fim último do homem enquanto é a coisa mesma que é fim, então todas as demais criaturas convêm com ele: porque, com efeito, é Deus mesmo o fim último não só do homem, mas de todos os entes, visíveis como invisíveis. Se todavia se trata do último fim do homem enquanto consecução ou fruição deste fim, então é patente que as criaturas irracionais não têm em comum com o homem o fim último deste, porque o homem, como as outras criaturas racionais, atinge seu último fim conhecendo intelectivamente e amando este mesmo fim último, que é Deus, enquanto as criaturas irracionais não o podem conhecer intelectivamente nem amar. E isso é assim porque os entes irracionais não atingem o fim último do universo senão por participação de alguma semelhança de seu Criador: seja porque são, porque vivem, ou ainda porque podem conhecer (ao modo sensível e estimativo).

Podemos agora, portanto, passar com segurança ao próximo ponto de nosso plano: como trata o magistério infalível as relações entre a Igreja e cidade?

(Continua.)


* Não raro, quando lemos uma obra capital e exigente como A Candeia Debaixo do Alqueire, do P. Álvaro Calderón, deixamos de gravar na memória passagens suas não-centrais. Mas relembro agora, desse mesmo livro, uma que se encontra na resposta à segunda objeção do Artigo Terceiro (p. 181), e que põe a nu o liberalismo também pelo lado cultural: “A revolução anticristã não podia deixar de ser, ao mesmo tempo, uma revolução anticultural, que guilhotinasse as universidades católicas fazendo-as perder a teologia como cabeça das ciências e das artes. Removida a teologia, morre primeiro a metafísica, e as demais se atrofiam como os órgãos de um corpo em decomposição. Falar em ‘cultura moderna’ é um contra-senso, porque a modernidade é um processo de desculturação [...].” Tampouco pois no terreno da cultura pode um católico dar, nem minimamente, sua adesão ao mundo liberal em que nos coube viver. Ao contrário, em e de nossas catacumbas contraponhamos à anticultura moderna uma cultura que, por se ordenar intencional e essencialmente ao Fim Último do homem e de todo o universo, seja a verdadeira cultura.