terça-feira, 22 de setembro de 2009

Curso de História da Filosofia: do impulso grego ao abismo moderno (I)

Carlos Nougué
Para que se entenda adequadamente o que é a história da filosofia, deve-se antes de tudo saber o que é a história e o que é a filosofia. Por essa razão, a primeira aula do Curso de História da Filosofia que daremos via Internet versará exatamente sobre tal preâmbulo. Mas resumamos já aqui suas demonstrações e conclusões, para depois podermos mostrar o efetivo caráter, escopo e funcionamento do curso.

I) QUE É A HISTÓRIA?

1) A importância da história

Por dois ângulos principais se pode demonstrar a importância do estudo e ensino da história.

● Do ângulo pessoal, é — como já se disse — no colo da mãe que começa para cada um de nós o ensino da história: uma narração impressionante, ou tocante, de um episódio qualquer da história pátria ou mesmo familiar nos insere, já em tenra idade e ao modo de elo, na grande e complexa cadeia da humanidade. Cada um de nós logo se descobre parte de um todo, de um fio temporal que se vem estendendo, sem solução de continuidade, desde a origem do homem. E o robustecimento dessa mesma descoberta, por sua vez, também não sofre interrupção; muito pelo contrário, ganha alicerces cada vez mais firmes ao longo dos anos. Todos, inexoravelmente, terão a imaginação tingida de certo colorido histórico, e terão preenchida a memória de fatos mais ou menos marcantes da história de seu povo, de seus país, do mundo inteiro.

● Do ponto de vista social, a espécie humana, assim como o indivíduo humano, não pode de modo algum prescindir da memória, e memória de si mesma. Sem ela a humanidade, que está imersa na sucessão do tempo, se veria reduzida a perpétuo estado de ressurgimento, não renascendo incessantemente senão para tornar a cair no nada — o que é absurdo. Como poderia haver a filosofia, as artes, as tábuas das leis, as instituições políticas, a própria religião, ou seja, toda a trama do tecido social, sem tal memória? Neste sentido, a história é tradição.

Note-se, porém, que o mero conhecimento dos fatos históricos e suas conexões imediatas não é suficiente para compreender suas causas mais profundas. Ora, tais causas, como veremos, não podem ser descobertas senão por ciências superiores à história, a saber, a teologia e a filosofia; e neste sentido aquela se ordena instrumentalmente a estas (assim como o histórico A Constituição de Atenas, de Aristóteles, se ordena a seus Políticos), e tem de ter pressupostos os princípios e conclusões destas. Com efeito, se a história é, como já se disse, um reservatório de onde saem numerosos canais destinados a regar e fecundar a inteligência das novas gerações segundo o conhecimento do passado; logo, se o reservatório estiver envenenado de falsa teologia ou filosofia, tais canais não verterão senão veneno nas almas.

2) A história enquanto realidade

A história não é um mero seguir-se de impérios e dinastias, batalhas e conflagrações, reis e capitães, partidos e federações. Pela mesma razão, tampouco é um mero desdobrar-se do direito e das instituições políticas ou das ciências e das artes, nem, muito menos, o da indústria e do comércio. No entanto, ela não deixa de abarcar, como globalidade, aquele seguir-se e este desdobrar-se: a história é, nesta primeira aproximação, a presença sucessiva da humanidade na terra.

Mas as diversas histórias ou movimentos particulares da humanidade — o jurídico, o político, o científico, o artístico, o militar, o econômico — são como que coordenados, ordenados, capitaneados por seu movimento geral. E, se aquelas histórias particulares dependem da sua relação com este movimento ou história geral, é porque esta estabelece um vínculo ou laço entre os povos de todos os tempos. Ora, este grande laço não une os povos entre si senão com a condição de ligá-los a um mesmo princípio e a um mesmo fim; e o que religa o mundo ao seu princípio e ao seu fim chama-se religião — a verdadeira Religião —, razão por que a história religiosa é a alma e a unidade da história do mundo.

Com efeito, a história religiosa, ao descrever o arco que vai daquele princípio àquele fim, influi tão decisivamente sobre os movimentos históricos parciais de todos os tempos e de todos os espaços, determina-lhes tão absolutamente o resultado, que é o grau mesmo em que as diversas sociedades e civilizações resistem a seu impulso ou o aceitam o que as caracteriza essencialmente. Não poderia ser de outro modo: este laço geral é propriamente divino, e a história só é uma marcha global na medida em que é a história da humanidade sob o governo de Deus.

3) A história enquanto ciência

As demonstrações e conclusões de toda e qualquer ciência decorrem de certos princípios. “Se os princípios forem verdadeiros”, diz o Padre Calderón em A Candeia Debaixo do Alqueire (p. 280), “e as demonstrações corretas, também as conclusões serão verdadeiras. [...] Fazer silogismos corretos é relativamente fácil, e é notável quão bem o fazem muitos loucos de pedra. O difícil é conhecer a verdade dos princípios com suficiente certeza [...].”

Tais princípios podem ser alcançados basicamente de dois modos:

por reconhecimento, à luz natural do intelecto, de sua verdade intrínseca, como nas ciências perfeitas (a filosofia, a aritmética, a geometria, etc.);

por fé no testemunho de outros, como nas ciências imperfeitas, ou seja, aquelas entre as quais se incluem tanto a teologia como a história.

Há porém grave diferença entre as ciências imperfeitas, segundo se trate de assentimento de fé correspondente à credibilidade ou à autoridade.

> A fé dada por motivos de autoridade é própria daquele que se ocupa das ciências subalternas, cujos princípios só são evidentes à luz de uma ciência superior. Ora, aquele que recebe tal luz recebe-a precisamente da autoridade possuidora desta ciência. Assim, por exemplo, são ciências subalternas a música, cujos princípios derivam da aritmética; a perspectiva, cujos princípios decorrem da geometria; e a teologia, cujos princípios advêm da ciência de Deus e dos bem-aventurados (sendo neste caso tão alta e infalivelmente única a autoridade, que a teologia pode ordenar instrumentalmente a si até a própria filosofia; torna-se esta, assim, como dizia Santo Tomás de Aquino, serva da teologia).

> A fé dada por razões de credibilidade é própria, por exemplo, da ciência do magistrado ou da do historiador, que julgam a veracidade dos testemunhos e só assentem quando há convergência razoável de vários deles. Ora, enquanto as ciências cuja fé se dá por motivos de autoridade são imperfeitas por parte delas mesmas, as ciências cuja fé corresponde a razões de credibilidade são imperfeitas por parte do objeto, do qual elas não têm nenhuma experiência direta.

Observação: Se, como vimos, a história tem de ter pressupostos os princípios e conclusões da teologia e da filosofia, isso não quer dizer que enquanto ciência proceda daqueles princípios. Quer dizer apenas que deve cingir-se aos limites dados por eles, e não raro valer-se deles. Como ciência humilíssima que é, a história procede dos testemunhos dados pelas crônicas, anais e documentos deixados pelos homens ao longo dos séculos. Não obstante, assim como o físico se embaraça em hipóteses incertíssimas se não crê no dogma da Criação do mundo; assim como, sem a noção do pecado original e da Graça, qualquer psicólogo se vê efetivamente impossibilitado de curar distúrbios da alma; assim também, mutatis mutandis, o historiador que não crê na Lei Eterna nem na Divina Providência tenderá a criar sistemas utópicos ou quiméricos, antinaturais e antidivinos, como o fizeram Schelling, Cousin, Thierry, Guizot, Saint-Simon, Fourier, Proudhon, Hegel, Comte, Marx e Engels e tantos outros. Efetivamente, como o diz o Padre Calderón, “um intelectual católico não pode declarar-se alheio ao saber teológico” e “uma Universidade sem Faculdade de Teologia é um corpo sem alma”.

II) QUE É A FILOSOFIA?

1) O conteúdo, o modo de operar e o escopo da filosofia

● O conteúdo da filosofia é tudo aquilo que se pode explicar pela razão natural. Incluem-se nisso tanto o conjunto das coisas visíveis e invisíveis quanto o seu princípio ou causa primeira — enquanto, insista-se, acessíveis à luz natural do intelecto humano.

● O modo de operar da filosofia é justamente o da razão natural humana, mas pelo seu lado mais eminentemente especulativo. Por esse motivo, não basta à filosofia um coletar de testemunhos ou de dados nem as provas de certas experiências: para todos os fatos, dados e experiências, busca a filosofia não só suas causas, mas a sua causa; não só seus princípios, mas o seu princípio.

● Pode-se aceitar o modo como Aristóteles define o escopo da filosofia? Em parte, sim. Com efeito, “os homens começaram a filosofar [...] por causa da admiração [...]. Ora, quem experimenta uma sensação de dúvida e de maravilhamento reconhece que não sabe [...]. Assim, se os homens filosofaram para libertar-se da ignorância, é evidente que buscaram o conhecimento com a mera finalidade de saber e não para alcançar nenhuma utilidade prática” (Metafísica A, 2, 982 b 11-28). Todavia, em parte não:

> Em primeiro lugar, porque, embora em certo sentido a filosofia fosse, no período clássico (ou seja, o greco-romano), a única ciência que era “fim para si mesma” (idem), com o Cristianismo passou a ordenar-se à teologia ao modo de instrumento. E convenientemente, porque, como diz Santo Tomás de Aquino, a teologia “com respeito a algo é especulativa, e com respeito a algo é prática”, e “está acima de todas as demais ciências tanto especulativas como práticas. Entre as ciências especulativas, diz-se que uma é mais excelente que outra segundo a certeza que contém, ou segundo a dignidade da matéria de que trata. Em ambos os aspectos, a doutrina sagrada está acima das outras ciências especulativas. Segundo a certeza, porque a certeza das outras ciências procede da luz natural da razão humana, que pode enganar-se; enquanto a certeza [da teologia] provém da luz da ciência divina, que não pode falhar. Segundo a dignidade da matéria, porque a doutrina sagrada trata principalmente de algo que por sua altura transcende a razão: as outras ciências só consideram o que está sujeito à razão” (Suma Teológica, I, q. 1, a. 5, corpus).

> Em segundo lugar, porque já na filosofia clássica uma parte dela — o conjunto de ética e política, que trata “das coisas humanas” — não era puramente apodíctica, mas versava sobre coisas que nem sempre são idênticas e “podem ser de outra maneira” (endechómenon allos échein). É verdade que esta parte não se confundia com a poíesis nem com a prudência, nem se reduzia a ciência prática. Com efeito, se Aristóteles escreve seus Políticos tendo em mente o fim prático de dotar Atenas da melhor constituição, ele porém faz esse fim depender do estudo especulativo da natureza política do homem, do caráter da pólis, dos diversos tipos de regime político, etc.; e este estudo é levado a efeito precisamente pela parte ético-política da filosofia. Mas o fato é que para o próprio Estagirita o propósito cognoscitivo da filosofia “das coisas humanas” tem um fim que vai além do mero conhecimento (“O presente tratado não é [só] teórico como os outros”, porque também “temos de considerar o relativo às ações, como devemos realizá-las”, diz Aristóteles em Ética Nicomaquéia, II, 2, 1103b 26 ss).

> Em terceiro lugar, porque, além de que enquanto ciência especulativa se ordena instrumentalmente à teologia enquanto ciência teórica, a filosofia, enquanto ciência prática, tem um fim que se ordena essencialmente ao fim da teologia enquanto ciência também prática. Com efeito, “entre as ciências práticas, a mais excelente é a que se ordena a um fim mais alto, como sucede com a política com relação à arte militar, pois o bem do exército se ordena ao bem da cidade. Ora, o fim desta doutrina [a teológica], enquanto prática, é a bem-aventurança eterna, à qual se ordenam todos os outros fins das ciências práticas” (Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q. 1, a. 5, corpus).
Observação: Diga-se ainda que, nas ciências das coisas humanas, é impossível ao cientista uma neutralidade “axiológica” como a sonhada por Max Weber, pelo simples motivo de que o sujeito dessas ciências faz parte do objeto delas: não só enquanto homem, mas também enquanto cientista.

III) QUE É A HISTÓRIA DA FILOSOFIA?

1) Por tudo quanto vimos até aqui, a história da filosofia compartilha ou deve compartilhar:

Com as demais histórias, tanto as particulares quanto as gerais:
> o servir de memória coletiva;
> o servir instrumentalmente à teologia e à filosofia.

Com as ciências de fé devida a motivos de autoridade:
> o julgar a veracidade dos testemunhos e só assentir quando há convergência razoável de vários deles;
> o ser imperfeita por parte do objeto, do qual não tem experiência direta.

● Com todas as ciências, excluídas a teologia e a filosofia:
> o cingir-se aos princípios e conclusões destas ciências superiores;
> o valer-se muitas vezes deles.

2) Ademais, como é história justamente da filosofia, e como esta se ordena instrumental e eminentemente à teologia, deve a história da filosofia:

● ser serva de serva, instrumento de instrumento;
● ter por eixo a filosofia que se ordena máxima e propriamente à teologia, e tal filosofia não pode ser senão a filosofia católica, que, por sua vez, instrumentalizou o que de melhor produziu a filosofia pagã.

3) Ademais, como a teologia a que se ordena a filosofia católica não é senão a teologia católica, por isso mesmo a história da filosofia que se ordena a ambas deve:

● cingir-se aos limites dados pela Revelação e pelo magistério da Igreja;
● ter por centro radical de referência a teologia e filosofia consagradas pelo magistério como a comum e própria de toda a Igreja: a de Santo Tomás, que, erigindo sua doutrina sob a luz e sobre os alicerces da Revelação, instrumentalizou a melhor e mais realista das filosofias do paganismo, a aristotélica, sem deixar porém de assimilar tudo quanto havia de são no platonismo (como a tese da participação, com que o Angélico coroará sua filosofia do ente e do ser) e outras.

IV) COMO NÃO DEVE SER UM CURSO DE HISTÓRIA DA FILOSOFIA

● Não se deve confundir aquela instrumentalização e assimilação de filosofias pagãs por Santo Tomás com a tese, liberal-modernista, de que o Catolicismo pode batizar todo e qualquer sistema filosófico. Não o pode: porque, assim como não era qualquer cultura que podia ser batizada pelo Cristianismo, mas tão-somente a greco-romana; assim também não é qualquer filosofia que é carne apta para a infusão da alma cristã, mas tão-somente a clássica greco-romana. Tanto quanto a cultura asteca, não se podem batizar as filosofias que se sucedem no abismo referido no título desta Apresentação.

● Com efeito, assim como a filosofia pagã greco-romana como que ansiava a solução que Santo Tomás daria a suas aporias, assim também a má filosofia que nasce na própria Idade Média apontará, como uma causa a seu efeito, para a progressiva ruína da inteligência. Veja-se, sumariamente aqui, a impressionante seqüência dessa ruína, atentando para o seu íntimo vínculo, que não é senão o subjetivismo gnosiológico:

> Duns Scot (1270-1308) e seu superdimensionamento da vontade em detrimento do intelecto;
> Guilherme de Ockham (1300-1349) e sua descrença nominalista na existência dos universais e, portanto, numa das funções precípuas da inteligência;
> Descartes (1596-1650) e seu pensamento que funda até o próprio ser pensante, mas do qual pensamento, e, logo, do próprio ser pensante que ele funda, se há de duvidar sempre e metodicamente;
> Berkeley (1685-1753) e seu idealismo empírico-espiritualista, segundo o qual apenas as almas humanas e Deus possuem existência plena e permanente, enquanto os objetos materiais do mundo só adquirem existência quando percebidos por um espírito mediante a intervenção divina;
> Hume (1711-1776) e seu cepticismo crítico, que nega a possibilidade de a inteligência humana conceber verdadeiramente qualquer forma de causalidade;
> Kant (1724-1804) e sua incognoscibilidade da coisa-em-si, ou seja, do real, para a nossa inteligência, tudo revestido de raso pietismo;
> Hegel (1770-1831) e sua dialética, que não é senão outro nome de uma negação do princípio da não-contradição;
> e toda a vertiginosa sucessão de niilismo, irracionalismo e abismo que caracteriza o tempo dos Wittgensteins, Sartres e Deleuzes.

● Note-se que toda essa sucessão brota de uma raiz comum: a negação da filosofia do ente e do ser, a negação da doutrina tomista. Por isso, se algum filósofo ou professor de filosofia afirma que sua visão da história da filosofia não é tomista, mas tampouco se vincula a nenhuma outra doutrina em especial, fundando-se ou num ecletismo historicista, ou numa filosofia própria, está-se diante de uma de quatro possibilidades:

> ou de um profundo primarismo;
> ou de um mais ou menos dissimulado antitomismo;
> ou de uma imensa soberba intelectual, que ao fim e ao cabo não poderá deixar de ser antitomista: com efeito, desde Santo Tomás não se pode ser senão seguidor do tomismo, e negar-se a sê-lo não passa de soberba, assim como foi a soberba o que levou àquela seqüência que começa com Duns Scot e chega aos tristes dias de hoje;
> ou, o que é mais provável, de uma mescla das três possibilidades anteriores.

● Com efeito, o tomismo, em sua perfeita docilidade à ciência divina e em seu pleno uso da razão natural enquanto informada por aquela, é o ápice da inteligência humana. Se assim é, nenhuma sã história da filosofia pode girar senão em torno do tomismo; e o peso dado, nela, a cada doutrina filosófica há de ser maior ou menor segundo tenda mais ou menos ao tomismo ou segundo mais ou menos se afaste dele. Dar o mesmo peso a Platão e ao estoicismo, a Aristóteles e a Epicuro, a Santo Agostinho e a Duns Scot ou a Kant desfigura a realidade histórica da filosofia — e é um modo de não reconhecer sua estreitíssima vinculação ao desenho geral da história, que, como vimos, só é uma marcha global na medida em que é a história da humanidade sob o governo de Deus.

(Continua amanhã com os dados concretos do nosso Curso de História da Filosofia.)
ADENDO DO SIDNEY: A ementa deste curso que se dará pela internet aponta para algo simplesmente I-NÉ-DI-TO em termos de ensino de filosofia entre nós. Muito superior a enfoques ecléticos liberais que, embora possam trazer alguma erudição, não fazem desta algo ordenado a fins superiores, mas apenas infundem na alma dos ouvintes uma mescla de dados estanques que, ao fim e ao cabo, trazem mais confusão do que qualquer outra coisa. E mais: não predispõem a alma para a recepção da verdade superior que Deus preparou para os homens, com a Revelação. Pois o ensino ou serve para aproximar-nos de Deus ou servirá para lançar-nos, paulatinamente, no abismo moral e espiritual.