terça-feira, 2 de setembro de 2008

Pré-categorias elementares

Sidney Silveira
Em sua instigante Filosofia Concreta, que possui alguns capítulos literalmente idênticos aos do livro Tratactus de Primo Principio, de Duns Scot (obra esta já traduzida para a Sétimo Selo, e que aguarda para ser editada com uma apresentação crítica), Mario Ferreira dos Santos nos diz que a analogia é a “síntese da semelhança e da diferença”. Ou seja: quando se usa um termo de forma análoga, está-se no ato demarcando uma semelhança e uma diferença entre as palavras e os conceitos mentais a que elas se referem. Semelhança imperfeita, acrescentemos, pois não chega a ser igualdade nem identidade. [Já falamos noutra ocasião das distinções metafísicas básicas entre “idêntico”, “semelhante” e “igual”.]

O fato é que as predicações equívoca, unívoca e análoga são pré-categorias fundamentais, ou seja: verdadeiras precondições para a classificação das coisas por nossa inteligência discursiva, e, portanto, para o próprio múnus da filosofia, se esta porventura pretende distinguir-se da opinião do vulgo, do diletante ou ainda do esteta (a propósito, peçamos a Deus que nos livre da presença entre nós do esteta metido a filósofo ou ensaísta, pois ele é altamente daninho, para si mesmo e para quem lhe dá trela). Assim, quem pula essas noções elementares, mas nem por isso fáceis — que o diga o nosso Padre Penido em seu Le rôle de l’analogie en théologie dogmatique, um tratado infelizmente tão pouco conhecido e estudado entre nós —, jamais crescerá no estudo sério da filosofia, pois fará uso das palavras e conceitos sem o necessário conhecimento técnico para o seu manejo filosófico. No final das contas, tal sujeito terá para com as palavras uma relação, no melhor dos casos, epidérmica, para não dizer esquizofrênica.

Não se trata de expor amiúde, neste espaço, todos os casos em que se dá a predicação por analogia, cujo conhecimento é uma chave extraordinária para a resolução dos principais problemas gnosiológicos. Preferimos, por ora, indicar o estudo introdutório — mas denso — do Prof. Jesús García López, intitulado La analogía em general, no seguinte endereço eletrônico:

http://dspace.unav.es/dspace/bitstream/10171/1882/1/05.%20Jes%C3%BAs%20GARC%C3%8DA%20L%C3%93PEZ,%20La%20analog%C3%ADa%20en%20general.pdf

Nesse texto, vemos muito bem explicados os principais casos de uso de termos de forma análoga, de acordo com a doutrina de Santo Tomás. Indicamos firmemente a sua leitura!

Com o domínio das pré-categorias da analogia, da equivocidade e da univocidade, adquirimos um antídoto contra a sedução por pessoas que escrevem com notável loquacidade sobre quaisquer assuntos (arte, política, religião, etc.), com grande talento retórico mas pouca ou nenhuma profundidade conceitual, usando e abusando da equivocidade, por ignorância ou, em alguns casos mais dramáticos, por uma muito mal-disfarçada malícia.

Portanto, aos amigos que nos têm honrado com a sua visita cotidiana ao blog, peço: leiam o escrito do Prof. Jesús García López, disponível no link acima e indicado por um grande amigo, jovem estudioso da obra de Santo Tomás, pois adiante comentaremos algumas de suas passagens mais importantes.
Em tempo. E para os amigos que lêem em francês, indico o bom estudo de Bernard Montagnes, O.P. (o livro La doctrine de l'analogie de l'être après saint Thomas d'Aquin, um clássico da década de 60), não sem deixar de advertir para uma certa confusão terminológica, encontrável em alguns tomistas franceses, entre ser (être) e ente (étant). Mesmo tomistas da melhor cepa, como o padre Garrigou-Lagrange (em La Synthèse Thomiste e noutros trabalhos), assim como o próprio Maritain, escorregaram nessa distinção — acreditamos que por uma questão meramente relativa à escrita francesa, pois custa-nos crer que ignorassem tratar-se de conceitos absolutamente distintos na obra do Aquinate.