quinta-feira, 17 de julho de 2008

Liberalismo e comunismo – rebentos da mesma raiz (III)

Carlos Nougué
No artigo anterior desta série, vimos que diz Santo Tomás, na Suma contra os Gentios, que “para a contemplação perfeita requer-se a incolumidade do corpo, à qual se ordenam todas as produções do homem necessárias para a sua vida. Requerem-se, também, o apaziguamento das perturbações das paixões, o que se obtém por meio das virtudes morais e da prudência, e o apaziguamento das paixões externas, ao qual se ordena todo o regime da vida civil, de modo que, se considerados retamente, todos os ofícios humanos parecem estar a serviço dos que contemplam a verdade”. Vimos também, ainda segundo o Aquinate, que é “na contemplação da sabedoria que versa sobre as coisas divinas que consiste a suprema felicidade do homem”. E concluímos então que falávamos ali “em termos de pura naturalidade”, sem sair do âmbito dos caracteres próprios do homem, determinados por sua própria natureza. “A contemplação de Deus aqui referida”, dizia-se, “não é a visão beatífica da face ou da essência de Deus que nos anuncia a Revelação; mas é já, como diz ainda o Padre Julio Meinvielle, ‘verdadeira contemplação, posse e fruição de Deus’”.

Resta saber, porém: é possível tal âmbito de pura naturalidade? É possível essa ‘verdadeira contemplação, posse e fruição de Deus’ de que fala o Padre Julio Meinvielle? Em outras palavras, teria o homem dois fins, um natural e um sobrenatural? Para responder a tudo isso, é preciso, mais uma vez, ir com muita calma e paciência, indagando-nos primeiro sobre a possibilidade de o homem alcançar por si mesmo todos aqueles itens que relaciona o Aquinate como pré-condições para a contemplação “natural” de Deus.

Mas, ainda antes disso, deve-se repetir o que dizia Servais Pinckaers O.P. sobre a dificuldade principal de entender o pensamento e a obra de Santo Tomás de Aquino: o fato de que procedem por camadas que se vão superpondo de certa maneira, qual seja, com cada camada superior assimilando o que expressa a anterior, mas conformando-o ao que agora se diz — e assim sucessivamente até a última camada. Em outras palavras, a obra e o pensamento do Aquinate são como uma imensa catedral, e, se, encantados com uma das pedras que a constituem, nos fixarmos nela sem atentar para a pedra superior, perderemos a articulação de conjunto e nunca chegaremos à agulha da catedral que aponta para a Causa das causas de sua mesma construção.

Pois bem, saiamos da camada do pensamento do Aquinate em que ele arrola as pré-condições para a contemplação “natural” de Deus perguntando-nos, como já se disse: São elas de possível consecução? Vejamo-las uma a uma.

1) É possível a perfeita “incolumidade do corpo”, mesmo pressupondo-se uma pólis cuja produção de bens que visem a tal fim seja perfeitamente satisfatória? É claro que não. Primeiro, pela razão mais que evidente de que o nosso corpo morre um dia. Mas, ainda deixando de lado este evento último, todos sabemos que o nosso corpo, mais dia, menos dia, padecerá alguma enfermidade mais ou menos grave, perdendo assim a incolumidade — independentemente, repita-se, do nível de satisfação de suas necessidades pela economia da pólis. O nosso corpo é não só mortal, mas passível (de enfermidades).

2) É possível um perfeito “apaziguamento das perturbações das paixões” “por meio das virtudes morais e da prudência”? Ora, qual de nós, por mais virtuoso e prudente que seja, pode afirmar que apaziguou perfeitamente as perturbações das nossas paixões? Quantas vezes cada um de nós, ainda que sabedores de nossos defeitos, e ainda após ter decidido firmemente, com toda a boa-fé do mundo, combatê-los, e fugir deles, e corrigi-los, não acaba por incorrer novamente neles após um tempo mais ou menos longo? Podemos melhorar, podemos apaziguar em certo grau as perturbações das nossas paixões, podemos até superar grandemente algumas delas? Certamente, também isto cada um de nós já há de ter experimentado. Mas segue o fato inegável de que não conseguimos apaziguar perfeita nem totalmente as perturbações das paixões mediante as virtudes morais e a prudência que naturalmente desenvolvemos.

3) É possível a um regime civil, a um governo apaziguar perfeitamente as “paixões externas”? Pensemos no melhor dos regimes, pensemos no melhor dos governos, pensemos no melhor dos governantes que já passaram pela face da Terra: terá conseguido ele apaziguar perfeitamente as paixões externas? coibir, por exemplo, tudo quanto seja fonte de escândalo para as crianças? impedir, ainda por exemplo, toda e qualquer perturbação da paz social, que é, ao fim e ao cabo, a mais básica, a mais fundamental das finalidades do governante? ou, sempre por exemplo, impedir totalmente leis de algum modo iníquas, ou as feridas à justiça distributiva? Se se pudesse apontar tal regime ou governo, estaríamos não no mundo que nos é dado conhecer desde um princípio, mas num mundo anterior, de cujas características, por razões que veremos mais adiante, nossa única “recordação” é uma espécie de nostálgica melancolia difusa.

P.S.1: E, ainda para aludir a um vínculo entre esta série sobre o liberalismo e o comunismo e a série sobre o belo e a arte, diga-se: tal nostálgica melancolia difusa está presente na arte, é parte integrante dela.

P.S.2: Não há nada mais triste que ver alguém, dizendo-se embora católico, defender que diante da nossa natureza caída se deve recorrer a expedientes resultantes... de nossa natureza caída! É o católico liberal, ou melhor, o liberal que se quer católico. Esquece ele o básico: a único corretivo possível para as impossibilidades tanto individuais como políticas do atual estado do homem ou vem do sobrenatural, ou não virá. Mais ainda: mesmo com esse corretivo, tudo quanto tentemos nesta Terra, por melhor que seja pelo auxílio da Graça, será sempre assintótico — simplesmente porque a “pólis” d’Ele não é deste mundo.

P.S.3: Como dizia o Papa Leão XIII, “Tempo houve em que a filosofia do Evangelho governava os Estados [...]”. Era o corretivo possível de que falo acima. Mas os liberais que se querem católicos, esses querem instaurar um tempo em que as consciências individuais governem a filosofia do Evangelho...
(Prossegue)