terça-feira, 1 de julho de 2008

O liberal: um livre-pensador por excelência

Sidney Silveira
Peça a um liberal para definir o que seja essa coisa de consciência individual autônoma — que ele defende como a quintessência ou o pórtico da verdade —, e ele terá engulhos. Talvez profira algum murmúrio inter pares e, depois, faça um muxoxo de raiva mal-disfarçada diante do espelho. Logo buscará um subterfúgio e fará parecer, aos olhos da patuléia, que essa coisa de definição é de um anacrônico espírito escolástico. “Ora, haja uma santa paciência para tantas investigações! Vamos direto ao ponto”, dirá, quem sabe tentando convencer-se a si mesmo (mais tarde, mostraremos como essa atitude verdadeiramente antifilosófica — um ardil, na verdade — o enredará em erros e pecados tremendos, e também àqueles que lhe derem crédito).

Pulando espertamente a definição daquilo que, para ele mesmo, é o núcleo da suprema verdade — ou seja, que a mesma verdade tem princípio e fim na sua própria consciência, tese de que ainda nos ocuparemos muito e que tem a sua raiz longínqua em Duns Scot (séc. XIV) —, e não respondendo às objeções que lhe fazem os espíritos mais pacientes, o liberal se sente à vontade para pontificar sobre quaisquer assuntos: arte, filosofia, política, economia, direito e até metafísica. É, literalmente, um livre-pensador. E nunca é demais lembrar o seguinte: o livre-pensador é o sujeito mais preso que há — preso às suas próprias idéias! Elas são o carrapato da sua inteligência, e como alguém lhe disse que a inteligência humana pensa por conceitos, isto lhe basta: os conceitos estão na sua cabeça, tão-somente — cabeça pela qual nem passa a idéia de que o insumo primordial dos conceitos são os entes reais. Por esta razão, Santo Tomás afirma (em De Veritate, I, a.2, ad.3) que a verdade na alma é causada in primis pelos entes, pois a alma racional, no ato de inteligir, não é independente (neste caso, entre a inteligência e as coisas inteligidas não haveria sequer relação), mas está conformada à existência das coisas (sed existentiam rerum). Não estamos, pois, encapsulados em nossos próprios conceitos, pois estes também não são autônomos. Mas o liberal, tão amante da “liberdade,” acaba se achando livre... da própria verdade!

Se esse amável bem-falante fala de arte, em geral acaba por reduzi-la à sua casca, ou seja, à matéria de que se vale o artista: no caso do escritor, por exemplo, são as palavras. Ou seja: a literatura será para ele, no máximo, um artesanato feito com as palavras, sem nenhum horizonte teleológico ou metafísico, sem um fim além do próprio fazer, o que é, na prática, reduzi-la a uma de suas partes integrantes. Se levarmos essa sua "idéia" às últimas conseqüências, seremos conduzidos à conclusão de que, entre a arte de um Dante e a de um joão-de-barro, que faz o seu ninho com capricho, não há diferença de gênero, mas apenas do material usado: a de Dante tem como insumo as palavras, e a do joão-de-barro, o barro. Que simpático! Por essas e outras, o liberal será, nos casos mais afortunados, um esteta. Um bobo culto — que é o maior perigo da paróquia.

Por outra parte, se esse homem tão cioso da liberdade humana começa a falar sobre religião, Deus será para ele o resultado da busca livre de sua consciência individual (mas, como mostramos noutro texto, a consciência, por definição, não busca nada; só aplica). A ele o Papa São Pio X já tinha refutado e chamado a atenção na esplêndida Encíclica Pascendi Dominici Gregis.

Voltaremos a tudo isso e muito mais.