Carlos Nougué
Que é uma meia-verdade? Certamente não será uma verdade pela metade, porque tal não é possível: uma coisa não pode ser meio verdadeira e meio falsa; ou é inteiramente verdadeira, ou é inteiramente falsa. Mas pode ser, sim, uma falsidade com fumos, com pretensão, com aparência de verdade, por conter algum elemento de verdade, ou melhor, por conter algum elemento extraído de uma verdade e inserido de modo deformado nesse todo falso. Ora, um elemento de verdade inserto numa falsidade global não poderá senão servir a esta mesma falsidade, porque, pela própria natureza das coisas, a parte sempre se ordena ao todo de que é parte.
Pois bem, chegou-me aos ouvidos que em certo blog alguém chamou Chesterton de “grande liberal”, e aduziu para prová-lo um trecho do livro Ortodoxia em que o Inglês diz não haver contradição entre tradição e democracia nem entre tradição e liberalismo. Ora, tal atribuição e tal “prova” podem ser examinadas por três ângulos: 1) o do referido trecho considerado em si e no contexto do livro Ortodoxia como um todo; 2) o do livro Ortodoxia no contexto da obra de Chesterton como um todo; 3) e, por fim, o de quem faz tal atribuição e aduz tal “prova”.
1) Efetivamente, no trecho em questão Chesterton diz o que o autor de tais atribuição e “prova” diz que ele diz, a saber: que não há contradição entre tradição e democracia nem entre tradição e liberalismo.
● Ora, efetivamente não há contradição entre tradição (católica, quer dizer Chesterton) e democracia, como afirma o próprio Magistério da Igreja e como já o mostramos neste mesmo blog (no artigo “Democracia e ‘democracia’ segundo a verdadeira autoridade”). Mas há contradição, sim, segundo o mesmo Magistério e como se pode ler no mesmo artigo, entre tal tradição e a democracia liberal. A que democracia se refere Chesterton no referido trecho de Ortodoxia? Sem dúvida alguma, à democracia liberal, o que é reforçado no mesmo livro pelo elogio que o Inglês faz à revolução francesa.
● Isso quererá dizer que é Chesterton, no livro Ortodoxia, um liberal ou, mais ainda, um “grande liberal”? Pode ser um liberal alguém que é contra a liberdade de consciência? que é contra a liberdade religiosa? que é favor da união entre Igreja e Estado e da submissão espiritual deste àquela? Obviamente que não! Que se passa então com o Chesterton de Ortodoxia, livro escrito 16 anos antes de sua conversão formal ao catolicismo? Ele incorre em patente contradição, ao errar gravemente com respeito à revolução francesa e à democracia saída de suas entranhas sangrentas.
2) Pouco a pouco em sua obra, todavia, vai Chesterton mudando de opinião com relação à revolução francesa e a democracia liberal, o que culminará em The Everlasting Man (“O Homem Eterno”), livro de 1925, ou seja, posterior à conversão do Inglês, no qual ele afirma duas coisas importantes para o assunto que aqui se trata:
a) que, junto com o surgimento do gnosticismo e de heresias como arianismo, a revolução francesa foi um dos momentos da história de maior perigo para a fé;
b) que a democracia que ele, Chesterton, defende é a democracia direta em torno de um carvalho, ou seja, a democracia do voto direto das pequenas comunidades camponesas da Europa, já então em vias de extinção.
● Ademais, Chesterton já era então um dos líderes do movimento chamado “Distributism” (Distributivismo), que pregava um retorno à economia de pequenas propriedades agrárias da Idade Média posterior ao século XII, sob o lema de que todo homem tem direito a pelo menos “três alqueires e uma vaca”. Tratava-se, em todo o seu quixotismo, de contundente condenação do capitalismo, da economia liberal e do despojamento criminoso de que nela foram vítimas os trabalhadores. Aliás, uma das provas do que digo em “Pensamento mágico e bom senso” contra a economia liberal provirá precisamente de um livro de Chesterton, admirável, A Short History of England (“Uma Breve História da Inglaterra”), onde, entre muitas outras coisas, ele afirma que o capitalismo “começa com um roubo”.
● Pois bem, pode ser chamado de liberal ou, mais ainda, de “grande liberal” quem ataca tão duramente a revolução francesa e a economia liberal e diz que a sua democracia não é a liberal, mas precisamente uma das formas de democracia aceitas pela Igreja?
● Mas em prol da verdade deve-se afirmar aqui que, no fim da vida, mais precisamente no livro The Well and the Shallows, de 1935, embora Chesterton não recaia no elogio da revolução francesa, recai, sim, no elogio da democracia liberal. Estava influenciado pela recente vitória eleitoral na Espanha do Partido Democrata Cristão. Não teria ele, porém, tempo de vida para ver o resultado dessa vitória: o mais furibundo, o mais virulento, o mais sangrento, o mais assassino ataque das forças liberal-comunistas à Espanha tradicional, à Igreja, aos religiosos, aos fiéis católicos. Se tivesse tido tempo de vê-lo, ele, que perto da morte tanto sofria com a descatolicização do mundo, ele, que vendo-a chegou por um tempo, também equivocadamente, a ter certa simpatia por Mussolini, teria certamente sido tomado por uma tristeza devastadora.
● Mas não podemos passar adiante sem antes resolver uma questão: por que esse apreço de Chesterton pela democracia em geral e, por vezes, pela própria democracia liberal, apreço este (pela democracia liberal) em patente contradição com todo o restante de sua obra? Tal apreço em verdade se devia a duas razões:
a) uma confiança excessiva no senso comum do comum dos homens, confiança que ele só põe em dúvida no já referido The Everlasting Man, sem dúvida a sua melhor obra;
b) baseado nessa confiança excessiva, a asserção de que pedir voto ao comum dos homens tem algo de humildade cristã, asserção evidentemente falsa: quando Pilatos consultou o voto ao comum dos judeus, estes elegeram Barrabás.
3) Finalmente, quanto ao autor daquela atribuição e daquela “prova”:
● Não se deve atribuir nenhum predicado ou qualidade geral a nenhum autor sem conhecer pelo menos os principais livros de sua lavra. Como dizer se Santo Tomás de Aquino é aristotélico, platônico, platônico-aristotélico ou ele mesmo, se só se leram artigos de divulgação, ou manuais, ou um que outro de seus livros? Foi aliás o que fez Kant: sem nunca ter lido um livro do Aquinate, condenou-lhe a metafísica e fez o mundo moderno fundar-se numa mentira.
● Naturalmente, quero conceder que não houve malícia no autor daquelas atribuição e “prova”. Mas repita-se aqui o que já se disse em outro artigo deste blog: uma das formas de pensamento mágico é a “reconstrução ideal da história”, que inclui a “reconstrução ideal do pensamento de alguém”. Logo, se não houve malícia por parte daquele autor, houve: a) ou precipitação, ânsia imprudente de impugnar teses adversas ou de defender, como quer que fosse, seus pontos de vista; b) ou “incorrência”, incidência na referida espécie de pensamento mágico.
Como seja, aquela atribuição e aquela “prova” não são mais que meias-verdades no sentido acima descrito.
Em tempo: Repito: Chesterton é o maior literato do século XX, e a meu ver não por seus romances (que, confesso, me parecem demasiado fantasiosos), mas por sua saga do Padre Brown. Com esta saga, ombreia Chesterton com ninguém menos que Cervantes.
Que é uma meia-verdade? Certamente não será uma verdade pela metade, porque tal não é possível: uma coisa não pode ser meio verdadeira e meio falsa; ou é inteiramente verdadeira, ou é inteiramente falsa. Mas pode ser, sim, uma falsidade com fumos, com pretensão, com aparência de verdade, por conter algum elemento de verdade, ou melhor, por conter algum elemento extraído de uma verdade e inserido de modo deformado nesse todo falso. Ora, um elemento de verdade inserto numa falsidade global não poderá senão servir a esta mesma falsidade, porque, pela própria natureza das coisas, a parte sempre se ordena ao todo de que é parte.
Pois bem, chegou-me aos ouvidos que em certo blog alguém chamou Chesterton de “grande liberal”, e aduziu para prová-lo um trecho do livro Ortodoxia em que o Inglês diz não haver contradição entre tradição e democracia nem entre tradição e liberalismo. Ora, tal atribuição e tal “prova” podem ser examinadas por três ângulos: 1) o do referido trecho considerado em si e no contexto do livro Ortodoxia como um todo; 2) o do livro Ortodoxia no contexto da obra de Chesterton como um todo; 3) e, por fim, o de quem faz tal atribuição e aduz tal “prova”.
1) Efetivamente, no trecho em questão Chesterton diz o que o autor de tais atribuição e “prova” diz que ele diz, a saber: que não há contradição entre tradição e democracia nem entre tradição e liberalismo.
● Ora, efetivamente não há contradição entre tradição (católica, quer dizer Chesterton) e democracia, como afirma o próprio Magistério da Igreja e como já o mostramos neste mesmo blog (no artigo “Democracia e ‘democracia’ segundo a verdadeira autoridade”). Mas há contradição, sim, segundo o mesmo Magistério e como se pode ler no mesmo artigo, entre tal tradição e a democracia liberal. A que democracia se refere Chesterton no referido trecho de Ortodoxia? Sem dúvida alguma, à democracia liberal, o que é reforçado no mesmo livro pelo elogio que o Inglês faz à revolução francesa.
● Isso quererá dizer que é Chesterton, no livro Ortodoxia, um liberal ou, mais ainda, um “grande liberal”? Pode ser um liberal alguém que é contra a liberdade de consciência? que é contra a liberdade religiosa? que é favor da união entre Igreja e Estado e da submissão espiritual deste àquela? Obviamente que não! Que se passa então com o Chesterton de Ortodoxia, livro escrito 16 anos antes de sua conversão formal ao catolicismo? Ele incorre em patente contradição, ao errar gravemente com respeito à revolução francesa e à democracia saída de suas entranhas sangrentas.
2) Pouco a pouco em sua obra, todavia, vai Chesterton mudando de opinião com relação à revolução francesa e a democracia liberal, o que culminará em The Everlasting Man (“O Homem Eterno”), livro de 1925, ou seja, posterior à conversão do Inglês, no qual ele afirma duas coisas importantes para o assunto que aqui se trata:
a) que, junto com o surgimento do gnosticismo e de heresias como arianismo, a revolução francesa foi um dos momentos da história de maior perigo para a fé;
b) que a democracia que ele, Chesterton, defende é a democracia direta em torno de um carvalho, ou seja, a democracia do voto direto das pequenas comunidades camponesas da Europa, já então em vias de extinção.
● Ademais, Chesterton já era então um dos líderes do movimento chamado “Distributism” (Distributivismo), que pregava um retorno à economia de pequenas propriedades agrárias da Idade Média posterior ao século XII, sob o lema de que todo homem tem direito a pelo menos “três alqueires e uma vaca”. Tratava-se, em todo o seu quixotismo, de contundente condenação do capitalismo, da economia liberal e do despojamento criminoso de que nela foram vítimas os trabalhadores. Aliás, uma das provas do que digo em “Pensamento mágico e bom senso” contra a economia liberal provirá precisamente de um livro de Chesterton, admirável, A Short History of England (“Uma Breve História da Inglaterra”), onde, entre muitas outras coisas, ele afirma que o capitalismo “começa com um roubo”.
● Pois bem, pode ser chamado de liberal ou, mais ainda, de “grande liberal” quem ataca tão duramente a revolução francesa e a economia liberal e diz que a sua democracia não é a liberal, mas precisamente uma das formas de democracia aceitas pela Igreja?
● Mas em prol da verdade deve-se afirmar aqui que, no fim da vida, mais precisamente no livro The Well and the Shallows, de 1935, embora Chesterton não recaia no elogio da revolução francesa, recai, sim, no elogio da democracia liberal. Estava influenciado pela recente vitória eleitoral na Espanha do Partido Democrata Cristão. Não teria ele, porém, tempo de vida para ver o resultado dessa vitória: o mais furibundo, o mais virulento, o mais sangrento, o mais assassino ataque das forças liberal-comunistas à Espanha tradicional, à Igreja, aos religiosos, aos fiéis católicos. Se tivesse tido tempo de vê-lo, ele, que perto da morte tanto sofria com a descatolicização do mundo, ele, que vendo-a chegou por um tempo, também equivocadamente, a ter certa simpatia por Mussolini, teria certamente sido tomado por uma tristeza devastadora.
● Mas não podemos passar adiante sem antes resolver uma questão: por que esse apreço de Chesterton pela democracia em geral e, por vezes, pela própria democracia liberal, apreço este (pela democracia liberal) em patente contradição com todo o restante de sua obra? Tal apreço em verdade se devia a duas razões:
a) uma confiança excessiva no senso comum do comum dos homens, confiança que ele só põe em dúvida no já referido The Everlasting Man, sem dúvida a sua melhor obra;
b) baseado nessa confiança excessiva, a asserção de que pedir voto ao comum dos homens tem algo de humildade cristã, asserção evidentemente falsa: quando Pilatos consultou o voto ao comum dos judeus, estes elegeram Barrabás.
3) Finalmente, quanto ao autor daquela atribuição e daquela “prova”:
● Não se deve atribuir nenhum predicado ou qualidade geral a nenhum autor sem conhecer pelo menos os principais livros de sua lavra. Como dizer se Santo Tomás de Aquino é aristotélico, platônico, platônico-aristotélico ou ele mesmo, se só se leram artigos de divulgação, ou manuais, ou um que outro de seus livros? Foi aliás o que fez Kant: sem nunca ter lido um livro do Aquinate, condenou-lhe a metafísica e fez o mundo moderno fundar-se numa mentira.
● Naturalmente, quero conceder que não houve malícia no autor daquelas atribuição e “prova”. Mas repita-se aqui o que já se disse em outro artigo deste blog: uma das formas de pensamento mágico é a “reconstrução ideal da história”, que inclui a “reconstrução ideal do pensamento de alguém”. Logo, se não houve malícia por parte daquele autor, houve: a) ou precipitação, ânsia imprudente de impugnar teses adversas ou de defender, como quer que fosse, seus pontos de vista; b) ou “incorrência”, incidência na referida espécie de pensamento mágico.
Como seja, aquela atribuição e aquela “prova” não são mais que meias-verdades no sentido acima descrito.
Em tempo: Repito: Chesterton é o maior literato do século XX, e a meu ver não por seus romances (que, confesso, me parecem demasiado fantasiosos), mas por sua saga do Padre Brown. Com esta saga, ombreia Chesterton com ninguém menos que Cervantes.