Sidney Silveira
A intimidade de uma pessoa é constituída por um amplo universo psíquico interior que inclui, entre outros aspectos (como por exemplo a rememoração dos fatos passados, a imaginação de futuros possíveis, etc.), a autoconsciência e a consciência das coisas. Esses dois atos conscientes dão-se, segundo Santo Tomás, graças à capacidade do intelecto humano de fazer a “volta completa”, ou seja: conhecer e conhecer-se num só ato da inteligência. Em linguagem tomista, a alma, entendendo uma coisa qualquer, entende-se a si mesma (se ipsam intelligit); reconhecendo algo, reconhece-se e reconhece, também, o ato pelo qual é capaz de reconhecer. No caso humano, trata-se, portanto, de consciência reflexa (uma ida às coisas e um retorno a si mesma), e jamais “autônoma”, como querem alguns liberais — e na verdade nem poderia ser diferente, pois, para ser “autônoma”, a consciência precisaria emancipar-se totalmente das coisas, dos entes reais, o que é uma pretensiosa quimera, e não uma teoria para ser levada a sério por filósofos dignos deste nome. A experiência torna evidente que, ao conhecer qualquer ente, o homem identifica-se como diferente dele, no ato. Em suma, trata-se de um ato consciente no qual — como diz o filósofo espanhol Juan Cruz Cruz, num ótimo livro — há dois pólos: autopresença e presença de algo.
Todas as coisas que queremos, queremo-las como boas em si e porque esse “em si” é bom para nós, de algum modo. Neste ato da vontade estão implicadas tanto a autoconsciência como a consciência direcionada ao exterior. E assim são as pessoas psicologicamente saudáveis: querem algo bom em si, e o querem para fruí-lo da melhor forma. Por aí já se começa a vislumbrar que a liberdade não se pode dar na consciência, e sim na vontade, da qual a consciência é apenas o invólucro. Assim, ter consciência disto ou daquilo é um fato, mas querer isto ou aquilo, escolher, é muito mais: é um ato do nosso livre-arbítrio — o qual é potência da alma, como demonstra Santo Tomás na questão de seu monumental De Veritate intitulada De Libero Arbitrio (art.4). Vejamos um exemplo prosaico: ter consciência e pleno entendimento de que o futebol é um jogo com tais ou quais regras, é uma coisa; querer jogá-lo, escolher jogá-lo, é outra mui diversa. No primeiro caso, ao tomar consciência de quais são as regras do jogo, não sou livre para ter consciência de que sejam de outra maneira, porque elas são o que são independentemente de eu ter ou não consciência delas. Não há, aqui, liberdade em sentido estrito, mas somente atualização de uma potência da alma racional. Dito assim, parece tão simples que nos espanta ver como homens presumivelmente inteligentes, como David Hume, não conseguiram enxergar esse óbvio ululante*.
A consciência é apenas um dos aspectos da intimidade de uma pessoa; e é íntima por ser imaterial. Mas este não é o único aspecto da nossa intimidade, nem o mais elevado. A nossa riqueza interior consiste em atos muito mais nobres do que simplesmente o de ter consciência de nós mesmos e das coisas. E o mais nobre, proveniente de nossa mais recôndita intimidade, não pode ser outro senão o ato do amor, ato libérrimo porque é pura e simples doação. A propósito, esse ato humano mais nobre é, também, o que nasce na região mais íntima do nosso ser: a vontade, que, neste caso, em seu ato mais perfeito, se move numa espécie de êxtase, num sair de si arrebatador em direção à coisa e/ou pessoa amada, livre. Caminhemos com os exemplos, para ir clareando o caminho: ver um sujeito indigente na rua e ter consciência de sua condição miserável é uma coisa; compadecer-se de sua situação e ajudá-lo é algo muito, mas muitíssimo superior. Por aí se vê que a consciência não pode ser o fim da ação propriamente humana (que implica as nossas potências intelectiva e volitiva), mas apenas a bitola, o trilho pelo qual as ações propriamente humanas se dão — já que todas elas são conscientes, ou seja: tudo o que entendo e tudo o que quero se dá de forma consciente, em algum grau, mas nem tudo de que sou consciente move a minha vontade. A consciência individual (tão idolatrada por liberais de todas as cores!) é, pois, um instrumento da ação humana, mas nunca, jamais, o seu fim ou a sua razão de ser.
Querer algo apenas como imitação do que invejamos, na presunção de que a posse dessa coisa querida nos transformará em pessoas diferenciadas, aos olhos das demais, como quer René Girard, só pode ser uma patologia porque perverte o movimento natural da vontade: o de ser movida por algo entendido como bom em si, para fruí-lo de alguma forma. Alguém na triste situação descrita por Girard seria capaz, por exemplo, de comer caviar mesmo odiando tal iguaria (a ponto de vomitar tudo depois), apenas porque julga que comer caviar pode fazer com que pareça importante ou diferente aos olhos das pessoas**. Um pobre-diabo em tal situação tem a consciência das coisas — e a sua conseqüente valoração — obliterada ou atrofiada, por ter uma consciência de si hipertrofiada. E hipertrofiada a tal ponto que parece ser ou estar independente do mundo real. “Autônoma”.
Não espanta que Girard seja divulgado ou propagado por "liberaiszões" ou "liberaiszinhos". A sua teoria do desejo mimético é a extata descrição do querer de um ego doentiamente inflado — mas com um detalhe: tido como algo “natural” em nós. É a descrição da liberdade que se transformou num sombrio arremedo, pela recusa de reconhecer o valor real de coisas e pessoas. Valor este que é proporcional à participação delas, em grau específicos, na ordem do ser.
* Ocorreu-me o famoso exemplo de Hume que, em seu ataque ao conceito tradicional de causalidade, diz-nos uma coisa incrível: quando uma bola de bilhar bate em outra, o homem não é capaz de identificar, no ato, que o movimento da segunda foi causado pelo da primeira, mas apenas perceber o choque entre elas. Se a base de sua gnosiologia fosse realista, ele jamais poderia dizer tal barbaridade. Mas, como bom construtor de um pensamento mágico, Hume prefere abandonar a realidade e buscar argumentos para a “conclusão” da qual de antemão partira. Por isso perpetra idéias como a seguinte: o anterior e o posterior não estão na realidade, mas apenas na mente do homem. Pindamonhangaba! Imaginemos um cirurgião cardiologista que acreditasse nisso: o entupimento de uma artéria que tivesse causado um infarto não estaria na artéria real do paciente, mas em sua cabeça...
A intimidade de uma pessoa é constituída por um amplo universo psíquico interior que inclui, entre outros aspectos (como por exemplo a rememoração dos fatos passados, a imaginação de futuros possíveis, etc.), a autoconsciência e a consciência das coisas. Esses dois atos conscientes dão-se, segundo Santo Tomás, graças à capacidade do intelecto humano de fazer a “volta completa”, ou seja: conhecer e conhecer-se num só ato da inteligência. Em linguagem tomista, a alma, entendendo uma coisa qualquer, entende-se a si mesma (se ipsam intelligit); reconhecendo algo, reconhece-se e reconhece, também, o ato pelo qual é capaz de reconhecer. No caso humano, trata-se, portanto, de consciência reflexa (uma ida às coisas e um retorno a si mesma), e jamais “autônoma”, como querem alguns liberais — e na verdade nem poderia ser diferente, pois, para ser “autônoma”, a consciência precisaria emancipar-se totalmente das coisas, dos entes reais, o que é uma pretensiosa quimera, e não uma teoria para ser levada a sério por filósofos dignos deste nome. A experiência torna evidente que, ao conhecer qualquer ente, o homem identifica-se como diferente dele, no ato. Em suma, trata-se de um ato consciente no qual — como diz o filósofo espanhol Juan Cruz Cruz, num ótimo livro — há dois pólos: autopresença e presença de algo.
Todas as coisas que queremos, queremo-las como boas em si e porque esse “em si” é bom para nós, de algum modo. Neste ato da vontade estão implicadas tanto a autoconsciência como a consciência direcionada ao exterior. E assim são as pessoas psicologicamente saudáveis: querem algo bom em si, e o querem para fruí-lo da melhor forma. Por aí já se começa a vislumbrar que a liberdade não se pode dar na consciência, e sim na vontade, da qual a consciência é apenas o invólucro. Assim, ter consciência disto ou daquilo é um fato, mas querer isto ou aquilo, escolher, é muito mais: é um ato do nosso livre-arbítrio — o qual é potência da alma, como demonstra Santo Tomás na questão de seu monumental De Veritate intitulada De Libero Arbitrio (art.4). Vejamos um exemplo prosaico: ter consciência e pleno entendimento de que o futebol é um jogo com tais ou quais regras, é uma coisa; querer jogá-lo, escolher jogá-lo, é outra mui diversa. No primeiro caso, ao tomar consciência de quais são as regras do jogo, não sou livre para ter consciência de que sejam de outra maneira, porque elas são o que são independentemente de eu ter ou não consciência delas. Não há, aqui, liberdade em sentido estrito, mas somente atualização de uma potência da alma racional. Dito assim, parece tão simples que nos espanta ver como homens presumivelmente inteligentes, como David Hume, não conseguiram enxergar esse óbvio ululante*.
A consciência é apenas um dos aspectos da intimidade de uma pessoa; e é íntima por ser imaterial. Mas este não é o único aspecto da nossa intimidade, nem o mais elevado. A nossa riqueza interior consiste em atos muito mais nobres do que simplesmente o de ter consciência de nós mesmos e das coisas. E o mais nobre, proveniente de nossa mais recôndita intimidade, não pode ser outro senão o ato do amor, ato libérrimo porque é pura e simples doação. A propósito, esse ato humano mais nobre é, também, o que nasce na região mais íntima do nosso ser: a vontade, que, neste caso, em seu ato mais perfeito, se move numa espécie de êxtase, num sair de si arrebatador em direção à coisa e/ou pessoa amada, livre. Caminhemos com os exemplos, para ir clareando o caminho: ver um sujeito indigente na rua e ter consciência de sua condição miserável é uma coisa; compadecer-se de sua situação e ajudá-lo é algo muito, mas muitíssimo superior. Por aí se vê que a consciência não pode ser o fim da ação propriamente humana (que implica as nossas potências intelectiva e volitiva), mas apenas a bitola, o trilho pelo qual as ações propriamente humanas se dão — já que todas elas são conscientes, ou seja: tudo o que entendo e tudo o que quero se dá de forma consciente, em algum grau, mas nem tudo de que sou consciente move a minha vontade. A consciência individual (tão idolatrada por liberais de todas as cores!) é, pois, um instrumento da ação humana, mas nunca, jamais, o seu fim ou a sua razão de ser.
Querer algo apenas como imitação do que invejamos, na presunção de que a posse dessa coisa querida nos transformará em pessoas diferenciadas, aos olhos das demais, como quer René Girard, só pode ser uma patologia porque perverte o movimento natural da vontade: o de ser movida por algo entendido como bom em si, para fruí-lo de alguma forma. Alguém na triste situação descrita por Girard seria capaz, por exemplo, de comer caviar mesmo odiando tal iguaria (a ponto de vomitar tudo depois), apenas porque julga que comer caviar pode fazer com que pareça importante ou diferente aos olhos das pessoas**. Um pobre-diabo em tal situação tem a consciência das coisas — e a sua conseqüente valoração — obliterada ou atrofiada, por ter uma consciência de si hipertrofiada. E hipertrofiada a tal ponto que parece ser ou estar independente do mundo real. “Autônoma”.
Não espanta que Girard seja divulgado ou propagado por "liberaiszões" ou "liberaiszinhos". A sua teoria do desejo mimético é a extata descrição do querer de um ego doentiamente inflado — mas com um detalhe: tido como algo “natural” em nós. É a descrição da liberdade que se transformou num sombrio arremedo, pela recusa de reconhecer o valor real de coisas e pessoas. Valor este que é proporcional à participação delas, em grau específicos, na ordem do ser.
* Ocorreu-me o famoso exemplo de Hume que, em seu ataque ao conceito tradicional de causalidade, diz-nos uma coisa incrível: quando uma bola de bilhar bate em outra, o homem não é capaz de identificar, no ato, que o movimento da segunda foi causado pelo da primeira, mas apenas perceber o choque entre elas. Se a base de sua gnosiologia fosse realista, ele jamais poderia dizer tal barbaridade. Mas, como bom construtor de um pensamento mágico, Hume prefere abandonar a realidade e buscar argumentos para a “conclusão” da qual de antemão partira. Por isso perpetra idéias como a seguinte: o anterior e o posterior não estão na realidade, mas apenas na mente do homem. Pindamonhangaba! Imaginemos um cirurgião cardiologista que acreditasse nisso: o entupimento de uma artéria que tivesse causado um infarto não estaria na artéria real do paciente, mas em sua cabeça...
** Aqui se faz necessária uma breve explicação acerca de como a vontade se movimenta, de acordo com a doutrina de Santo Tomás (a melhor que conheço, neste tópico). No caso que nos interessa, a primeira distinção a fazer é entre o objeto especificativo da vontade e o exercício dos atos voluntários. Pois bem: no tocante ao objeto que especifica a vontade, a total primazia é do intelecto — pois a vontade tende aos objetos apreendidos intelectivamente. Assim, se tal coisa é entendida como boa, a vontade tende a ser movida a essa forma de bem subministrada pela inteligência. Na prática, na maior parte das vezes a vontade não delibera sobre os fins, mas quer os meios para alcançar determinados fins. Por isso, os diversos atos do querer são todos determinados ou especificados pelos objetos a que se movem, entendidos como bons. De outra parte, com relação ao exercício dos atos voluntários, a vontade impera sobre si mesma, sobre o entendimento e sobre todas as demais potências, e esta é a região onde propriamente exerce a sua liberdade. Em termos simples, a vontade é de fato livre para querer ou não querer isto ou aquilo. Reiterando: é livre no exercício do querer. Mas, mesmo aqui, a liberdade é especificada pela forma de um bem (seja um bem real ou aparente, verdadeiro ou falso, mais ou menos digno, na ordem do ser). Assim, um suicida, embora cometa um mal contra si mesmo, comete-o sob a forma de um bem, que é a idéia de pôr fim aos seus tormentos; um assaltante que mate alguém para roubar, embora cometa um ato mau, tem a sua vontade movida pela forma de um bem: o dinheiro. O que essas pessoas não conseguem é aquilatar minimamente os bens e dar-lhes uma ordem que condiga com o grau de ser de cada um deles.
Um dos problemas da tese de Girard — dentre tantos que temos apontado! — é fazer dessa triste incapacidade para aquilatar os bens reais (na verdade, uma doença espiritual) algo intrínseco à nossa natureza, transformá-la num motor “natural” da vontade.