Carlos Nougué
Uma das doutrinas sobre a arte que desde há alguns séculos mais curso têm, e que é assumida, ainda que com muitas sutilezas, até por filósofos que se reivindicam do tomismo, é aquela segundo a qual a arte tem por fim fazer coisas belas, ou antes, fazer o belo. Em outras palavras: a arte tem por fim a ela mesma. Ordena-se a si mesma. É a arte pela arte. Se uma obra de arte for bela, alcançou seu fim. Não importa se tal beleza se dá num canto gregoriano ou em Tristão e Isolda, numa Paixão de Bach ou em quaisquer tipos de “flores do mal”.
Há pois duas questões por resolver: primeira, se é verdade que o fim da obra de arte é fazer o belo; segunda, se não o for, se são verdadeiramente belas obras como Tristão e Isolda e quaisquer “flores do mal”.
Quanto à primeira, parece que sim, que o fim da obra de arte é fazer o belo, é fazer coisas belas. Porque, assim como o fim da sapataria é fazer sapatos, o fim da arte é fazer obras de arte, ou seja, obras belas. Mas, em sentido contrário, pode-se dizer que, se aquela visa à utilidade do homem e ao conforto de seus pés, esta também tem de ordenar-se a um fim que lhe seja exterior: por exemplo, comprazer, deleitar o homem, recrear sua alma.
E isto já é um início de solução da questão. Mas é preciso avançar, porque, assim como para atingir o seu fim a sapataria tem de obrar por modo e meios adequados a ele (como o é a técnica de fazer sapatos confortáveis, que aliviem o esforço dos pés e os protejam dos acidentes dos caminhos), assim também a arte, para atingir o seu fim, tem de obrar por modos e meios adequados a ele — como o são as técnicas de fazer o belo, de fazer coisas belas, harmoniosas, proporcionais que, por isso mesmo, deleitem ou comprazam o homem.
O homem, ao contrário dos animais, deleita-se com o belo, com o harmonioso, com o proporcional, e para o belo e harmonioso há critérios tão objetivos como o número de ouro (que estudaremos em outra oportunidade). E o fato mesmo de que o homem se deleite com o belo faz com que interrompamos neste ponto a analogia entre a sapataria e a arte, porque a sapataria visa a um fim corporal (a proteção e o conforto dos pés), e porque tudo o que é espiritual é superior a tudo quanto é corporal — ainda que o deleite com o belo não implique apenas as faculdades superiores de nossa alma (a inteligência e a vontade), mas também a potência cogitativa, que, segundo Santo Tomás, é um dos quatro sentidos interiores. (Note-se porém que a cogitativa, cujo correlato nos animais é a estimativa, é no homem regida diretamente pelo intelecto).
Digamos tudo isso de modo conciso e conducente à solução da primeira questão:
• Todos os entes, todas as criaturas e todas as suas operações e produções têm de ordenar-se a um fim exterior a eles próprios.
• O fim, por exemplo, da sapataria é o conforto de uma parte do corpo humano, enquanto o fim da arte é uma espécie de deleite do homem, o deleite com o belo.
• Um sapato desconfortável é resultado de uma sapataria falha, ainda que ele seja harmonioso, proporcional, belo em si (dentro dos limites em que o pode ser um sapato). Uma obra de arte que seja não-harmoniosa, desproporcional, feia em si é resultado de uma arte falha, e, se deleita a alguém, é porque este alguém é um apreciador ou receptor falho, que por uma razão qualquer perdeu a capacidade de apreciação do belo.
• Mas a arte é superior à sapataria e diversa dela na mesma medida em que tudo quanto é espiritual o é com relação a tudo quanto seja corporal, e na mesma medida em que um fim espiritual é sempre superior a qualquer fim corporal.
Logo, o fim da obra de arte não é fazer o belo, não é fazer coisas belas (o que implicaria uma clara tautologia), mas sim, fazendo o belo, fazendo coisas belas, deleitar ou comprazer o homem, o qual, porém, deve ter intacta a sua capacidade de apreciar o belo e rejeitar o feio.
Em tempo 1: Uma sociedade capaz de apreciar a “música” de um Pink Floyd, de um Miles Davis, de um Schoenberg, com todas as suas cacofonias e desarmonias e estridências, é uma sociedade, digamos, esteticamente enferma. Perdeu o senso da proporção, o senso do belo – o senso mesmo da forma. É já, em verdade, uma sociedade em estado “terminal”: o apreciar tais tipos de música pressupõe pelo menos os estertores do intelecto. “A inteligência está em perigo de morte”, dizia com razões de sobra Marcel de Corte.
Em tempo 2: No próximo post veremos a solução da segunda questão enunciada mais acima, a qual, por sua vez, se desdobrará em algumas outras.
Uma das doutrinas sobre a arte que desde há alguns séculos mais curso têm, e que é assumida, ainda que com muitas sutilezas, até por filósofos que se reivindicam do tomismo, é aquela segundo a qual a arte tem por fim fazer coisas belas, ou antes, fazer o belo. Em outras palavras: a arte tem por fim a ela mesma. Ordena-se a si mesma. É a arte pela arte. Se uma obra de arte for bela, alcançou seu fim. Não importa se tal beleza se dá num canto gregoriano ou em Tristão e Isolda, numa Paixão de Bach ou em quaisquer tipos de “flores do mal”.
Há pois duas questões por resolver: primeira, se é verdade que o fim da obra de arte é fazer o belo; segunda, se não o for, se são verdadeiramente belas obras como Tristão e Isolda e quaisquer “flores do mal”.
Quanto à primeira, parece que sim, que o fim da obra de arte é fazer o belo, é fazer coisas belas. Porque, assim como o fim da sapataria é fazer sapatos, o fim da arte é fazer obras de arte, ou seja, obras belas. Mas, em sentido contrário, pode-se dizer que, se aquela visa à utilidade do homem e ao conforto de seus pés, esta também tem de ordenar-se a um fim que lhe seja exterior: por exemplo, comprazer, deleitar o homem, recrear sua alma.
E isto já é um início de solução da questão. Mas é preciso avançar, porque, assim como para atingir o seu fim a sapataria tem de obrar por modo e meios adequados a ele (como o é a técnica de fazer sapatos confortáveis, que aliviem o esforço dos pés e os protejam dos acidentes dos caminhos), assim também a arte, para atingir o seu fim, tem de obrar por modos e meios adequados a ele — como o são as técnicas de fazer o belo, de fazer coisas belas, harmoniosas, proporcionais que, por isso mesmo, deleitem ou comprazam o homem.
O homem, ao contrário dos animais, deleita-se com o belo, com o harmonioso, com o proporcional, e para o belo e harmonioso há critérios tão objetivos como o número de ouro (que estudaremos em outra oportunidade). E o fato mesmo de que o homem se deleite com o belo faz com que interrompamos neste ponto a analogia entre a sapataria e a arte, porque a sapataria visa a um fim corporal (a proteção e o conforto dos pés), e porque tudo o que é espiritual é superior a tudo quanto é corporal — ainda que o deleite com o belo não implique apenas as faculdades superiores de nossa alma (a inteligência e a vontade), mas também a potência cogitativa, que, segundo Santo Tomás, é um dos quatro sentidos interiores. (Note-se porém que a cogitativa, cujo correlato nos animais é a estimativa, é no homem regida diretamente pelo intelecto).
Digamos tudo isso de modo conciso e conducente à solução da primeira questão:
• Todos os entes, todas as criaturas e todas as suas operações e produções têm de ordenar-se a um fim exterior a eles próprios.
• O fim, por exemplo, da sapataria é o conforto de uma parte do corpo humano, enquanto o fim da arte é uma espécie de deleite do homem, o deleite com o belo.
• Um sapato desconfortável é resultado de uma sapataria falha, ainda que ele seja harmonioso, proporcional, belo em si (dentro dos limites em que o pode ser um sapato). Uma obra de arte que seja não-harmoniosa, desproporcional, feia em si é resultado de uma arte falha, e, se deleita a alguém, é porque este alguém é um apreciador ou receptor falho, que por uma razão qualquer perdeu a capacidade de apreciação do belo.
• Mas a arte é superior à sapataria e diversa dela na mesma medida em que tudo quanto é espiritual o é com relação a tudo quanto seja corporal, e na mesma medida em que um fim espiritual é sempre superior a qualquer fim corporal.
Logo, o fim da obra de arte não é fazer o belo, não é fazer coisas belas (o que implicaria uma clara tautologia), mas sim, fazendo o belo, fazendo coisas belas, deleitar ou comprazer o homem, o qual, porém, deve ter intacta a sua capacidade de apreciar o belo e rejeitar o feio.
Em tempo 1: Uma sociedade capaz de apreciar a “música” de um Pink Floyd, de um Miles Davis, de um Schoenberg, com todas as suas cacofonias e desarmonias e estridências, é uma sociedade, digamos, esteticamente enferma. Perdeu o senso da proporção, o senso do belo – o senso mesmo da forma. É já, em verdade, uma sociedade em estado “terminal”: o apreciar tais tipos de música pressupõe pelo menos os estertores do intelecto. “A inteligência está em perigo de morte”, dizia com razões de sobra Marcel de Corte.
Em tempo 2: No próximo post veremos a solução da segunda questão enunciada mais acima, a qual, por sua vez, se desdobrará em algumas outras.