Carlos Nougué
Ao final do post anterior, disse eu que, ao contrário da música de Bach, a música (e a arte) romântica expressa, em grande parte dos casos, uma desarmonia das esferas — ou melhor, a desarmonia do homem revolucionário, liberal e afastado da Igreja. Mas, pode-se replicar, também Bach, luterano, estava afastado da Igreja...
Sim, estava, mas não do mesmo modo que o artista romântico. Lutero, sempre astuto, sabia perfeitamente que não se muda da noite para o dia uma sensibilidade mais que milenar de uma multidão, e por isso (como o diz explicitamente) não suprimiu imediatamente alguns dos aspectos sensíveis da Missa católica, precisamente, para melhor vedar seu núcleo sacramental e sobrenatural: o sacrifício incruento sempre renovado no altar, a transubstanciação. Assim, não alterou essencialmente a seqüência das partes da Missa, manteve o latim em partes dela, não coibiu ostensivamente o culto a Maria (donde, aliás, um Magnificat como o de Bach), etc. Estava seguro de que o importante era a substituição da transubstanciação por uma “presença real” na assembléia dos fiéis, e a substituição, pois, do caráter sacramental e propiciatório da Missa por um caráter rememorativo e comemorativo. O restante, cumprido seu papel de cortina de fumaça, progressivamente se esvaziaria e, por inútil, ruiria.
Ora, Bach não era um teólogo. Era um simples fiel, membro de uma “guilda” de músicos (a família Bach). Era homem culto, é verdade, com estudos de teologia; mas não era um teólogo. (Aliás, nem sequer tinha formação universitária.) E como fiel participava da sensibilidade mais que milenar da cristandade. Não por nada se impressionou e emocionou tanto com o canto gregoriano, com a música de Palestrina e Frescobaldi e com o barroco de Couperin (com quem se correspondia) e Vivaldi, influências que se mesclaram com as protestantes do Norte da Alemanha (especialmente a de Buxtehude) e da tradição propriamente luterana de hinos e cantatas. Mais ainda, provavelmente teve contato com o movimento encabeçado por Leibniz (e Bossuet) de retorno ao seio da Igreja única.
Não por nada, não por nada, como se disse no post anterior, Bach rematou sua imensa e bela obra com uma católica Missa em Si menor: é patente nele, para os que conhecem sua vida e obra, o desejo de que se restabelecesse o estado anterior à cisão luterana. Não estou dizendo nada além disso; não estou dizendo que Bach fosse um criptocatólico; mas não por nada se encontraram entre seus livros os Exercícios Espirituais de Santo Inácio... E afirmo: tratava-se, também no caso de Bach, daquela sensibilidade que se negava a desaparecer.
Ora, o artista romântico era um homem em que já havia desaparecido aquela sensibilidade, substituída pela sensibilidade agnóstica, revolucionária e liberal. A sensibilidade do homem para quem a política não é a culminação da ética, e para quem a ética já não tem uma fonte universal e divina, porque para ele a ética acabou por ter sede na consciência individual. A sensibilidade do homem para quem a religião se reduziu, quando muito, a uma experiência individual e sentimental. A sensibilidade do homem, enfim, para quem o mais importante reside no sentimento, ou antes, nas paixões: na paixão de amar o amor e não o amado, ou melhor, de amar o amor como antecâmara da morte (lembremo-nos de Tristão e Isolda, em que o casal adúltero escolhe morrer por amor em vez de consumar o ato para o qual era adúltero); na paixão de morrer de rejeição do amado, ou de nostalgia de algo indefinido, ou de simples tuberculose – o mal do século; na paixão de tornar-se Demiurgo e autocriador, mas sobretudo de re-unir-se à “divindade das divindades” – o gnóstico Não-manifestado, o Nada, o nirvânico Nada.
Em tempo 1: Assim que morre Bach, sua música, que já era proibida nos templos calvinistas ou puritanos, é proibida também nos templos luteranos, por “demasiado complexa”. Que vaticinador, que estrategista foi Lutero, não?
Em tempo 2: Compare-se a música de Bach e a de Beethoven: naquela, as frases ascendentes e as descendentes têm, quase sempre, comprimento semelhante, ao passo que na do pré-romântico as descendentes são, também de maneira geral, muito mais longas que as ascendentes – donde a sensação de dilaceramento, ou de conflito, ou de queda, ou de obscuridade. Já se havia perdido a capacidade (e o desejo) da verdadeira harmonia e equilíbrio, e pois do verdadeiro belo, e estava aberto o caminho para todos os atonalismos e dodecafonismos. Voltarei ao tema.
Ao final do post anterior, disse eu que, ao contrário da música de Bach, a música (e a arte) romântica expressa, em grande parte dos casos, uma desarmonia das esferas — ou melhor, a desarmonia do homem revolucionário, liberal e afastado da Igreja. Mas, pode-se replicar, também Bach, luterano, estava afastado da Igreja...
Sim, estava, mas não do mesmo modo que o artista romântico. Lutero, sempre astuto, sabia perfeitamente que não se muda da noite para o dia uma sensibilidade mais que milenar de uma multidão, e por isso (como o diz explicitamente) não suprimiu imediatamente alguns dos aspectos sensíveis da Missa católica, precisamente, para melhor vedar seu núcleo sacramental e sobrenatural: o sacrifício incruento sempre renovado no altar, a transubstanciação. Assim, não alterou essencialmente a seqüência das partes da Missa, manteve o latim em partes dela, não coibiu ostensivamente o culto a Maria (donde, aliás, um Magnificat como o de Bach), etc. Estava seguro de que o importante era a substituição da transubstanciação por uma “presença real” na assembléia dos fiéis, e a substituição, pois, do caráter sacramental e propiciatório da Missa por um caráter rememorativo e comemorativo. O restante, cumprido seu papel de cortina de fumaça, progressivamente se esvaziaria e, por inútil, ruiria.
Ora, Bach não era um teólogo. Era um simples fiel, membro de uma “guilda” de músicos (a família Bach). Era homem culto, é verdade, com estudos de teologia; mas não era um teólogo. (Aliás, nem sequer tinha formação universitária.) E como fiel participava da sensibilidade mais que milenar da cristandade. Não por nada se impressionou e emocionou tanto com o canto gregoriano, com a música de Palestrina e Frescobaldi e com o barroco de Couperin (com quem se correspondia) e Vivaldi, influências que se mesclaram com as protestantes do Norte da Alemanha (especialmente a de Buxtehude) e da tradição propriamente luterana de hinos e cantatas. Mais ainda, provavelmente teve contato com o movimento encabeçado por Leibniz (e Bossuet) de retorno ao seio da Igreja única.
Não por nada, não por nada, como se disse no post anterior, Bach rematou sua imensa e bela obra com uma católica Missa em Si menor: é patente nele, para os que conhecem sua vida e obra, o desejo de que se restabelecesse o estado anterior à cisão luterana. Não estou dizendo nada além disso; não estou dizendo que Bach fosse um criptocatólico; mas não por nada se encontraram entre seus livros os Exercícios Espirituais de Santo Inácio... E afirmo: tratava-se, também no caso de Bach, daquela sensibilidade que se negava a desaparecer.
Ora, o artista romântico era um homem em que já havia desaparecido aquela sensibilidade, substituída pela sensibilidade agnóstica, revolucionária e liberal. A sensibilidade do homem para quem a política não é a culminação da ética, e para quem a ética já não tem uma fonte universal e divina, porque para ele a ética acabou por ter sede na consciência individual. A sensibilidade do homem para quem a religião se reduziu, quando muito, a uma experiência individual e sentimental. A sensibilidade do homem, enfim, para quem o mais importante reside no sentimento, ou antes, nas paixões: na paixão de amar o amor e não o amado, ou melhor, de amar o amor como antecâmara da morte (lembremo-nos de Tristão e Isolda, em que o casal adúltero escolhe morrer por amor em vez de consumar o ato para o qual era adúltero); na paixão de morrer de rejeição do amado, ou de nostalgia de algo indefinido, ou de simples tuberculose – o mal do século; na paixão de tornar-se Demiurgo e autocriador, mas sobretudo de re-unir-se à “divindade das divindades” – o gnóstico Não-manifestado, o Nada, o nirvânico Nada.
Em tempo 1: Assim que morre Bach, sua música, que já era proibida nos templos calvinistas ou puritanos, é proibida também nos templos luteranos, por “demasiado complexa”. Que vaticinador, que estrategista foi Lutero, não?
Em tempo 2: Compare-se a música de Bach e a de Beethoven: naquela, as frases ascendentes e as descendentes têm, quase sempre, comprimento semelhante, ao passo que na do pré-romântico as descendentes são, também de maneira geral, muito mais longas que as ascendentes – donde a sensação de dilaceramento, ou de conflito, ou de queda, ou de obscuridade. Já se havia perdido a capacidade (e o desejo) da verdadeira harmonia e equilíbrio, e pois do verdadeiro belo, e estava aberto o caminho para todos os atonalismos e dodecafonismos. Voltarei ao tema.