quarta-feira, 8 de agosto de 2012

Maquiavel em clave teológica (V)



(Continuação deste texto)


Sidney Silveira



2. O humanismo político e Maquiavel — precursores da contemporaneidade


A história humana é permeada de ciclos e contraciclos, movimentos pendulares entre pontos extremos, idas e vindas, avanços e retrocessos — ou, como diria Giambattista Vico, corsi e recorsi. No contínuo devir histórico, cada época ou etapa é demarcada por mudanças significativas que reorientam as sociedades e os indivíduos a partir de novos vetores, os quais se espraiam pelos pontos cardeais daquilo a que costumamos chamar civilização: religião, filosofia, política, economia, arte, ciências.


O naufrágio de boa parte das periodizações históricas modernas reside em sua enorme dificuldade de perceber um sentido de unidade subjacente às mudanças — dado o materialismo, maior ou menor, que lhes serve de esteio. Assim, devido ao vício de raiz presente na maioria absoluta das escolas que dominaram o panorama do estudo da história no século XX, é comum observarmos eruditos historiadores apoiar suas teses em fragilíssimas analogias, projetando retoativamente no passado suas próprias idéias preconcebidas ou, o que é pior, os extemporâneos objetivos políticos por meio dos quais pretendem desconstruir a história, como é o caso dos que pretendem fazer do filósofo Raimundo Lúlio o longínquo precursor do ecumenismo hoje defendido acerrimamente pelas autoridades da Igreja. Em geral, eles não conseguem sequer enxergar que toda mudança de mentalidade no decorrer do tempo provém, em síntese, da assunção de novas atitudes perante um conjunto fundamental de problemas perenes que transcendem a todos os períodos históricos.


Tomemos como exemplo a Jacques Le Goff, historiador que costuma transpor para o período medieval valores ou pressupostos completamente estranhos àquela época, como faz em sua famosa biografia São Francisco de Assis ao interpretar o beijo que o notável Santo dera num camponês, de quem se compadecera, como um claro “sinal da consciência de classes”. E mais: afirma o conhecido autor francês nesta coletânea heterogênea de textos, sem apoiar-se em nenhuma documentação primária, que o objetivo de São Francisco era “superar as divisões sociais dando em sua ordem o exemplo da igualdade”. Por aí se vê que Le Goff parece confundir São Francisco de Assis com Barrabás, ou então com Marx.


Como o nosso estudo histórico-político sobre Maquiavel parte das premissas da teologia católica, estabeleçamos um dos seus conceitos basilares: somente à luz da fé — levando em vista os desígnios da Providência Divina — é possível dissolver as aparentes antinomias e contradições de uma mesma época histórica, assim como enxergar as passagens de um período a outro como um movimento, unitário, contínuo, não obstante as marchas e contramarchas acima referidas. Trata-se de algo bem distinto dos corsi e recorsi de Vico, pois o pensador italiano naufragara numa espécie de “secularização da escatologia”, malgrado concebesse a Providência Divina como a fundamental força configuradora da história a conduzir os instintos e propósitos dos homens. O problema é que Vico tentara conciliar o cristianismo com uma filosofia imanentista irredutível a ele, mesclada de elementos gnósticos e de mitologias primitivas. A sua Ciência Nova é uma forçosa metafísica da mente humana, ou, noutras palavras, a história transtemporal do espírito humano à qual a Providência Divina parece limitar-se, idéia que dá margem a várias incongruências teoréticas.


Por sua vez, a orientação teleológica de todo o conjunto da história a uma realidade supra-histórica é capaz dotar de pleno sentido cada um dos ciclos ou épocas. Aliás, foi justamente a perda desse sentido escatológico da história — ou seja, do caminhar humano rumo a um estado de perfeição impossível de consumar-se neste mundo — o que gerou as utopias materialistas, tão pródigas no horizonte político em que os bens materiais e os espirituais se divorciaram. Tal divórcio, a propósito, inaugura a longa marcha anti-espiritualista que parece ter continuidade até o fim dos tempos, quando o mundo clamará pelo Anticristo, ou seja, pelo homem ímpio que fechará a aldeia global a qualquer possível influxo da graça. Nesta perspectiva teológica, é lícito supor que a marca da Besta representa a culminância do humanismo político, ou seja, a completa retirada de Deus das esferas do poder legislativo e executivo, em todas as nações.


Antes de fazermos comparações ou traçarmos paralelos entre períodos históricos aparentemente díspares — como a época presente e o tempo de Maquiavel —, vale apontar para a necessidade da aplicação do instrumento da analogia à ciência histórica, da qual nos valeremos adiante para mostrar o movimento unitário iniciado no fim da Idade Média e que prossegue até os dias atuais.


Dias estes em que o maquiavelismo político é a norma.



2.1 História e analogia


Conforme se indicou anteriormente, a quase completa ausência de conhecimentos a respeito dos meandros da lógica é uma das carências mais facilmente identificáveis em teóricos da política posteriores ao século XIV. Ora, por ser a analogia um instrumento usual em lógica, além de formidável ferramenta presente em todas as ciências — desde a Antiga Grécia até os dias atuais —, não nos custa apontar o modo como dela faz uso a ciência histórica, em virtude de a história possuir um caráter eminentemente hermenêutico e, portanto, apoiar-se em comparações e analogias para alcançar a verdade possível em seu âmbito de investigações.


Neste ponto parece-nos oportuno registrar o seguinte: ao contrário da metafísica, que parte de princípios auto-evidentes e alcança verdades apodíticas de caráter universal, a história aproxima-se da verdade de forma assintótica e precária, a partir de vestígios consignados nos documentos do passado. Em terminologia tomista, podemos muito bem dizer que a dignidade da história como ciência é incomensuravelmente inferior à da metafísica, não apenas no tocante ao diferente grau de certeza que ambas logram, mas também no que tange à universalidade dos objetos formais a que ordenam os seus respectivos estudos. Seja como for, tanto a história como a metafísica necessitam da analogia para alcançar suas verdades.


Lembra-nos José Miguel Gambra, no extraordinário livro La analogía em general – síntesis tomista de Santiago Ramírez, que o vocábulo latino “analogia” traduz o conceito empregado por matemáticos pitagóricos e por Euclides. Ocorre que estes distinguiam entre λόγος, αναλογία e άνάλογον. Por λόγος entendiam eles uma relação de comensurabilidade entre duas quantidades homogêneas. Por sua vez, αναλογία significava um λόγος composto, ou seja, uma relação de comensurabilidade de duas relações do mesmo tipo; assim, se o λόγος exigia apenas dois termos, a αναλογία demandava, pelo menos, quatro. Por fim, άνάλογον se chamava cada uma das quantidades de que consta um λόγος, o qual naqueles primórdios significava “razão”, “cálculo”, “medição”, etc.[1]


A αναλογία foi acertadamente traduzida como proportio por latinos clássicos como, por exemplo, Cícero. Cerca de um milênio depois, como observara Santiago Ramírez, os escolásticos acabaram por misturar os termos e usar a palavra analogia para traduzir tanto o λόγος como a αναλογία dos gregos — o que causou certa confusão terminológica, em virtude da inclusão de dois modos da analogia que passaram a ser tomados por um só: a proportio e a proportionalitas. Daí preferir Ramírez, em seu clássico tardio De analogia, utilizar o conceito consagrado pelo Cardeal Caetano num período posterior ao de Santo Tomás — segundo o qual analogia atributionis substitui aproximativamente o λόγος grego, e analogia proportionalitatis traduz a αναλογία por excelência.[2]


Em sua dinâmica própria, a analogia é uma relação entre nomes, conceitos e coisas. Ademais, como afirma o Pe. Penido em alguns trechos do seu denso Le rôle de l’analogie em théologie dogmatique, as coisas reais significadas na analogia têm a função de indivíduos cuja comparação serve de parâmetro indutivo da própria noção de analogia. Neste contexto, todos os ramos das matemáticas fazem uso da analogia, na medida em que esta lhes dá as proporções que servem de objeto formal para os seus conhecimentos.


Mas o uso da analogia vai muitíssimo além, como aponta José Miguel Gambra.[3]


Vejamos:


Ø Na física, o exemplo clássico é o de Newton, cuja lei se vale de uma analogia, a saber: os corpos se atraem na razão direta de sua massa e na razão inversa ao quadrado de suas distâncias;


Ø Na filologia aparecem freqüentes analogias no estudo da formação das palavras;


Ø A gramática, ao estatuir leis pelas quais os verbos são ditos regulares ou irregulares, utiliza a análise de proporções e semelhanças existentes entre declinações e conjugações verbais;


Ø Na paleontologia houve quem, apoiando-se no estudo da proporção entre os órgãos, reconstituísse a partir de um só osso todo o corpo de um animal jurássico;


Ø Na biologia são incontáveis as analogias entre as funções orgânicas de um mesmo animal, ou entre espécies distintas;


Ø No direito, seja civil ou eclesiástico, encontramos regras analógicas em profusão, como a que diz, por exemplo, o seguinte: “De duas coisas similares há de fazer-se o mesmo juízo”;


Ø Em ciência política, o exemplo de Gambra bebe da fonte do próprio Tomás de Aquino, que ensina em seu Comentário ao Evangelho de Mateus: “Assim como ao perder a saúde o homem tende à morte, assim também ocorre com a paz, que ao se retirar do reino acarreta a ruína”;[4]


Ø Em lógica é famosa a formulação de um princípio baseado na clássica analogia de proporcionalidade: o silogismo dialético está para a opinião assim como o silogismo apodítico está para a ciência;


Ø Em cosmologia há um exemplo de analogia inspirado na física aristotélica, segundo o qual a geração está para a alteração assim como a substância está para a qualidade;


Ø Na ética, afirma Tomás de Aquino algo deveras interessante por meio de uma analogia: “O que para o intelecto é afirmação e negação, para o apetite é perseguição e fuga; e o que para o entendimento é verdadeiro e falso, para o apetite é bom e mau”.[5]


Ø A teologia sagrada, por sua vez, é regida pelo princípio da analogia fidei, segundo a qual os diversos lugares das Escrituras são congruentes entre si e, em seu conjunto, correspondem aos Dogmas da Igreja.


Caracteriza todas estas analogias o fato de se tratar de semelhanças entre coisas diversas ou proporções entre coisas similares. No caso da história, o procedimento analógico é absolutamente usual e observável em todas as sínteses ou periodizações já esboçadas pelo espírito humano, com maior ou menor grau de acerto, com mais ou menos coerência, de maneira mais ou menos defensável, com o uso reto da lógica ou de forma absurda. Em suma, de Agostinho a Vico; de Hegel a Marx; de Joaquim de Fiore a Hobbes; de Burckhardt a Villoslada; de Thomas More a Croce; de Voegelin a Gramsci; de Dante a Marsilio de Pádua — nestes e em todos os autores importantes que se dedicaram ao estudo da história observamos o recurso à analogia, de maneira consciente ou inconsciente.


Ora, por ser a história um frágil tipo de permanência do passado no presente, ela é uma ciência essencialmente interpretativa e, portanto, sempre precisará recorrer a analogias.


Estabelecido este princípio, agora sentimo-nos à vontade para fazer um paralelo entre Maquiavel e o admirável mundo contemporâneo.



3. Mentira religiosa e mentira política


(continua).
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1- José Miguel Gambra, La analogía em general – sínteses tomista de Santiago Ramírez. EUMSA, 2002, p.96.


2- José Miguel Gambra, op. cit., p.97.


3- José Miguel Gambra, op. cit., pp. 100-102.


4- Tomás de Aquino, In Evangelium secundum Matheum, cap. 12, n. 2.


5- Tomás de Aquino, Suma, II-II, q. 20, art.1.