Sidney Silveira
Entre a esperança como afeto natural humano e a Esperança cristã, virtude teologal infusa, a diferença não é apenas de grau, mas de espécie. A Esperança cristã, devido a sua fonte sobrenatural, embora tenha como objeto um bem futuro (o que é próprio de toda esperança, como adiante veremos), não se fundamenta em conjecturas, estimativas ou cálculos probabilísticos em vista da aquisição do bem esperado, mas em Deus. É o “esperar contra toda a esperança” de que fala o Apóstolo ao referir-se a esta virtude sobrenatural infundida por Deus na alma de Abraão (Rom. IV, 18).
Quatro são, segundo Santo Tomás de Aquino, as características da esperança como movimento do apetite concupiscível, afeto natural humano:
Ø Que seja de um bem, pois naturalmente ninguém espera o mal;
Ø Que esse bem seja futuro, pois não se espera o presente;
Ø Que seja relativamente árduo, pois não se espera o que está à mão;
Ø Que seja possível, pois naturalmente não se espera o impossível.
Por sua vez, duas são as notas distintivas da Esperança que é virtude teologal infusa:
Ø Que o bem esperado seja supremo: Deus;
Ø Que (ao contrário da esperança enquanto afeto oriundo dos apetites naturais) não seja alcançável por meio de nenhuma criatura, senão por Deus mesmo, mediante a Sua graça.
Em palavras simples, a Esperança como virtude sobrenatural tem como objeto um bem absolutamente impossível de ser alcançado por esforços ou estratagemas humanos. É a Esperança na visão beatífica, na felicidade perfeita que só se pode realizar sob a luz da glória. Não se trata, pois, de uma virtude especulativa, e sim ética (ou seja: radicada na razão prática), a qual, movida por Deus mediante a graça, confirma a vontade humana na adesão ao bem absoluto.
Vale destacar que a esperança natural e a Esperança sobrenatural não se autoexcluem, mas se pode dizer perfeitamente que a sobrenatural, como virtude infusa — dado o seu benévolo influxo de ordem superior — corrige, sana, limpa a esperança que é simples afeto humano das apetências ou desejos desordenados. Daí que o axioma gratiam non tollit naturam, sed perficit (a graça não destrói a natureza, mas a aperfeiçoa) se aplique muito bem a isto de que agora falamos: o natural alcança o optimum, a excelência, devido à virtude do sobrenatural. Assim, esperando sobrenaturalmente em Deus o homem adquire um senso de realidade agudo com relação à transitoriedade, à caducidade dos bens deste mundo, pelos quais tantas almas se perdem, algumas delas em definitivo.
Como bem dizia São João da Cruz por meio duma linguagem mística, chega-se à união com Deus passando antes de tudo pela noite escura dos sentidos, o que implica literalmente pulverizar toda e qualquer humana esperança nos bens deste mundo, para somente então, ainda nesta vida, possuí-los, fruí-los, realizá-los sem desordem — de acordo com os critérios da reta razão e em obediência à lei divina. Em suma, possuí-los sem que representem um empecilho formal para a consecução do fim último em nossa alma: Deus mesmo, alfa e ômega, destino de todas as criaturas — mas de modo muito particular das racionais (como os homens e os Anjos), que ou fruirão a Sua presença eternamente, na glória, ou d’Ele desesperarão para sempre, no inferno. Pelo menos de acordo com a sã teologia, e não conforme os critérios da nouvelle théologie denunciada nos anos 50 por Garrigou-Lagrange, ou coisas piores que integram o indeglutível cardápio modernista.
É necessário neste ponto distinguir a esperança como afeto humano de algo que lhe é muito afim, no plano natural: a cupidez ou desejo (cupiditas sive desiderium). Diz o Aquinate na Questão Disputada Sobre a Esperança (a.1) que o desejo se refere a quaisquer bens de forma indiscriminada, ao passo que a esperança diz respeito aos bens árduos, como acima mencionado. É mais ou menos a diferença entre desejar comer um suculento filé no restaurante da esquina e esperar que uma linda e virtuosa mulher se torne, futuramente, a esposa com quem se compartilhará a vida, assim como o caminhar na fé. Mas reiteremos: muito acima tanto daquele prosaico desejo por carne como desta humana esperança de feliz enlace matrimonial — aqui arrolados como meros exemplos — está a Esperança sobrenatural cujo objeto transcende ao nosso intelecto, como frisa Santo Tomás:
“O objeto da virtude [teologal] da Esperança é o bem árduo inteligível que está além do intelecto [humano] (supra intellectum existens)".
(Suma Teológica, II-II, q. 18, art. 1, ad.1).
Trata-se, pois, do bem inteligível supremo que deifica a inteligência. Um bem de tal ordem que conforma a inteligência humana a si, levando-a a um ápice, a uma perfeição operativa que ela, por suas próprias forças naturais, não poderia alcançar de forma alguma. Assim, conhecido o Bem Sumo, que é Deus, nada mais se pode esperar, razão pela qual a única das virtudes teologais que existirá no céu será a caridade — lá não havendo nem fé nem esperança, de acordo com Santo Tomás.
Contra Impugnantes em nova fase
Apresentadas, pois, as principais características da esperança como virtude teologal infusa e também como afeto natural, vale dizer o seguinte: é enorme a sensação de liberdade que se tem quando a ação não é mais vetorizada, premida, movida por humanas esperanças. Age-se, neste caso, não mais buscando o bom sucesso nas ações, mas por um dever de responsabilidade — e sem a mais remota esperança humana de alcançar este ou aquele resultado. Num certo sentido age-se quixotescamente, mas movido não pela loucura humana, como no caso do engenhoso fidalgo da Mancha, e sim pela loucura da fé — que é escândalo para os gentios, para os judeus e, hoje em dia, infelizmente, para boa parcela de católicos que até com os Dogmas se escandalizam.
Certamente ninguém chega a tal ponto de desapego sem passar pela tristeza, que é uma paixão da alma; sem passar por essa dor nascida da consciência efetiva da perda da possibilidade de alcançar-se determinado bem — árduo e possível — que se esperava. Mas como um dos remédios para a tristeza é o pranto (cfme. Suma Teológica, I-II, q. 38, art. 2, resp), nada como chorar, verter lágrimas, deixar a tristeza escorrer pelas gotas de água e sal que nos escapam dos olhos nessas horas, tendo claras na mente, como um dístico espiritual, as palavras de Nosso Senhor: “Bem-aventurados os que choram, porque serão consolados” (Mt. V, 4).
Ditas todas estas coisas, informamos que o Contra Impugnantes, espaço de divulgação do tomismo tradicional na web, entra a partir de agora em nova fase, pois o seu idealizador e redator perdeu totalmente a esperança em qualquer resultado prático com relação a este apostolado teológico-filosófico pela internet. E mais: perdeu totalmente a esperança humana de mudança no quadro atual do Catolicismo, a curto, a médio ou até mesmo a longo prazo. Isto porque, dada a corrupção doutrinária generalizada a que se chegou, o retorno à Tradição da Igreja ao nosso ver só poderá acontecer por meio de um imenso milagre, pois a natureza não dá saltos. Noutras palavras: as autoridades vaticanas não abandonarão naturalmente o modernismo que elas mesmas propagaram ao longo das últimas décadas, modificando totalmente a mentalidade católica, o sentir comum dos fiéis, a ponto de retirar muitas almas da fé intra Ecclesiam. Sim, o Concílio Vaticano II e o Magistério liberal que se lhe seguiu produziram uma horda imensa de católicos sem fé, de católicos que acreditam em alhos e bugalhos, em idéias as mais sofisticadas e pirotécnicas, mas não nas verdades da Sagrada Escritura, não no Magistério solene da Igreja. Católicos de batismo, mas não de fé, e, portanto, sem as obras que esta produz. É aberrante, mas verdadeiro.
Isto pode parecer duro para o paladar adocicado de Dona Maricota — arquetípica “ministra” da Eucaristia na paróquia X, adepta apaixonada do ecumenismo, da antiapostólica pastoralidade vaticano-segunda, incentivadora das cristotecas dançantes sob luzes estroboscópicas e baticuns feeéricos, na Igreja do seu bairro, etc. —, mas o fato é o seguinte: não sendo a fé uma crença subjetiva, e sim a virtude teologal infundida por Deus em nossa inteligência, que a faz anuir à integralidade das verdades reveladas na Sagrada Escritura e custodiadas magisterialmente pela Igreja, é evidente que muitos, muitíssimos hoje dentro do Corpo Místico se voltam contra os dados da fé, e com isto se colocam fora dela, não raro sem o saber. Para se ter uma pálida idéia disso, por exemplo hoje no Seminário do Rio de Janeiro se ensina o mito adâmico, contrariando a Sagrada Escritura, o Magistério solene infalível, a doutrina dos Santos Doutores, etc. Mas este é apenas um exemplo modesto; não os multipliquemos neste breve texto.
Contemplados com espírito sereno tanto a hierarquia das últimas décadas como os movimentos por ela aprovados com louvor e triste deferência, e os frutos que tudo isso produziu, a impressão que se tem é a seguinte: a Igreja transformou-se numa superestrutura moldada para impedir a todo custo a santidade em suas fileiras. Prova disso é que os melhores são afastados dos Seminários ou boicotados de todas as formas, até que desistam ou procurem refúgio em grupos tradicionalistas, alguns dos quais altamente problemáticos, ou então se tornem sedevacantistas. Conheço casos gritantes! Ao passo que pessoas sem a mais remota vocação sacerdotal (e, em verdade, nem mesmo intelectual, filosófica) vão ordenando-se para depois fazer o diabo usando, direta ou indiretamente, o nome da Santa Igreja. Vendo o atual estado de coisas, só um coração de pedra poderia não se entristecer.
Mas perder a esperança humana, em nosso caso, implica porventura depor as armas em defesa da fé? Em absoluto. Implica apenas mudar a forma de atuação. É o que faremos. A partir de agora, o ritmo dos textos postados no Contra Impugnantes não será mais regular, conforme vem acontecendo há três anos: para mensurar isto, até a última postagem decorreram 1150 dias de existência do blog, com 716 publicações — o que dá uma média significativa de uma postagem a cada 1,6 dia, aproximadamente. Esta superatividade acaba aqui.
Portanto, continuaremos num ritmo bem menor, até porque precisamos ganhar o pão cotidiano. As séries de textos ainda em curso (como sobre os endemoniados, sobre Xavier Zubiri, etc.) serão completadas, mas sem pressa, e algumas talvez apenas noutro formato. A nossa atuação estará mais centrada na edição de livros tanto pela Sétimo Selo como pela editora É. Livros de filosofia e teologia escolásticas. Sinto-me compelido a dar esta informação em virtude do elevado número de acessos diários que o blog possui.
A propósito, vale dizer antes de encerrar este texto que o Contra Impugnantes cumpriu efetivamente o papel de dar grande visibilidade à obra de Santo Tomás de Aquino no Brasil, fora dos seminários e das universidades católicas, nas quais muitas vezes só não se aceita o que é católico (os exemplos são tristemente incontáveis). Mas dentro da Igreja, na medida em que o seu alcance entre nós, católicos brasileiros, foi bastante razoável: além dos acessos diários ao blog, inúmeras pessoas, de diferentes partes do país (leigos, seminaristas, padres, estudantes de filosofia, etc.), entram em contato direto conosco para tratar de algo relacionado à obra do Aquinate.
A estes amigos agradecemos de coração. E aos inimigos, que não são poucos nos meios católicos, por fortalecer-nos na fé.
Vida que segue.
P.S. As próximas postagens deverão ser sobre algumas novidades editoriais e, também, a indicação de links no Youtube para trechos (em vídeo) das palestras do evento Santo Tomás, médico da alma.