segunda-feira, 24 de maio de 2010

Para que estudar Santo Tomás?

Basílica de Saint-Denis
Sidney Silveira
Já se fez alusão no Contra Impugnantes a alguns problemas do tomismo contemporâneo, que definitivamente parece ter trocado as sínteses abarcadoras por estudos tópicos — muitos dos quais, infelizmente, desgarrados dos princípios teológicos informadores da doutrina do Aquinate, razão pela qual acarretam desvios que certamente devem entristecer deveras a Santo Tomás, no céu. Mas há algo ainda pior: o total desprezo das questões teológicas ligadas à cristologia, à eclesiologia, à teologia moral, à escatologia, à teologia trinitária, aos sacramentos, ao Magistério, à doutrina do Verbo encarnado, à defesa da fé, ao sacerdócio, à angelologia, à demonologia, etc. Um tomismo simplesmente alheio à Igreja, como se isto fora, de fato, possível.

Em resumo, o estímulo a que se formem especialistas sem antes lhes dar um vislumbre do conjunto dessa colossal arquitetura catedralícia — e de seu objetivo principal, que é servir a Deus — é uma lástima. Imaginemos um sujeito que sequer leu a Suma Teológica por inteiro e já é pós-doutor laureado em alguma área do tomismo, e não estaremos longe do cenário que lhes estou traçando. São pessoas capazes de aferrar-se às normas de redação da ABNT (a título de critério “acadêmico”) e a outras questões menores, mas em seus escritos filosóficos estão abaixo da crítica.

Quando comparo estudos metafísicos ou gnosiológicos de alguns tomistas, sobretudo da última década, à obra de um G. Manser, ou de um Santiago Ramírez, de um Garrigou-Lagrange, por exemplo, a impressão é de que aos primeiros lhes falta o essencial, o sumo, o mais importante. É como se houvessem trocado a mais rica polifonia — com os seus elevados matizes espirituais — pelo samba de uma nota só. Nestes casos, não é raro encontrar nas conclusões dos trabalhos aberrações contrárias à fé, ao Magistério e, também, ao espírito da obra do Doutor Comum.

Por esta razão, se a metafísica, por elevada que seja, não for para o estudioso da obra de Santo Tomás um simples instrumento para o conhecimento de algo maior, se não for, enfim, “serva da teologia”, e esta por sua vez não servir ao fortalecimento na fé (para sua posterior defesa e instrução dos irmãos em Cristo), melhor seria nem começar. Quero dizer com isto o seguinte: o sujeito estuda Santo Tomás de Aquino para transformar-se num verdadeiro teólogo. Caso contrário, será um generalista da pior espécie, um vulgarizador de algo nobilíssimo. E veja-se que uso aqui o vocábulo “teólogo” não de forma equívoca, nem com analogia de atribuição extrínseca, mas simplesmente para significar o hábito da ciência teológica que uma pessoa desenvolveu após longos anos de estudos e, é evidente, o auxílio da graça. Tal habitus não é aferido nem conferido por nenhum diploma de Teologia, ainda que do mais importante seminário do mundo. A propósito, foram justamente os péssimos teólogos os criadores, nas últimas décadas, da babel doutrinal que, com santa ironia, o Padre Álvaro Calderón chama de consenso “plurânime” pós-conciliar. Uma confusão dos demônios que teve dramáticas conseqüências práticas, tudo com o beneplácito da Hierarquia: qualquer um pode constatá-las ao ir a duas Missas num mesmo quarteirão do bairro onde mora. Isto para não falar dos escândalos morais que hoje escandalizam a muitos, e que em sua maior parte são decorrentes da perversão da doutrina católica, como ainda teremos oportunidade de demonstrar em vários textos.

Quando Moisés aproximou-se da sarça de fogo, Deus pediu-lhe que retirasse as sandálias porque pisava em solo sagrado (Ex. III, 5). Analogamente — e com a devida vênia, é claro —, podemos dizer o mesmo de quem estuda Tomás de Aquino: para adentrar esse templo de amor a Deus que é a sua luminosa obra — o céu visto da terra**, segundo o Papa Pio XI —, é preciso despir-se tanto quanto possível das sandálias das idéias próprias e da presunção do saber. Então, o primeiro passo terá sido dado. Por isso, ao livre-pensador liberal estão vedadas as sacrossantas portas da catedral do tomismo.

Estas breves palavras foram a propósito do email de um leitor nosso que reclamou de estarmos abordando, nos últimos tempos, com maior freqüência, temas eminentemente teológicos. Pedia esse amigo que voltássemos à metafísica e às aulas de filosofia, ao que lhe respondi, amigavelmente, o seguinte: em se tratando de Santo Tomás de Aquino, não apenas a metafísica, mas todos os demais tópicos da filosofia estão ordenados à teologia. É a tese da subalternação das ciências, de que ainda trataremos amiúde.

Tendo isto em vista, possivelmente amanhã continuaremos a série sobre a dignidade sacerdotal, baseada num dos clássicos do padre Garrigou-Lagrange. Um grandíssimo teólogo tomista e, portanto, um metafísico da mais alta estirpe.

** La Somma Teologica è il cielo veduto dalla terra. Pio XI. Alocução ao Instituto Internacional Angelicum, em 12 de dezembro de 1924.