quarta-feira, 5 de maio de 2010

Castidade e celibato (III): natureza e graça


Sidney Silveira
Para esclarecer os princípios que informam a doutrina que levou a Igreja a adotar a medida disciplinar do celibato sacerdotal, é fundamental não esquecer que a perfeição cristã tem uma dupla dimensão: a vida natural e a sobrenatural. No homem, o princípio interno da vida natural é a alma (tomo-a aqui em seu preciso sentido aristotélico: como princípio intrínseco de movimento de um organismo natural); o da vida sobrenatural é a graça. Entre eles não existe solução de continuidade, pois, como ensina a boa teologia, a graça supõe a natureza. Isto significa que ela não é uma agressão à natureza, mas um auxílio de ordem superior, divino, que leva a natureza a realizar algo que está formalmente além das suas atuais possibilidades — mas sem jamais corrompê-la. Daí dizer-se que a graça não tolhe a natureza, mas a aperfeiçoa (gratia non tollit naturam, sed perficit).

Tudo isto serve para o assunto que nos ocupa nesta série de textos: vivido na graça de Deus, o celibato (tanto o sacerdotal como o dos leigos não casados) retrata o amor a Deus que leva a criatura racional a sacrificar algo natural em si, que é o apetite sexual, tendo por motivo a excelência cristã que é chamada a realizar (“Sede perfeitos, como o vosso Pai do céu é perfeito”, Mt. V, 48). Excelência para cuja consecução ele é um instrumento particularmente eficaz, dado ser um conselho evangélico. Excluir este dado de qualquer discussão sobre o celibato na Igreja é ignorância, má-fé ou, então, uma soma de ambas.

Certamente, com o nome “graça” podemos significar muitas coisas. Mas aqui a tomamos como o dom sobrenatural, concedido gratuitamente por Deus à criatura racional para a sua santificação e salvação eterna em virtude dos méritos de Cristo. Isto é, fundamentalmente, a graça. Não entro, por ora, nas distinções entre graça atual, graça santificante, graça antecedente, graça conseqüente, graça sacramental, etc., porque isto não importa para o esclarecimento da presente questão. O fato é que tanto o sacerdote quanto o leigo não casado celibatário (que antigamente se dizia estar em estado vidual) têm à sua mão um extraordinário organismo sobrenatural a que recorrer para fazer jus a seu estado, vivendo na graça de Deus sem ofendê-Lo em matéria grave. E sem descer de degrau em degrau rumo ao afastamento representado pelo pecado mortal habitual, que enlameia a alma.

Ditas estas coisas, é importante frisar que, embora o celibato não seja em si contrário à natureza do homem — seja in abstracto, seja in concreto — é no entanto um sacrifício de tal ordem, que só pode ser vivido em sua inteireza e plenitude com o auxílio da graça, sobretudo se consideramos o estado de fomes peccati que nos acossa a natureza. Não à-toa, em algum momento de sua imensa obra (que prometo indicar aqui noutra ocasião, pois estou sem tempo agora e estas coisas são como agulha num palheiro), Santo Tomás diz que, se não tivesse havido o pecado original, todos seriam casados. Ou seja: no estado de inocência, homens e mulheres se uniriam numa só carne (aos pares indissolúveis, é óbvio!), e não haveria celibato.

Isto indica ser no mínimo equívoca a opinião de que o celibato não atinge em nenhuma medida a natureza do homem, como se fora algo tão natural como o estado não-celibatário. Atinge, sim, nas operações (e não na essência), como veremos. Antes de tudo, aqui é preciso fazer uma nova distinção. Foi dito acima que o celibato é o sacrifício de algo natural no homem em vista de um bem de ordem superior. Mas como é possível sacrificar algo natural sem ir contra a natureza, já que também se afirmou que o celibato não é, em si mesmo, contra naturam? Para responder a isto é preciso aprofundar a questão e registrar que uma coisa é ir contra a natureza de um ente; outra, muito distinta, é esse ente natural não atualizar uma das suas possibilidades intrínsecas. No primeiro caso, a natureza necessariamente é atingida em uma de suas potências, e passa a ter um déficit; no segundo caso, apenas deixa acidentalmente de atualizar uma de suas potências. A título de exemplo, é a diferença entre um homem que não caminha porque não quer e outro que não pode caminhar porque lhe cortaram as pernas. No primeiro caso, não se atualiza uma potência específica da forma entitativa, sem no entanto corrompê-la; no segundo caso, o ente foi privado de uma de suas potências, contra naturam, e corrompeu-se nisto.

Eis, portanto, o aparente paradoxo: o celibato não corrompe a natureza, mas também não é natural em sentido absoluto (simpliciter). Ocorre que o seu motivo é sobrenatural: a abstinência não apenas dos prazeres ilícitos, mas também dos lícitos — para glória de Deus e bem da alma. Ora, os grandes teólogos e Doutores dizem-nos que o estado glorioso (a meta dos que sacrificam o próprio apetite em vista de uma felicidade sobrenatural que excede a qualquer alegria nesta vida) pressupõe o estado de graça. Ou, noutra formulação: a graça é o começo da glória (gratia inchoatio gloriæ), razão pela qual ninguém poderá ver a Deus se estiver com a alma manchada por qualquer tipo de pecado. E a castidade celibatária, vivida na graça de Deus, é um caminho muito seguro para a perfeição cristã que Nosso Senhor quis que alcançássemos.

Outra coisa: essa espécie particular de castidade que é o celibato cumpre a sua missão providencial no mundo, em virtude da santificação das almas da qual é um maravilhoso veículo, daí ter tido durante toda a história da Cristandade o mais elevado grau de apreço. Vivida na graça de Deus, repito, representa ele a mais excelente de todas as castidades: aquela que, segundo Emilio Gonzalez y Gonzalez (no belo tratado La perfección Cristiana), "brilha como sol no firmamento e se destaca por sua força, beleza e fragrância nos jardins da pureza, dado que participa das delícias do céu e constitui a jóia mais preciosa na terra — quando se trata de castidade virginal. Ela dignifica e enobrece sobremaneira quem a possui; transforma, eleva e espiritualiza os corpos de si sensuais e corruptíveis; converte o homem em anjo e o faz, em certo sentido, até mesmo superior aos anjos, pela luta e vencimento da concupiscência”.

(continua)