quarta-feira, 10 de março de 2010

Metafísica e mistério (II): ventríloquos do demônio

Sidney Silveira
Do mesmo modo como a História dos Dogmas da Igreja anda no compasso das heresias de cada época, a História da Filosofia está intimamente ligada às aporias, pois, contemplada em perspectiva, ela não é outra coisa senão a resolução — real ou presumível — das aporias no decorrer do tempo.

A diferença específica reside no fato de que, no primeiro destes dois casos, a definição solene do Magistério da Igreja tem caráter de verdade absoluta válida para todos os tempos e lugares, pois, quando a Igreja proclama uma doutrina relativa à fé e aos costumes como dogmática*, a alternativa é a seguinte: ou se calam as vozes obstinadas em contrário, ou serão expurgadas do corpo místico pela medicina do anátema. Roma locuta, causa finita est. Esta pelo menos é a doutrina tradicional, e isto acontece porque a Igreja define o Dogma com autoridade superior à humana, uma autoridade participada pelo próprio Cristo, em pessoa (cfme. Mt. XVIII, 19-20) — para horror do catolicismo liberal, engolfado no magma eclético das opiniões derrogadoras da fé —, ao passo que a filosofia, não tendo nenhuma autoridade suma que dirima as questões sobre as quais pairam dúvidas, percorre a sua trajetória nas marchas e contramarchas da humana busca da verdade.

Como se pode entrever do que acima se disse, a verdade filosófica é uma conquista humana; a verdade da fé é uma dádiva dos céus. Entre as duas não há distinção de gênero, mas apenas de objeto e de graus, pois, como demonstra de forma suficiente Santo Tomás na Suma Teológica (Iª, q. 16, artigos 6, 7 e 8), uma só é a Verdade eterna e imutável que serve de critério para todas as coisas ditas verdadeiras, sendo estas últimas mutáveis e não-eternas. Em resumo, sendo uma espécie de adequação entre o intelecto e a coisa, a verdade se dá formalmente no entendimento e, por isto, está em alguma medida condicionada por sua posse pela criatura racional**; mas em Deus, Ato Puro sem mescla de potência, ser e entender são a mesma coisa, por isso a verdade em Deus, que é o Próprio Ser Subsistente, não está sujeita a mudança e é eterna e imutável, além de ser o fundamento de todas as demais verdades.

Não nos estenderemos nisto porque não é o propósito deste breve texto. Mas, a título de exemplo, podemos dizer que as verdades temporais captáveis pelo entendimento da criatura racional estão para a Verdade eterna que é Deus assim como os entes estão para o Ser, numa relação de estrita dependência ontológica: se não houvesse a Verdade que se identifica em absoluto com o Ser, não haveria verdades que são a captação de algum aspecto do Ser pelas criaturas racionais; e se não houvesse o Ser (Ipsum Esse), não haveria entes, ou melhor: não haveria absolutamente nada — e, por conseguinte, nada cognoscível. Este é o arco metafísico codificado por Tomás de Aquino e que serve de base para a sua gnosiologia realista: o intelecto se faz inteligente mediante um inteligível em ato (cfme. Super Librum de Causis Expositio, Lectio III); ora, as coisas são inteligíveis na exata medida em que têm ser; logo, se não houvesse o Ser, não haveria nenhum inteligível que pudesse ser conhecido. Dito assim, parece simples...

No contexto destas distinções, vale lembrar que a filosofia não admite dogmas, dado que caminha sustentada pelos teoremas e doutrinas que propõe, os quais se aproximam da verdade sempre como uma assíntota. Dela pode servir-se a Sagrada Teologia — esta sim, sempre partindo da Revelação — para mostrar que a fé não apenas não se contrapõe à razão humana, como também jamais poderia falhar, pois parte de fonte divina inerrante. Quando os escolásticos do século XIII, o verdadeiro século das luzes, afirmavam que a filosofia é “serva da teologia” (ancilla theologiaæ), tinham em mente, com toda a clareza, que não há duas espécies de verdade incomunicáveis ou contraditórias entre si, uma natural e outra sobrenatural, mas uma só verdade — em parte alcançável pela razão natural, em parte apreendida pela razão graças à luz da fé (sub lumine fidei). Com Duns Scot e sua artificiosa separação entre metafísica e teologia, esta noção começa a perder-se.

Assim, quando teólogos liberais e liberais não-teólogos fazem as suas proposições totalmente à margem da Revelação, baseados em hermenêuticas as mais estapafúrdias e valendo-se de um arcabouço conceptual viciado na raiz (como seja, por exemplo, o da dialética hegeliana: tese-antítese-síntese), estão não apenas contrariando a fé, mas também a razão e o bom senso. Ademais, sem base metafísica e, por conseguinte, sem uma antropologia filosófica consistente, acabam perdendo o sentido do mistério do ser.

Estão na verdade fazendo o papel de ventríloquos do demônio, dando voz a tantos erros em matéria grave.

* Vale dizer que a guarda do precioso depósito da fé, pela Igreja, tem alcance filosófico, na medida em que o Magistério condena proposições ou doutrinas que, se aceitas em seus princípios, levariam à negação ou de algum dado da Sagrada Escritura ou a de alguma verdade que, embora não tenha sido expressamente revelada, está de tal forma integrada à Revelação que a sua derrogação alcançaria o âmago da fé. Assim, por exemplo, diferentes Papas do século XIX condenaram o ontologismo do padre e teólogo Antonio Rosmini, em razão dos grandes riscos que suscitavam para a defesa racional da fé.
** Não é ocioso lembrar que as criaturas irracionais — embora tendam a seus fins próprios na medida em que todo e qualquer ente está orientado ao optimum da espécie — são incapazes de verdade porque as operações de sua alma se dão no plano sensorial. Noutras palavras, não existe conteúdo inteligível para as criaturas irracionais. O animal irracional é, portanto, incapax veritatis porque as suas operações entitativas não transcendem à matéria.