sexta-feira, 26 de março de 2010

A prova da existência de Deus em Santo Tomás (II)



Sidney Silveira

SÉRIE INFINITA DE CAUSAS?

Uma objeção à prova da existência de Deus em Santo Tomás merece ser observada de perto, e diz o seguinte: é possível uma série de causas essencialmente ordenadas que remonte ao infinito, o que invalidaria a prova. Noutra formulação — cuja premissa inicial está pressuposta em vários argumentos do livro Tractatus de Primo Principio, de Duns Scot, embora ele não componha este silogismo—, diz-se: o que não repugna à razão é possível; ora, não repugna à razão conceber uma série infinita de motores e movidos na ordem do ser; logo, a série infinita de causas é possível[1].


Menciono Duns Scot propositadamente, para lembrar-nos que a dialética está acima da lógica, que não é senão o seu instrumento formal. Podemos logicamente compor silogismos irretocáveis, porém errôneos. No referido livro, usando de vários argumentos, de fato Scot prova a impossibilidade do regresso ad infinitum nas causas essencialmente ordenadas. E o prova de forma apodítica. Mas isto não retira o caráter problemático da premissa acima mencionada: a de que o que não repugna à razão é possível, pois aqui caberia distinguir, com toda a clareza, que nem toda possibilidade lógica o é no plano ontológico. Por exemplo: o probabilisticamente possível (que não repugna à razão), muitas vezes, é ontologicamente impossível, em virtude de uma série de impedimentos formais.

Não nos custa lembrar, neste ponto, que toda demonstração consiste em extrair uma verdade necessária, não conhecida de imediato em seus termos, de outras verdades evidentes com as quais ela se relaciona necessariamente. A posse da verdade filosófica, em suma, não é outra coisa senão o caminho percorrido pela inteligência do mais evidente ao menos evidente. E, aqui, os meus elogios a Scot são insuspeitos, dada a minha visão crítica quanto a uma série de pressupostos de que se vale em sua copiosa obra. Mas isto não invalida o que ela tenha de correto (lembro, a propósito, que Santo Tomás aproveitava verdades de vários filósofos, como por exemplo Avicena e Averróes, sem deixar de criticá-los severamente noutros pontos).

Comecemos, pois, pelos argumentos de Scot em De Primo Principio contra o regresso ao infinito de causas ordenadas por essência, não sem antes reiterar com toda a ênfase o seguinte: as causas são essencialmente ordenadas quando o posterior depende do anterior para ser e para operar; são acidentalmente ordenadas quando o posterior depende do anterior para ser, mas não para operar atualmente (conforme se explica aqui). Diz-nos o Doutor Sutil:

1- A totalidade das causas essencialmente ordenadas não pode ser causada por nenhum dos elementos da série, pois, neste caso, um destes elementos seria a causa de si mesmo, o que é absurdo. Logo, a série deve ser causada por algo extrínseco a ela, que lhe imponha necessariamente um limite. Sendo assim, é impossível a infinitude de causas ordenadas per essentiam.
2- Infinitas causas essencialmente ordenadas seriam simultâneas em ato, ou seja: dar-se-ia, na ordem do ser, uma infinidade atual de causas ordenadas, conclusão que só mesmo os filosofastros (philosophantes), segundo Scot, admitiriam. Pois muito bem: o que é anterior está mais próximo ao princípio. Mas onde não há princípio não pode haver anterior nem posterior, e, neste caso, não haveria a série de causas essencialmente ordenadas que observamos na realidade. Logo, é impossível que ela seja infinita.
3- Uma infinidade de causas acidentalmente ordenadas seria possível se se fundasse em causas essencialmente ordenadas infinitas, pois o essencial está para o acidental assim como o ato está para a potência. Mas, provada a impossibilidade da infinitude essencial, a fortiori fica demonstrada a impossibilidade da infinitude da série acidental.
4- Infinitude implica omnímoda simplicidade (omnimoda simplicitas), premissa da qual falaremos abaixo. Sendo assim, a infinitude exclui qualquer composição de partes quantitativas. Ora, toda e qualquer série de causas — seja acidental ou essencial — contém partes quantitativas, na medida em que numa relação causal há a anterioridade da causa e a posterioridade do efeito. Logo, a série causal não pode ser infinita.

Defender a infinidade de causas essencialmente ordenadas — objeção corriqueira a um ponto nevrálgico da prova da existência de Deus em Santo Tomás — pressupõe a idéia de que o infinito numérico seja possível em ato. Portanto, quando o objetor vier com esta conversa, o primeiro a fazer é mostrar-lhe que o infinito é algo a que nada pode ser acrescentado, pois se pudéssemos acrescentar algo ao infinito, não seria ele infinito. O infinito não tem partes. Sendo assim, as causas essencialmente ordenadas, que observamos na realidade, não podem ser em número infinito. Ademais, o infinito é, como diz Scot, omnimoda simplicitas, o que quer dizer simplesmente o seguinte: a única infinitude possível é ser Ato Puro sem mescla de nenhuma potência passiva e, portanto, sem partes quantitativas: Deus. Fora de Deus, portanto, nada pode haver de infinito, em sentido próprio.

Dirá Santo Tomás, neste contexto, que o infinito é aquilo que não tem limites de nenhuma ordem, seja formal ou material (Suma, I, q.7 art. 1, resp). A infinitude de Deus implica, pois, que Ele não está adstrito a nada, ou seja: é simplesmente Ser. A forma do Sócrates é a humanidade; a de Bucéfalo, cavalo de Alexandre, é a eqüinidade; a de Deus é Ser em sentido absoluto e, portanto, sem limites — infinito.

Outra prova interessante seria a seguinte: toda causa participa algo da sua perfeição ao efeito (por ex. o calor que o fogo participa à comida, no cozimento). Isto implica que o efeito é perfectível, ou seja, passível de receber de outrem novas formas. Ora, o que é perfectível carece de alguma perfeição acidental. Mas a infinitude exclui toda e qualquer composição de acidentes (cfme. Duns Scot, De Primo Principio, IV, Decima Conclusio). Logo, nenhuma relação causal pode remontar ao infinito; é preciso, pois, conceber uma causa primeira não causada por nenhuma da série.

Poderíamos trazer à luz também os porquês de o infinito ser, necessariamente, imaterial, e não uma magnitude. Mas isto foge ao objetivo do presente texto. Por ora, basta dizer que fica totalmente refutada a objeção à prova de Santo Tomás que pressupõe a possibilidade de uma série infinita de causas essencialmente ordenadas.

E o fizemos com argumentos de um dos seus principais opositores.
[1] Neste silogismo, aproveito apenas a primeira premissa de Scot, mas convém advertir que o Doutor Sutil defende enfaticamente a impossibilidade de as causas ordenadas remontarem ao infinito — como se viu nos exemplos citados acima. Apenas fiz questão de apontar a problematicidade da primeira premissa do silogismo, para mostrar que, noutro contexto, ela pode conduzir a erros tremendos, pois nem tudo o que não repugna à razão é possível em sentido absoluto.