segunda-feira, 21 de novembro de 2011

Sobre a eternidade do mundo — uma questão enfrentada por Tomás de Aquino

("O agora eterno é a medida de todas as durações")


Sidney Silveira


Recebo de uma jovem universitária, estudante de Física, a seguinte questão:


“Não entendo como pode ser lógico pensar em um universo que sempre existiu. Disseram-me que S. Tomás falava que não era algo completamente ilógico pensar nisso. De fato S. Tomás disse isso? Alguns ateus afirmam que o nada é algo abstrato, que nunca existiu. Então, não fogem da lógica pensarem em universo eterno?”.


Dada a relevância da questão, resolvo divulgar no Contra Impugnantes a resposta, que segue abaixo.


“Caríssima e jovem amiga,


Suas perguntas são profundas e tocam um ponto teológico delicado e de difícil resolução. Tentarei responder por partes.


Preâmbulos do problema


Antes de tudo, é preciso entender duas coisas: o que é a eternidade e o que é o tempo. Somente então se poderá responder se o mundo (tido aqui como o conjunto do universo criado) é ou não eterno.


O tempo, já dizia Aristóteles, é a medida do movimento segundo um antes e um depois, o que implica dizer duas coisas, como corolário: a) todo e qualquer tempo tem princípio, meio e fim; e b) só pode haver tempo onde há movimento. Mas isto com uma ressalva importantíssima: o filósofo grego – cuja definição de tempo acatamos – não se referia ao movimento local, apenas, mas ao movimento em toda a sua abrangência metafísica (sendo seis tipos de movimento em quatro categorias):


1º. Com relação à substância, geração e corrupção.


2º. Com relação qualidade, alteração;


3º. Com relação à quantidade, aumento e diminuição; e


4º. Com relação ao lugar, translação.


Pois bem. Em todos estes casos se dá o trânsito da potência ao ato, ou, em palavras simples, de uma possibilidade e/ou tendência real a uma atualidade. Por exemplo: a madeira, quando pega fogo, transitou da potência para assumir a forma do fogo ao ato de assumi-la efetivamente – e tal movimento pressupôs um tempo para suceder. A propósito, o tempo é justamente isto: sucessão cronométrica, medida das coisas que mudam ou se movimentam segundo um antes e um depois. Destaco isto porque há outros tipos de sucessão (ou de ação) que não implicam imersão na ordem temporal, como a sucessão evométrica, a que se dá no evo (o intermediário entre o tempo e a eternidade), e o agora permanente (nunc stans) no qual se dá o agir divino[1]. Mas este é assunto impossível de aprofundar nesta breve resposta.


Fiquemos apenas com as características destes três tipos mencionados de duração:


Ø Na sucessão cronométrica, o móvel altera a sua disposição entitativa substancial e/ou acidental ao longo do movimento, como no caso da madeira que corrompeu a sua forma específica para assumir a do fogo; no do homem cujos órgãos envelhecem até que adoeça e morra; ou ainda no de um homem que corre e, durante o percurso, flecte e tensiona alguns músculos. Nos dois primeiros exemplos, a mudança foi substancial; no terceiro, acidental. Em ocasiões tais, há duração sucessiva, multiforme e finita nas ordens substancial e acidental – e, por conseguinte, cronológica. É o tempo.


Ø Na sucessão evométrica, o móvel não altera a sua disposição entitativa substancial, embora transite acidentalmente da potência ao ato, como no caso do anjo, que, ao entender algo na ordem natural[2], apenas atualiza um conhecimento virtual que já possuía, graças às formas inteligíveis infundidas em sua inteligência por Deus. Em resumo, o antes e o depois do conhecimento natural do anjo não mudam nenhuma de suas disposições entitativas no tocante à substância, que é imaterial. Mas mudam-nas quanto aos acidentes. Aqui, portanto, a duração do movimento é simultânea, uniforme e finita na ordem substancial, porém multiforme e sucessiva na ordem acidental (conhecimento, operações, amor angélico, ódio diabólico). É o evo, ou eviternidade.


Ø No agora permanente da ação criadora de Deus não há alteração de nenhuma ordem, sendo aqui a duração simultânea, uniforme e infinita em sentido absoluto. Em suma, nem o tempo nem o evo podem ser a medida do Ser divino, pois o que é ato puro não pode ser medido pelo que tem mescla de potência. E aqui se dá propriamente a eternidade, a imutabilidade absoluta quanto ao ser – dado que a ação criadora de Deus acontece sem qualquer movimento na perspectiva metafísica.


Da eternidade, a propósito, dizia Boécio que é a posse total, simultânea e perfeita da vida interminável. Perguntando-se se esta famosa definição é correta (Suma Teológica, I, q. 10, art. 1), Santo Tomás ensina que se chega ao conceito de eternidade a partir do de tempo, ou seja: chega-se às essências simples a partir das compostas, dado não termos a intuição direta dos inteligíveis – chamada por alguns zubirianos, equivocadamente, de “cognição instantânea”. Observa o Aquinate não ser possível distinguir um antes e um depois em algo que seja absolutamente imóvel quanto ao ser, razão pela qual define a eternidade como a uniformidade do [Ser] que em sentido absoluto está isento de movimento[3]. A partir destas premissas, o conceito de eternidade se forja em dois vetores: primeiro, pelo fato de o eterno caracterizar-se por ser interminável, quer dizer, não ter princípio nem fim; segundo, porque na eternidade assim entendida não pode existir sucessão, sendo ela tota simul existens.


Estabelecidos estes princípios, vale dizer que o tempo, o evo e a eternidade são três tipos de duração no ser. E são essencialmente distintos porque referidos às realidades para as quais servem como medida de duração, numa escala em que o mais abarca o menos: Deus, substâncias separadas da matéria e entes compostos de matéria e forma. Neste contexto, o agora (nunc) do tempo está incluído no agora do evo e no da eternidade; o agora do evo se inclui no de eternidade; e o agora eterno é a medida de todas as durações, porque é o horizonte possibilitante delas, a permanência absoluta e infinita no ser – sem a qual sequer poderia haver durações relativas e finitas. Noutras palavras, não haveria tempo nem evo se não houvesse algo propriamente (simpliciter) eterno, ou seja, Deus.


Outro aspecto necessário a destacar para responder devidamente à indagação da jovem estudante de Física é o seguinte: a eternidade, em sentido absoluto, é uma propriedade exclusiva do Próprio Ser Subsistente, que é Deus. Todas as demais eternidades serão formalmente uma participação na eternidade divina — caso das almas e dos anjos. A premissa que serve de base para esta conclusão é a seguinte: como a eternidade está inextricavelmente unida à imobilidade metafísica, sendo Deus o único Ente absolutamente imóvel, ato puro sem mescla de potência passiva alguma, só a Ele caberá ser propriamente eterno. Daí Santo Tomás dizer o seguinte: na medida em que os entes recebem de Deus algum grau de imutabilidade (por exemplo: a forma das substâncias separadas da matéria) se diz que participam de Sua eternidade[4] (quod aliqua ab ipso immutabilitatem percipiunt, secundo hoc aliqua eius aeternitatem participant).


Mais um ponto a destacar: a diferença entre o tempo e a eternidade. A ordem temporal é a medida do movimento que abarca as substâncias compostas de matéria e forma e seus respectivos acidentes; e a eternidade é a medida da absoluta permanência do ser (mensura esse permanentis). Assim, o fato de o tempo ter princípio meio e fim e de a eternidade não ter princípio nem fim será considerado por Santo Tomás como diferença acidental, porque, ainda na hipótese de que o tempo não tivessse tido princípio nem pudesse ter fim, como postulavam os filósofos medievais para quem que o movimento dos céus seria sempiterno, ainda restaria a diferença de que a eternidade é tota simul existens, o que não convém ao tempo, devido ao fato de este ser a mensura das coisas que mudam e se movimentam segundo um antes e um depois.


Pois bem, explicados em linhas generalíssimas o tempo, o evo e a eternidade, voltemos ã pergunta: não seria absurdo conceber racionalmente a eternidade do mundo?


O que Santo Tomás entende por “eternidade do mundo”, e como soluciona a questão


O problema abordado — e resolvido brilhantemente — pelo Aquinate no opúsculo De Aeternitate Mundi contra Murmurantes, estando entre os murmurantes ninguém menos que São Boaventura e agostinianos que, no século XIII, viam um risco na assimilação de Aristóteles pelo Cristianismo, era o seguinte: partindo da premissa de que a criação é algo que a razão natural pode demonstrar apodicticamente com razões mais do que suficientes, a pergunta feita por Santo Tomás será a seguinte: o mundo, ou seja, o incomensurável conjunto de todos os entes naturais que perfazem o universo, foi criado desde a eternidade ou no tempo? Pode a razão humana resolver filosoficamente este problema?


Ora, vimos acima que, propriamente eterno, só Deus, sendo as demais coisas eternas partícipes da eternidade divina — sem a qual nada seriam; daí alguns tomistas afirmarem que Deus não é apenas eterno, mas é a ratio æternitatis, ou seja, a razão de ser da eternidade. Assim, na hipótese de que o mundo tenha sido criado desde a eternidade, e não no tempo, restará concluir que ele é eterno por participação. Neste contexto, é importante ressalvar que em nenhum momento considerou o Aquinate a possibilidade de o mundo ser eterno simpliciter, pois “se se entendesse que, à margem de Deus, o mundo pudesse ter existido desde sempre como sendo algo eterno independentemente d’Ele, isto seria um erro abominável”[5], e nem que fosse possível um infinito material, intrinsecamente absurdo, dado que o infinito não pode ser uma magnitude. Reiteremos, portanto, o ponto crucial do problema de responder — filosófica e teologicamente — à afirmação de Aristóteles de que o mundo é eterno: ele foi criado no tempo ou desde a eternidade? Nas palavras do Santo no referido opúsculo, utrum possibile sit aliquid fieri quod semper fuerit, ou seja: seria possível conceber um ente criado que tenha existido desde sempre? Isto deixa de lado qualquer dúvida de que se tratasse de mundo eterno em sentido absoluto; não, não era este o caso, mas sim o de saber se existem criaturas ab aeterno.


A conclusão do Aquinate no De Aeternitate e noutros pontos de sua obra é de que a razão não pode concluir com segurança nem que o mundo foi criado no tempo, nem que foi criado desde a eternidade. Afirma ele que sabemos, como fiéis católicos, ter sido o mundo criado no tempo graças ao dado revelado na Sagrada Escritura, mas este artigo de fé não pode ser demonstrado filosoficamente — como pode sê-lo, por exemplo, o de que Deus é criador e mantenedor das coisas no ser.


Vale muito a pena ler este opúsculo, que encontramos na internet em tradução do medievalista Jose Ignacio Saranyana, no link do título da obra — parágrafos acima. Nele, as várias respostas às objeções levam o gênio medieval a concluir que não repugna à razão pensar que o mundo tenha sido feito desde a eternidade, nem que tenha sido criado no tempo. Para entender tudo isso, evidentemente, é preciso ir um além da concepção localista e materialista que algumas correntes predominantes da física, desde os primórdios do século XX, foram criando de tempo e de movimento.


Em suma, é preciso ir além da física, ou seja: partir dos princípios universalíssimos da metafísica, que servem de base para todas as ciências".


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1-Citado, entre outros lugares, em Suma Teológica, I, q. 10, art. 2, ad. 2.

2- Digo conhecimento natural porque é possível ao anjo receber um conteúdo inteligível absolutamente sobrenatural, por iluminação divina, por exemplo.


3- “In apprehensione uniformitatis eius quod est omnino extra motum, consistit ratio aeternitatis”. Cfme. Suma Teológica, I, q. 10, art. 1, resp.


4- “(...) quod aliqua ab ipso immutabilitatem percipiunt, secundo hoc aliqua eius aeternitatem participant”. Suma Teológica, I, q. 10, art. 3, resp.


5- De Aeternitate Mundi, nº 1.