“Quem se consagra à contemplação das coisas divinas está mais liberado das coisas do mundo do que quem se dedica à contemplação da verdade filosófica”
Tomás de Aquino, Contra Impugnantes, q. 6.
Sidney Silveira
Os bens deste mundo são de três tipos, diz Santo Tomás na Suma Teológica[1]: riquezas, prazeres e honrarias. À primeira vista, desprezá-los parece absurdo, pois as riquezas proporcionam bem-estar material; os prazeres, bem-estar psicológico; e as honrarias, bem-estar espiritual, na medida em que representam o pagamento de um débito de justiça — obviamente, quando e se são feitas ou recebidas na justa medida e nas ocasiões devidas, para não descambar em adulação e vanglória. A propósito, todos esses bens podem ser contemplados nas perspectivas material e espiritual; assim, há a riqueza da alma e a do dinheiro ou das propriedades; há os prazeres do corpo e os do espírito; há as honrarias das comendas, diplomas e galardões e as de quem honra a Deus e ao próximo no silêncio das orações diárias e no seguimento dos preceitos.
Sem dúvida, na alma do homem justo a fruição equânime dos aspectos material e espiritual desses bens é possível, mas dificílima mesmo neste caso, pois, devido à maldita herança do pecado original, “o justo cai sete vezes ao dia” (Prov. XXIV, 16). Por isso, considerando que a utilidade espiritual é preferível à material (utilitas spiritualis præfertur temporali utilitati[2]), e que, como a experiência demonstra de forma insofismável, a posse de tais bens traz consigo o risco de fazer o homem sucumbir a vícios e enganos tremendos, anda melhor quem voluntariamente abre mão deles. Estamos no âmbito, pois, dos conselhos evangélicos: “Se queres ser perfeito, vai, vende tudo o que tens, dá aos pobres e terás um tesouro no céu. Depois vem e segue-me” (Mt. XIX, 21); “É mais fácil um camelo passar por uma agulha do que um rico entrar no reino dos céus” (Mt. XIX, 23).
Pois bem. Com ensinamentos como estes, extraídos da Sagrada Escritura, os cristãos transformaram a pobreza em virtude. E aqui não se trata apenas da pobreza habitual, ou seja, aquela de quem despreza de coração os bens materiais, não obstante acidentalmente os possua, mas também da pobreza atual, a que consiste em se desprender de fato — por livre e espontânea vontade — das coisas materiais por amor a Deus. É o que demonstra lindamente o Aquinate no trecho do Contra Impugnantes Dei cultum et religionem em que menciona as passagens do Evangelho acima, e também outras. Em resumo, deixar tudo por Deus é obra de máxima perfeição (ergo perfectissimum opus)[3].
Mas também não se trata aqui da pobreza absoluta, como a que foi defendida pelos franciscanos espirituais do século XIII e posteriormente condenada pelo Magistério da Igreja, mas de uma pobreza que não abre mão das necessidades básicas do dia de hoje, confiando porém na Providência Divina quanto aos bens futuros — ou seja, quanto ao provimento das necessidades do amanhã. “Não vos aflijais, nem digais: Que comeremos? Que beberemos? Com que nos vestiremos? São os pagãos que se preocupam com estas coisas. Ora, vosso Pai Celeste sabe que necessitais de tudo isso. Buscai em primeiro lugar o reino dos céus e a sua justiça, e tudo o mais vos será dado em acréscimo. Portanto, não vos preocupeis com o dia de amanhã, pois o dia de amanhã terá as suas preocupações” (Mt. VI, 31-34).
Em síntese, é perigoso possuir as coisas do mundo (periculosum est res mundi possidere[4]), e por um motivo muito simples: porque a elas se ata fortemente o espírito, chegando às vezes ao ponto de brutalizar o homem, de fazê-lo praticar maldades e injustiças sem tamanho. Na verdade estamos continuamente expostos a tais riscos, mas em grau muito maior quando o bem-estar material aumenta e as riquezas acumulam-se. Daí dizer São João Crisóstomo, à guisa de exemplo, o seguinte a propósito dos discípulos de Jesus: “Em que prejudicou aos apóstolos a escassez de bens temporais? Não passaram eles a vida com fome, sede e pouca roupa, de modo que se esclareceram a si mesmos com este comportamento e foram vistos como exemplares de maravilhosa grandeza?[5]
No mesmo trecho do Contra Impugnantes acima aludido (a questão 6) — um dos mais belos, ponderados e consistentes elogios à pobreza evangélica de toda a história do Cristianismo —, Santo Tomás de Aquino observa que quem se consagra à contemplação das coisas divinas está mais liberado das coisas do mundo do que quem se dedica à contemplação filosófica (qui vacat contemplationi divinae, magis oportet esse a rebus mundanis liberum, quam eos qui contemplationi philosophicae vacabant[6]). Assim, se houve filósofos louváveis por rechaçar as riquezas e o burburinho do mundo para dedicar-se ao estudo da verdade, com muito mais razão se deve elogiar quem recusa a riqueza única e exclusivamente com o objetivo de contemplar a Deus, causa das causas, sumo amável, verdade infinita, Ser omniperfeito, bondade pura, razão de ser de todas as coisas. Ora, não há como contemplar a realidade divina sem o desprezo do mundo (contemptus mundi), sem dizer “não” às riquezas e seduções, pois “quem se apega às coisas deste mundo fazendo delas o fim da existência, assim como a razão e a regra de seus atos, afasta-se totalmente dos bens espirituais”[7]. Este é portanto, o sentido da virtude da pobreza cristã: conversão a Deus e aversão às coisas que nos afastam d’Ele. É recusar firmemente tudo o que possa levar à excessiva solicitude com os bens temporais.
Do ponto de vista da fé, tão maravilhosa é esta renúncia das riquezas que ela terá no céu um prêmio especial: o poder de julgar. Afirma a propósito Cristo em resposta a uma indagação de Simão (grifos nossos!):
“Pedro então, tomando a palavra, disse-lhe: Eis que deixamos tudo para te seguir. Que haverá então para nós? Respondeu Jesus: Em verdade vos digo: no dia da renovação do mundo, quando o Filho do Homem estiver sentado no trono da glória, vós, que me haveis seguido, estareis sentados em doze tronos para julgar as doze tribos de Israel. E todo aquele que por minha causa deixar irmãos, irmãs, pai, mãe, mulher, filhos, terras ou casa receberá o cêntuplo e possuirá a vida eterna” (Mt. XIX, 27-29).
Comentando esta passagem, o Aquinate nos remete à Glosa, que diz: “Quem deixar todas as riquezas para seguir o Senhor será juiz, ao passo que quem usou com retidão das coisas que possuía legitimamente neste mundo estará entre os julgados”[8]. Em vista destas palavras, o Doutor Comum reafirma a excelência da pobreza voluntária atual, e sua absoluta superioridade com relação à pobreza habitual, nos termos acima descritos. Não à-toa Deus dará à pobreza atual o magnífico prêmio (præmium excellens) de julgar, porque, segundo a Sua justiça, a grandiosidade da recompensa é proporcional à do mérito.
Referindo-se à passagem da Escritura em que Cristo afirma “Quem não renunciar a tudo o que possui não pode ser meu discípulo” (Lc. XIV, 33)”, a Glosa faz uma distinção preciosa — devidamente aproveitada por Santo Tomás em seu elogio à pobreza: “Renunciar é obra de quem, usando devidamente de suas posses materiais, com o espírito aspira à vida eterna. Abandonar é próprio apenas dos perfeitos, ou seja, de quem aspira à vida eterna despreocupando-se simultaneamente de todas as coisas temporais”[9]. Assim, os que se abandonam à Divina Providência terão especial preferência, por exemplo, em relação aos que com os seus bens socorrem aos pobres[10].
Antes de encerrar este breve texto vale dizer que, nas passagens acima mencionadas desta obra de combate que é o Contra Impugnantes, não se trata de conhecimento especulativo, apenas, mas também prático: Santo Tomás conheceu a pobreza habitual e a atual, pois, sendo de família riquíssima (seu pai era adido do rei), abandonou tudo para seguir o caminho da perfeição cristã, levando à risca o conselho evangélico com o voto de pobreza que põe freio à concupiscência dos olhos. Pobreza material e espiritual a um só tempo, por meio da qual a simplicidade se torna uma preciosa conquista da alma, que dá às costas a luxos desnecessários e frívolos e concentra as energias psíquicas nas coisas verdadeiramente importantes.
É evidente que o conselho evangélico da pobreza é dificílimo de praticar em qualquer época. Mas na atual é quase impossível: a nossa é a era do consumo desenfreado estimulado pela propaganda, que exacerba o afã de possuir bens e de fazer sucesso — num mundo totalmente descristianizado em que os verbos querer e possuir são conjugados como uma espécie de ladainha infernal de caminhantes rumo ao abismo.
Um mundo em que a Igreja se abstém de ensinar as verdades da fé em sua integridade, razão pela qual parece zelosamente preparar o curto reinado do Anticristo.
1- Tomás de Aquino, I-II, q. 108, art. 4, resp.