segunda-feira, 31 de maio de 2010

Malefícios da escrupulosidade


Sidney Silveira
Dizia o Padre Garrigou-Lagrange que um dos grandes problemas das pessoas religiosas reside em oscilar entre dois extremos: uma espiritualidade sem vida intelectual, que resulta num estéril pietismo, e uma vida de estudos não acompanhada da genuína piedade (feita de sacrifícios, oração e freqüência aos sacramentos), o que gera homens para quem a graça talvez até seja um elevadíssimo conceito abstrato, mas não uma realidade beatificante. Certamente o grande teólogo francês não padecia de nenhum destes dois males, dado ter sido um dos gigantes da história do tomismo, espécie de mestre auxiliar do Aquinate, na medida em que participava em alto grau do hábito teológico do “anjo da Escola”. Um grande metafísico e, ao mesmo tempo, um notável homem espiritual.

Garrigou sabia muito bem que o equilíbrio entre o pietismo e o intelectualismo se logra após um bom tempo de caminhada na fé. Não é obra de um dia. Ademais, para alguém efetivamente consegui-lo convém fugir àquilo que em Teologia Moral se chama escrupulosidade, ou seja: o roer-se de angústias e desassossegos por qualquer ninharia.

O escrupuloso é o sujeito imerso num universo mental tenso, pois a sua vida interior é acossada por imagens que produzem um estado de ofuscamento habitual da razão, dado o contínuo e infundado temor de estar sempre prestes a infringir alguma regra capital. Uma alma nesse estado atormenta-se a si mesma e a todos os que estão à sua volta, pois costuma atirar nas costas das demais pessoas um fardo ainda maior do que o que carrega. Por estas razões, evidencia-se que o escrúpulo não é um juízo racional e prudente sobre a bondade ou maldade dos nossos atos, mas um estado de dúvida não apoiado em sólidos motivos. Por trás dele, muitas vezes, está uma grande vaidade de querer parecer melhor que os outros.

Aplicado aos estudos, o escrúpulo é altamente maléfico, pois quem o padece dissolve as energias psíquicas em miudezas e pormenores sem a menor importância. Com isto, o que poderia ser estudado em um mês leva quatro vezes esse tempo, e o que é pior: o escrupuloso tem imensa dificuldade de chegar a conclusões, pois a sua mente engendra possibilidades sem fim e as coloca no lugar das evidências que, para uma pessoa comum, seriam suficientes para fazê-la seguir adiante. Uma nota de rodapé que não se consegue encontrar pode, muitas vezes, fazer o escrupuloso abandonar um belo escrito autoral. Por estes motivos, dificilmente o escrupuloso progride nos estudos, ainda que tenha talento. Conheci pessoalmente alguns casos dramáticos em que essa paixão pulverizou a possibilidade de uma vida intelectual verdadeiramente fecunda.

Convém ressalvar que a escrupulosidade nada tem a ver com a delicadeza de consciência. Esta consiste no esmero e cuidado com que uma alma amante da virtude busca aperfeiçoar-se, procurando evitar — por amor a Deus — até as faltas mais leves. Tal delicadeza de consciência leva uma pessoa a entristecer-se com os seus erros e pecados, mas sem o desespero e a angústia típicos do escrupuloso. A delicadeza de consciência pode, de fato, levar uma alma à santidade; o escrúpulo, jamais, pois conduz à cegueira mental.

Outra característica do escrupuloso é a pertinácia nos seus próprios juízos negativos, contrariando a tudo e a todos. Se é pessoa católica, muitas vezes nem mesmo o seu diretor espiritual consegue demovê-la dessas teimas, pois a constância no erro de escrúpulo revela uma patologia muito difícil de curar, pois os atos contra a verdade acabam por se transformar numa espécie de qualidade da alma, como dizia Santo Tomás. Quase uma segunda “natureza”.

Essa enfermidade pode conduzir a um daqueles dois estados de espírito que Garrigou-Lagrange considerava altamente danosos: o intelectualismo e o pietismo. No primeiro caso, o estudo acarreta mais prejuízos que benefícios, pois o sujeito perde enorme tempo caminhando em terreno árido e deixa de lado os remédios que a fé lhe oferece; no segundo caso, o pietismo provém do escrúpulo que leva uma pessoa a supor que não tem o menor compromisso de progredir intelectualmente, pois lhe basta a fé. Este foi por exemplo o caso de alguns franciscanos dos séculos XIV e XV, que acreditavam ser a leitura de livros algo extremamente prejudicial para a fé.