Sidney Silveira
O filósofo realista sabe que o problema metafísico precede o gnosiológico, ou seja: a pergunta “o que é o ser?” antecede à questão “o que é conhecer?”. Em síntese, sem uma resposta satisfatória à problemática do ser, a filosofia não passará de uma teoria do conhecimento capenga — que agride frontalmente o sensus communis e traz aporias ou dificuldades insanáveis. Os exemplos são vários: pergunte-se a Descartes como pode o seu Cogito ser, ao mesmo tempo, uma dúvida “universal” e partir de uma certeza (a de que pensa); pergunte-se a Kant como se pode dizer que a “coisa em si” é incognoscível ao mesmo tempo em que se afirma conhecer uma de suas notas distintivas, a incognoscibilidade; pergunte-se a Husserl como pode ser possível termos a intuição direta das essências se é necessário criar um intrincado método (a redução eidética, apoiada na muleta da epoché) para chegar às essências; pergunte-se a Sartre como pode ser isto de “a origem do nada” (l’origine du néant), se o nada é justamente a ausência de ser e, portanto, não tem potência para originar-se; etc.
Poderíamos seguir indefinidamente com os exemplos de como, sem uma sólida metafísica, a filosofia se transforma numa gnosiologia que leva a verdadeiros becos sem saída. Mas, por ora, vamos pôr uma lente de aumento numa premissa fundamental do criticismo kantiano, para mostrar a absurdidade do seu apriorismo — e a que tipo de problemas conduz o idealismo transcendental que dele provém.
Reiteremos, antes de tudo, esta máxima lapidar: quando a especulação filosófica não parte da análise metafísica do ser, a teoria gnosiológica sempre começa por uma deformação do ato do conhecimento. Vejamo-lo.
Logo no começo da Crítica da Razão Pura, assinala Kant que, em virtude de a experiência não nos fornecer nada além de coisas contingentes e individuais, o universal e o necessário hão de vir, aprioristicamente, da inteligência (sem nenhum contato com a experiência). Ora, parvus error in principio magnus est in fine! É com esta premissa tão contrária a qualquer evidência que Kant pensa erigir um edifício gnosiológico seguro, sem imaginar que está construindo sobre areia movediça, pois lhe escapou completamente a observação de que é justamente pela sucessão de experiências, como ensinara tão sabiamente Aristóteles, que podemos alcançar o conhecimento universal, abstraindo dos entes as suas notas individuantes e contingentes e alcançando, por este procedimento, o sumo, o eidos, a essência. A idéia de eqüinidade, por exemplo, não provém de algo apriorístico, e nem de uma Idéia arquetípica, à moda de Platão, mas sim da observação do modo de operação dos cavalos, ou seja: partindo das potências que o ens equinus atualiza, chegamos (ainda que de maneira assintótica) a um conceito universal.
Vejamos o que diz o filósofo de Königsberg logo no começo do seu opus magnum:
“A experiência não dá a seus juízos a universalidade verdadeira ou estrita, mas apenas comparativamente [por indução]. (...) Assim, pois, se um juízo é pensado com estrita universalidade — de modo que não se permita nenhuma exceção possível — não pode ser derivado da experiência, mas é algo absolutamente a priori”.
Aqui, além de não trazer o apoio de nenhuma evidência, Kant parte da premissa (implícita) de que a inteligência não está em contato direto com a realidade, mas, em princípio, apenas consigo mesma — solipsisticamente. Ou seja: os conceitos universais nada têm a ver com o ser dos entes, mas estão em nossa cabeça. O corolário desta idéia meio louca é que a inteligência e o ser nada têm de identidade entre si; estão em universos separados. Nesta perspectiva, conhecer não é identificar-se intencionalmente com a essência dos entes, mas tão-somente projetar nos entes algo que já estava na inteligência (que depois, aliás, Kant concluirá não alcançar o “em si” da coisa). Em suma, na teoria do conhecimento de Kant não partimos dos entes e também não retornamos a eles na forma de conceito, mas partimos de um a priori da inteligência para, ao fim e ao cabo, dizer que a inteligência é incapaz de penetrar as coisas em si mesmas...
Olhemos mais de perto.
É verdade que a experiência não nos pode dar absolutamente nada além do individual e contingente, e que a visão clara do universal só é acessível pela inteligência. Mas daí não se conclui — de forma alguma — que o universal nada tenha a ver com a experiência, afirmação gratuita de Kant repetida em vários pontos de sua obra, e não apenas na Introdução da Crítica da Razão Pura. Trata-se de um salto lógico entre a premissa maior e a conclusão, ou, se quisermos ser precisos, de uma petição de princípio de um primarismo atroz.
Isto porque a evidência nos aponta exatamente o contrário: todo e qualquer conhecimento se dá por uma identidade intencional entre o sujeito cognoscente e a coisa conhecida, e não se trata de uma imagem arquetípica da realidade que trazemos aprioristicamente em nossa inteligência.
Partindo, pois, de uma deformação inicial do ato do conhecimento, todo o esforço da análise transcendental de Kant será no sentido de descobrir e classificar esses a priori pressupostos em sua tese inicial, a começar pelo tempo e pelo espaço.
Por isso, podemos dizer tranqüilamente que o criticismo kantiano é, em sua essência, a defesa da tese de que o conhecimento está totalmente desarticulado da realidade.
Noutro texto, veremos o quanto essa premissa inicial levará Kant a duvidar dos juízos da metafísica e crer tão cegamente nos juízos da ciência. Para o filósofo de Königsberg, a pergunta fundamental seria a seguinte: é possível uma metafísica construída sobre juízos sintéticos a priori?
E também veremos, com Octavio Derisi, que a falácia de Kant está em restringir arbitrariamente a noção de “juízo analítico”. E, como diz este vigoroso tomista, com acerto, Kant pretende solucionar o problema crítico, o valor da inteligência, com esta mesma inteligência cujo alcance objetivo havia posto previamente em dúvida.