Sidney Silveira
Todos os homens são aptos a alcançar a verdade, e esta é a tendência fundamental de uma de suas potências superiores, a inteligência, mas pouquíssimos podem ser filósofos; todos os homens são aptos a experimentar a beleza estética de um texto literário, mas poucos são capazes de nos levar num êxtase, pela escrita, à região dos arquétipos da condição humana; todos os homens são aptos a perceber os matizes de uma polifonia musical, mas pouquíssimos podem compor como um Tomás Luis de Victoria, como um Bach, como um Palestrina; todos os homens são chamados a alcançar o bem (tendência inamovível da vontade), mas só aqueles que Deus escolheu podem ser Santos; todos os homens podem aprender os movimentos do xadrez e entender a sua beleza, mas um número ínfimo será capaz de jogar com a vigorosa precisão de um Garry Kasparov ou com a fantasia estonteante de um Mikhail Tal; todos os homens, em princípio, são capazes de ser políticos, mas quase nenhuns têm sabedoria, talento e coragem para fazer o que deve ser feito para a Cidade não se transformar numa massa amorfa e sem leis asseguradoras do bem comum.
Em resumo, as massas não produzem a ciência, as massas não produzem a arte, as massas não produzem a filosofia e, em sentido estrito, as massas sequer são capazes de vislumbrar o bem comum político — e todos os seus sucedâneos. Esta verdade é inaceitável para a susceptibilidade democratista contemporânea, que afunda na idéia de que as artes são para as massas, a filosofia é para as massas, a política é para e pelas massas. A egalité, ideal maçônico-liberal da Revolução Francesa, pasteurizou e descristianizou o mundo, e, depois de mais de duzentos anos, fez o Ocidente perder totalmente a noção da hierarquia dos valores, da hierarquia dos talentos e sua importância para a civilização — dado que o igualitarismo arrogante inaugurado no final do século XVIII é um impedimento formal para o desenvolvimento das pessoas e das sociedades.
O incentivo à revolta das massas chega ao ápice no século XX, com a Revolução Russa e seu materialismo genocida, mas na prática foi ganhando espaço paulatinamente: primeiro, das massas contra a Igreja e contra a influência das leis eclesiásticas nas sociedades; depois, contra uma nobreza já decadente e bastante desvinculada do poder espiritual; posteriormente, em favor da ilusória tomada, por elas, dos meios de produção; a seguir, contra a noção de autoridade legítima. Essas revoltas foram impregnando as sociedades e, ao fim e ao cabo, contribuíram para a metástase modernista que, no último quartel do século XX, alcançou a doutrina da Igreja em todos os pontos e impossibilitou a defesa da fé pelas próprias autoridades eclesiásticas — que elegeram o ecumenismo como um fim a ser buscado, e o que é pior: um fim superior à guarda do precioso depósito da fé. A quem duvida disso, peço que veja os documentos do Conselho Pontifício para o Diálogo Inter-religioso, acessíveis no site do Vaticano.
Perdidas todas as distinções fundamentais que poderiam salvar a civilização da débâcle universal, e com a autoridade espiritual esboroada pelo liberalismo que domina o mundo, agora só resta às massas revolverem-se intestina e autofagicamente contra si mesmas, produzindo o ódio e a cegueira mental numa escala até então inimaginável. Tudo sob o pavilhão da democracia, que é a ditatura da maioria contra a excelência — uma maioria, a propósito, teleguiada por grupos infrapolíticos organizados e por intelectuais orgânicos. Este é, em suma, o quadro propício para o estabelecimento do governo mundial do Anticristo, que se aproveitará do desastre reinante para propor-se como a única “autoridade” capaz de trazer a paz. Uma satânica pax mundi, como sonhava Dante, no De Monarchia. Uma pax mundi que a última Encíclica do Papa Bento XVI parece corroborar.
Aturdidos pelo estrondo da pós-modernidade, muitos intelectuais e filósofos católicos se deixaram contaminar pelos erros que ganharam corpo nos séculos XVIII e XIX e se firmaram decisivamente no século XX — sem dúvida, o mais anticristão de todos. Um exemplo clássico é o de Étienne Gilson, que em 1967 (ou seja: após o Concílio Vaticano II) publica, pela coleção Essais d’Art et de Philosophie, da editora Vrin, o livro La société de masse et sa culture, onde faz um diagnóstico das artes plásticas das massas, da música das massas, da literatura das massas e, por fim, das liturgias das massas. No livro, embora faça análises mais ou menos acertadas, partindo da premissa de que a cultura, em seu sentido mais elevado, é espiritual, e que a sua massificação implica a dissolução das formas de beleza mais próximas daquilo que os medievais chamavam de pulchrum, Gilson acaba por aplaudir e referendar esse movimento em direção às massas, no seio da Igreja.
É triste ver a decadência de um intelectual como Gilson que (malgrado jamais tenha sido propriamente um tomista, e sim um divulgador da importância do Aquinate para a filosofia) acaba por dizer ou propor coisas como estas:
> O problema da liturgia se confunde com o problema da "industrialização da Bíblia" (sic). Ou seja: não se trata de uma questão doutrinal;
> O catolicismo deveria criar uma imprensa das massas e para as massas;
> As massas têm direito à sua própria cultura (ou seja: presumivelmente autóctone em relação à lei evangélica);
> É inevitável que a Igreja seja uma sociedade voltada para os mass media (e não uma mestra das sociedades e das nações e, por conseguinte, desses mesmos mass media que ela deveria educar e evangelizar);
> A vulgarização do culto é necessária para a Igreja alcançar um número maior de fiéis (corolário de várias frases do livro);
> A elite intelectual católica deve conformar-se com essa situação e abandonar as formas eruditas do culto a Deus e da teologia, pelo mesmo motivo aludido no tópico anterior;
> Gilson cita favoravelmente a tese (do mesmo matiz socialista que gerou a teologia da libertação) de que “a nova sociedade é uma sociedade de massas precisamente no sentido de que a massa da população foi [enfim] incorporada à sociedade”);
> Os [benéficos] esforços do ecumenismo têm por objetivo fazer com que a sociedade, que é virtualmente de massas, se torne uma sociedade tal atualmente.
Quem escreveu essas coisas foi um intelectual do porte do Étienne Gilson, que como teórico da cultura e da política se mostra muitíssimo aquém do estudioso da filosofia medieval que tanto sucesso fez. Lendo as idéias desse seu livro outonal, somos levados a indagar: quem nos livrará da fúria das massas, que agora começam a impor ao mundo — com uma tirania inaudita e manipuladas por ONGs e por sociedades secretas — o ecumenismo, leis em favor do aborto, do “casamento” entre homossexuais, do uso das células-tronco embrionárias, etc.?