Sidney Silveira
Um dos textos recentes do blog suscitou, aqui e ali, comentários de pessoas que ficaram magoadinhas por eu ter usado contra o pobre Kant, segundo elas, o argumento ad hominem. Antes de tudo, vale dizer que, no breve escrito de que se trata, apenas tomei o filósofo de Königsberg como exemplo de espírito orgulhoso e irreligioso, e nada do que disse ali foi para impugnar a sua filosofia — mas tão-somente para ilustrar algo arquetípico: orgulho e religião são contraditórios e, portanto, autoexcludentes.
Um dos textos recentes do blog suscitou, aqui e ali, comentários de pessoas que ficaram magoadinhas por eu ter usado contra o pobre Kant, segundo elas, o argumento ad hominem. Antes de tudo, vale dizer que, no breve escrito de que se trata, apenas tomei o filósofo de Königsberg como exemplo de espírito orgulhoso e irreligioso, e nada do que disse ali foi para impugnar a sua filosofia — mas tão-somente para ilustrar algo arquetípico: orgulho e religião são contraditórios e, portanto, autoexcludentes.
Pois muito bem: acerca dos erros da gnosiologia de Kant, e de suas tremendas conseqüências para a história da filosofia, muitos pensadores de escol já falaram à exaustão; esses equívocos estão arqui-refutados. A sua “incognoscibilidade da coisa em si” embute uma petitio principii primária para qualquer estudioso sério (do mesmo modo que o Cogito de Descartes). Entre os católicos, indico apenas Octavio Derisi, Cornelio Fabro, Louis Jougnet e Étienne Gilson, que escreveram textos lapidares sobre os erros fundamentais de Kant. Para o Gilson de Réalisme thomiste et critique de la connaissance, por exemplo, a filosofia de Kant deve ser analisada “à luz do patológico”. E ele não deixa de estar certo, pois a obra de Kant começa a ruir em sua louca suposição de que todos os conceitos universais estão fundados em formas a priori que, acrescentadas à experiência, dão origem aos juízos ou conceitos sintéticos a priori. Não me alongarei sobre isto porque o assunto, aqui, é outro. Indico a leitura de Filosofía Moderna y Filosofía Tomista, de Octavio Derisi, onde há uma longa exposição (e posterior refutação) de todos os princípios do criticismo kantiano.
Dito isto, vale consignar umas linhas sobre o argumento ad hominem. Os modernos tratados de lógica ou de retórica nos mostram que há vários tipos de raciocínio ou argumentação encontráveis tanto no discurso filosófico como no jurídico:
Argumento per absurdum
Argumento a contrario
Argumento a simili
Argumento a completudine
Argumento a fortiori
Argumento a coherentia
Argumento ab exemplo
Argumento ad rem
Argumento ab auctoritate
Etc.
Entre eles está o tão detratado argumento ad hominem. Comecemos observando que, como ensina Chäim Perelman no clássico Tratado da Argumentação, os raciocínios ad hominem stricto sensu em geral são considerados pseudo-argumentos. Schopenhauer, por exemplo, os chamará de artificiosos, talvez por acreditar que toda argumentação deva dirigir-se, in primis, a um auditório universal. Mas, como o próprio Perelman frisa, e com muito acerto, não há nada de ilegítimo nesse modo de proceder, desde que as premissas se movam no âmbito da argumentação e mostrem uma contradição fundamental do interlocutor com as premissas de que parte, ou, então, a impossibilidade de que tais premissas sejam válidas no contexto do problema que está sendo abordado.
Antes de tudo, ainda seguindo a Perelman neste ponto, é fundamental não confundir duas coisas: o argumento ad hominem e o argumento ad personam. Este último visa pura e simplesmente a desqualificar o adversário, a atacar a sua pessoa. E também não devemos identificar o argumento ad hominem com a petição de princípio que, neste caso, implica a sua utilização indevida. A propósito da petitio principii, vale ler o que diz dela Aristóteles nos Analíticos Primeiros e nos Tópicos. Mas, ainda aqui, é preciso apontar que não se trata propriamente de um erro de lógica, mas sim de retórica — de técnica argumentativa: dar por pressuposto justamente aquilo que se quer provar.
Um exemplo do mau uso do argumento ad hominem é utilizado em diferentes manuais, e acontece quando se coloca em dúvida a validade do argumento ou da opinião do adversário aduzindo como “prova” ou como apoio, apenas, um fato de sua vida.
Fulano diz que fumar não faz mal à saúde.
Ora, esse fulano é dono de uma fábrica de tabaco.
Logo, ele está falando em seu próprio benefício.
Aqui, a conclusão é literalmente um julgamento de intenção que não decorre da associação entre as premissas. Mas agora vejamos um exemplo de argumento ad hominem não falacioso.
Pedro diz que a sodomia pode ser praticada, sem problemas, entre padres ou pessoas consagradas.
Ora, Pedro é católico.
Logo, é um péssimo católico.
Aqui, o argumento ad hominem é totalmente aplicável, pois Pedro, sendo católico, não poderia apoiar tal idéia, sabendo que, de acordo com a Igreja, a sodomia é um pecado que clama aos céus. Mas concedamos per absurdum que ele não soubesse tratar-se de pecado, e ainda assim o argumento seria válido e levaria à mesma conclusão, pois é óbvio que, como católico, Pedro deveria saber disto. Algo semelhante acontece no seguinte exemplo, extraído da Lógica Informal de Douglas Walton:
George diz que os serviços postais não são confiáveis, e, por isso, uma empresa privada deve oferecê-los em lugar do governo.
Ora, George é um ferrenho comunista.
Logo, não poderia defender tal idéia.
Como se vê, há vários casos em que o argumento ad hominem é válido — embora possa ser mais ou menos contestado. Não o confundamos, pois, com o argumento ad personam ou com um determinado tipo de petitio principiis que faz uso de algo a respeito da pessoa para desqualificá-la.
Feitos estes esclarecimentos, fica evidente que, no texto aludido, em momento algum usei o argumento ad hominem contra Kant, no sentido de desqualificar com ele a sua obra, mas apenas ilustrei com fatos de sua biografia o arquétipo do sujeito irreligioso (ou, no caso do filósofo de Königsberg, religioso apenas por analogia de atribuição extrínseca). Os erros de sua obra e as conseqüências que deles decorrem são outro assunto...