domingo, 12 de julho de 2009

Um governo mundial, sob uma moeda mundial. A Encíclica do Papa e o G-8





Sidney Silveira
A última Encíclica do Papa Bento XVI (Caritas in veritate) vem a propósito do tema eclesial mais importante dos últimos 45 anos: qual é a autoridade do Magistério da Igreja quando não tem a expressa intenção de impor uma doutrina sobre fé e costumes, fazendo uso de sua suprema autoridade apostólica, mas possui apenas a manifesta intenção de propô-la ao modo de diálogo intra Ecclesiam, com o rebanho dos fiéis, e extra Ecclesiam, com o mundo? Esse magistério é ou não vinculante para nós, católicos? Essa resposta deu-a de modo definitivo e magistral o Padre Calderón, neste que é, repito e repetirei à exaustão, o livro mais importante das últimas décadas, em todo o mundo. Um livro extraordinário que (como ainda hoje me confidenciou por email um dos muitos leitores que nos têm escrito a mim e ao Nougué mensagens de emocionado agradecimento pela publicação da obra) “é capaz de levar à conversão ou a um processo de purificação da conversão”.

Os católicos liberais estão eriçadíssimos por conta dessa Encíclica, e não poderia mesmo deixar de ser: se, em qualquer que seja a variável na qual chafurde, o liberal não consegue resolver o falso dilema em que se meteu (o da dicotomia entre liberdade e autoridade externa à da sua consciência individual), é óbvio que uma autoridade política mundial com poder de mando sobre todas as nações, como propõe o Papa, lhe parecerá a mais inimaginável das opressões. As pérolas que tenho lido na internet, da parte dos liberais, vão da mal-disfarçada malícia à idiotia pura e simples. E embora em geral acertem quanto ao caráter nefasto de uma tal autoridade mundial meramente política — que, a propósito se avizinha de nós como um bólide gigantesco do qual parece não haver mais como fugir —, erram num ponto crucial do diagnóstico, pois só concebem o malefício de tal proposição nesse mesmo plano político, que artificiosa e convenientemente já haviam separado do plano espiritual superior. O alcance do malefício (que não parece ser outro senão o breve reino do Anticristo de que nos fala o Evangelho) escapa a esses católicos liberais. Um deles certa vez confidenciou-me que “essa coisa apocalíptica” lhe parecia uma ficção, se olharmos a situação atual do mundo. Paciência! Se não se quer ver que a vaca está no brejo, com as patas atoladas e os sininhos balouçantes, paciência! Esse tipo de cegueira afigura-se a mim como um mistério insondável. Bem dizia Chesterton pela boca do Padre Brown que, se um dia assassinasse alguém, certamente seria um otimista... Referia-se o grande escritor inglês ao otimista cego às evidências mais gritantes de que as coisas não vão nada bem.

Lendo o trecho de Caritas in veritate no qual o Papa Bento XVI diz que “urge uma Autoridade política mundial” (o A maiúsculo e o itálico são do Papa), e mais, que “tal Autoridade [política] deverá ser reconhecida por todos, gozar de poder efetivo para garantir a cada um a segurança, a observância da justiça, o respeito dos direitos” (nº 67), lembro-me do que escreveu há algum tempo o mesmo Padre Calderón, num outro livro tão estupendo como A Candeia Debaixo do Alqueire. São palavras que agora se revestem de caráter profético. E, embora referindo-se aos textos do Concílio Vaticano II, tais palavras se aplicam grandemente ao que vivemos hoje — quando sentimos tão próxima a possibilidade de instaurar-se uma tal ordem política (e econômica) com poder de mando sobre todos os confins da Terra. Diz o nosso teólogo:

“O Concílio advoga pela constituição de uma autoridade política mundial com poder sobre as nações, como para impedir guerras. É este, a propósito, um dos principais clamores de Gaudes et Spes: ‘Enquanto exista o risco de guerra e falte uma autoridade internacional competente provedora de meios eficazes (grifo nosso!), uma vez esgotados todos os recursos da diplomacia, não se poderá negar o direito de uma legítima defesa das nações’ (nº. 79); ‘(...) ‘Devemos procurar com todas as nossas forças preparar uma época em que, por acordo entre as nações, possa ser proibida absolutamente qualquer guerra. Isto requer o estabelecimento de uma autoridade política pública universal (grifo nosso!) reconhecida por todos, com poder para garantir a segurança, o cumprimento da justiça e o respeito dos direitos’ (nº. 82). Pois muito bem: a única autoridade com poder eficaz para impedir as guerras que não seja a do Vigário de Cristo, será a do Anticristo. Se não é o Príncipe da Paz quem estabelece a ordem de justiça entre os povos por meio do poder que comunicou a seu Vigário, será o príncipe das trevas quem o fará por meio dos poderes que comunicou a seu primogênito, o Anticristo”.

Neste ponto vale destacar, e com toda a ênfase, que não é uma simples hipótese teológica, mas sim uma verdade de fé com base na Sagrada Escritura (em Apocalipse, XIII), que haverá um só poder político mundial, sob cujo mando despótico estarão todas as nações. Se se é católico, é preciso crer nisso firmemente! Outra coisa: ao contrário do que quer acreditar o nosso católico liberal, a matéria de que se trata não é alheia à fé e aos costumes, mas muito pelo contrário: diz respeito às duas!!! Afirma a Escritura, com meridiana clareza, que todo poder político vem do alto (cfme. Rom., XIII, 1; e Jo. XIX, 11). A propósito, o mesmo dizia Leão XIII, com apoio maciço de todo o Magistério anterior a ele:

“O poder público só pode vir de Deus. Só Deus, com efeito, é o verdadeiro e soberano Senhor das coisas; todas, quaisquer que sejam, devem necessariamente ser-Lhe sujeitas e obedecer-Lhe; de tal modo que todo aquele que tem o direito de mandar não recebe esse direito senão de Deus, Chefe supremo de todos." (Leão XIII, Diuturnum illud, 29 de Junho de 1881).

Se o Papa propusesse a si mesmo como a única Autoridade (esta sim, com A maiúsculo, porque participada por Nosso Senhor, que é Deus) capaz de reinar sobre todas as nações, estaria repetindo uma doutrina comum da Igreja por séculos sem fim. Mas propor uma autoridade mundial meramente política é algo que nenhum católico deve considerar como vinculante, ou seja: como algo que obrigue a sua consciência a seguir. Entre outras coisas, porque se trata de uma proposição ao modo de diálogo, e não uma imposição magisterial expressada de forma solene, com intenção expressa de obrigar o rebanho de fiéis. E um dos quatro pontos essenciais com relação à infalibilidade papal, cabe relembrar, diz respeito justamente à intenção de obrigar a todos os fiéis, a qual não pode ser oculta, mas expressa, dado o nosso humano modo de conhecer. Ademais, que autoridade tem a Autoridade quando depõe a si mesma, indicando a criação de uma outra para reger o mundo, ainda que essa outra busque fins infinitamente menores? Não tem a Igreja poder de ensinar, santificar e, TAMBÉM, reinar? Este é outro grave ponto resolvido pelo gênio teológico do Padre Calderón...

O único obstáculo para o reinado do Anticristo de que fala a Escritura sempre foi, única e exclusivamente, a pax Christi custodiada pela Igreja, quer dizer: a paz que pode ser estabelecida pela verdade revelada, da qual provêm tanto o Magistério, com os seus dogmas e as suas leis, como os sacramentos, sinais sensíveis da graça dada gratuitamente a todos, em vista de que se salvem; e não a pax mundi instaurada por instâncias políticas e ao sabor de interesses humanos. Se a Igreja abre mão de propor-se a si mesma como mestra e reitora das nações, e propõe em seu lugar nada menos do que a ONU, que pensar? Estamos diante um mistério.

Coincidentemente ou não, exatamente nesta mesma semana em que o Papa propõe uma autoridade política mundial, o G-8 propõe uma moeda mundial — já até cunhada, como se vê nas imagens que ilustram o presente texto. Arrepia-me tal coincidência, assim como pensar num poder político e num poder econômico mundiais, com fins meramente humanos, apoiados e referendados pela única autoridade espiritual que visa ao bem superior da salvação das almas.
Em tempo: Diz São Paulo (2 Tess.) que primeiramente deve vir a dissensio (ou apostasia), para depois manifestar-se o Homem ímpio. Lembra-nos o Padre Calderón que essa apostasia havia sido entendida pelos Santos Padres tanto como apostasia da fé — dissensio a fide — quanto como apostasia do Império — dissensio a Romano Imperio. Comenta Santo Tomás essa grave passagem da Epístola: “Diz Santo Agostinho que [a dissensio Romano Imperio] está representada pela estátua de Daniel (II, 31), onde se nomeiam quatro reinos, depois dos quais se dará o advento de Cristo, o que era um signo conveniente, porque o Império Romano foi estabelecido PARA que sob o seu poder se pregasse a fé por todo o mundo (grifo nosso). Mas como pode ser assim, se as nações deixaram o Império Romano e não veio o Anticristo? A isto deve responder-se que o Império todavia não acabou, mas mudou de material em espiritual. (...) Portanto, há que dizer-se que a apostasia do Império deve entender-se não somente a respeito do plano temporal, mas também do espiritual, quer dizer: a fé da Igreja Católica Romana. Este é um signo adequado, porque assim como Cristo veio quando o Império Romano dominava a todos, assim também a apostasia do Império será um sinal do Anticristo”. (II, Ad Thess. caput II, lec 1). Palavra de Doutor Comum!