Sidney Silveira
Existem obstáculos de ordem intelectual e de ordem moral para a fé viscejar na alma de alguém. Com relação aos primeiros, vale indagar: de que maneira um espírito pode aderir ao conjunto das verdades da fé, se não tem o vislumbre racional dos liames que dão a ela o seu sentido de unidade? Muitas vezes, a ignorância religiosa acontece pelo viés de uma cultura filosófica que, não obstante a sua sofisticação, envolve num círculo de sombras inexpugnáveis a capacidade da inteligência de captar as evidências fundamentais que são a base dos chamados preambula fidei. E aqui vale recorrer ao que diz Platão: “Não é a ignorância das multidões a mais perigosa, nem a mais temível, nem o maior dos males. Haver estudado muito e aprendido com métodos viciosos, eis um mal maior”. (Leis, 818s).
Existem obstáculos de ordem intelectual e de ordem moral para a fé viscejar na alma de alguém. Com relação aos primeiros, vale indagar: de que maneira um espírito pode aderir ao conjunto das verdades da fé, se não tem o vislumbre racional dos liames que dão a ela o seu sentido de unidade? Muitas vezes, a ignorância religiosa acontece pelo viés de uma cultura filosófica que, não obstante a sua sofisticação, envolve num círculo de sombras inexpugnáveis a capacidade da inteligência de captar as evidências fundamentais que são a base dos chamados preambula fidei. E aqui vale recorrer ao que diz Platão: “Não é a ignorância das multidões a mais perigosa, nem a mais temível, nem o maior dos males. Haver estudado muito e aprendido com métodos viciosos, eis um mal maior”. (Leis, 818s).
Esses obstáculos de ordem intelectual vêm conjuntamente com os de ordem moral, pois ignorância culpável e orgulho são como irmãos siameses. Vejamos o caso de Kant, por exemplo. A sua tentativa de enquadrar a religião nos limites da “razão pura”, tão pretensiosa quanto equivocada, provinha de uma ignorância com relação ao próprio cristianismo. Sabemos por seus principais biógrafos que o jovem Immanuel recebeu a formação religiosa no Fridericianum, uma escola dirigida pelo mais influente professor de Königsberg — lugar onde se mesclavam de forma indiscernível luteranos, pietistas e reformados. Ali, o cristianismo era empobrecido de suas riquezas espirituais e doutrinais, e não devemos culpar de todo a Kant por ter perdido totalmente a piedade, num ambiente desses.
Como nos lembra Leonel Franca no seu A Psicologia da Fé, mais tarde o maduro Kant chamará de imoral à prece; de perversão à disciplina ascética; de idolatria à invocação dos méritos de Cristo. A propósito, no Fridericianum Kant declarava abertamente não suportar a oração dos seus convivas antes das refeições, e, certa vez, pediu ao diretor da cadeia de Konigsberg que mandasse calar aos presos “hipócritas” que entoavam cânticos religiosos... Essa atitude irreligiosa de Kant era alimentada pelas graves lacunas de sua formação cristã. Sabemos hoje com certeza que, ao contrário de Leibniz, Kant jamais leu sequer uma linha de Santo Tomás de Aquino, Santo Agostinho ou até mesmo Suárez, e em sua pobre biblioteca não se encontraram tratados de dogmática, antigos ou recentes, e nem de ascética ou mística.
Essa ignorância ilustrada, como sói acontecer, era alimentada por um orgulho imenso. Como sabemos pelo biógrafo J. H. W. Stuckenberg, autor de uma hoje clássica biografia de Kant, o filósofo era tenacíssimo em suas opiniões. Citando esta e outras fontes, diz Leonel Franca:
“Dizia Kant que a vacina era ineficaz e só poderia bestializar o homem; que o ‘fartum dos negros’ provinha do “sangue deflogisticado pela pele”; que a cor dos pele-vermelhas era causada pela “vizinhança dos mares glaciais”. E se alguma evidência dos fatos lhe infligia um desmentido doloroso às suas previsões, recusava a desdizer-se. Em 1798, por exemplo, anunciara que Napoleão iria a Portugal e não ao Egito, e, quando as notícias o contradisseram, Kant não voltou atrás. Ao seu dogmatismo apriorista devia curvar-se até a materialidade incontestável dos fatos. Não suportava que alguém, em conversa, parecesse estar melhor informado ou conhecer mais um assunto do que ele. O conde de Purgstall, de Viena, fez a peregrinação a Königsberg e, contando as suas impressões, diz que o filósofo perdia a paciência quando alguém mostrava conhecer melhor do que ele qualquer assunto. Então, monopolizava a conversa e declarava não ignorar nada de outros países. ‘Pretendia saber melhor que eu’, continua Purgstall, ‘que espécie de aves tínhamos na Áustria, qual o espírito do país, o nível de cultura dos sacerdotes católicos, etc’.
A deformação intelectual e moral que impede formalmente a humana adesão às verdades de fé é hoje alimentada por filósofos liberais (muito piores, em certo sentido, do que Kant, Voltaire, Nietzsche, etc.), que, opinando sobre as coisas da Igreja, mesclam algumas verdades colaterais com erros e mentiras tão grosseiros, que os pobres que acreditam em sua ladainha com ares de alta filosofia acabam com as almas mutiladas, incapacitados para dizer “sim” à Verdade revelada. Religião, Política e Moral , na visão desses liberais, são compartimentos estanques da vida humana, na exata medida em que são para eles uma “conquista” das consciências individuais autônomas, expressão para lá de equívoca com a qual incutem o non serviam na alma dos seus míseros seguidores e alunos.
Há um vínculo da causalidade psicológica que une dois fenômenos: orgulho e irreligião. Tal vínculo é mais facilmente perceptível nos homens dedicados ao estudo da filosofia, mesmo quando posam de cristãos. Por trás de sua heterodoxia — com aparência de ortodoxia — há uma gota da baba de Caim.
Voltaremos ao tema.