segunda-feira, 10 de agosto de 2009

Ainda os princípios da ordem moral

Sidney Silveira

Como algumas pessoas pediram por email que falássemos um pouco mais sobre os princípios da ordem moral, lá vai.


Como vimos, a noção de fim é nevrálgica quando se trata de buscar os princípios metafísicos da ordem moral. Mas, após esclarecermos, no texto anterior, algumas distinções preliminares (entre finis qui, finis cui, finis quo, finis operis e finis operantis), convém fazer uma diferenciação entre dois modos particulares de tendência ao fim: a orientação ativa, volitiva e consciente ao fim, levada a cabo pelos entes inteligentes; e a orientação passiva, involuntária e inconsciente ao fim, que se dá nos entes não-inteligentes. Apenas os primeiros destes podem ordenar-se por si mesmos ao fim; os demais são ordenados ao fim, e isto de duas maneiras específicas: ou por (intrínseca) inclinação natural ou pela ação de um ente inteligente que os mova extrinsecamente a este ou aquele fim. Uma quantidade de água x numa cachoeira, por exemplo, não poderia produzir energia elétrica (por maior que fosse a sua força potencial ou atual), se não fosse canalizada para este fim por um ente inteligente.


Em todo e qualquer ente há, pois, uma tendência a um fim, e é à luz dessa finalidade observável nos entes (desse telos) que logramos a compreensão de três conceitos importantíssimos, para o tema que nos interessa: natureza, ordem natural e lei natural. Comecemos pelo de natureza.


Toda natureza é uma substância entitativa operante, enquanto potência para adquirir determinado ato ou perfeição ontológica de maneira estável. Ou seja: toda natureza alcança naturalmente o seu fim, o seu optimum, a sua excelência — que não é outra coisa senão a atualização das potências distintivas de sua forma entitativa. Quando isto não ocorre, dizemos que algo antinatural sucedeu (provavelmente um defeito decorrente de uma privação*). Na prática, toda natureza alcança esse optimum a partir dos seus princípios de movimento e de repouso, de acordo com a clássica definição aristotélica. A natureza mesma é esse princípio de movimento e de repouso no ente composto de potência e ato, matéria e forma, essência e ser.


Retire-se a noção de fim, e tudo se esboroará. Pois se nada tem “razão de fim”, a maior parte dos demais conceitos simplesmente se perde. Se a finalidade do estômago, por exemplo, não é digerir os alimentos (a partir das glândulas gástricas em seu interior), perdem sentido todas as operações intra-estomacais e também as relações do estômago com os demais órgãos que mantêm algum contato com ele e, de alguma forma, cooperam — como causas próximas ou distantes — na digestão dos alimentos: o esôfago, o diafragma, o intestino delgado, etc. E isto serve para todos os demais entes, sejam naturais ou artificiais: é sob a luz do conceito de telos que a nossa inteligência lhes dá razão suficiente, lhes descortina a essência, lhes codifica as operações, etc.


A coisa se complica formidavelmente quando se trata de natureza humana, na medida em que esta implica uma liberdade de ação a partir de suas potências mais excelentes: a vontade e a inteligência. Ao contrário dos entes não-inteligentes, que alcançam a sua excelência de forma, por assim dizer, automática, no caso dos homens, dada a imaterialidade dos fins atualizáveis por suas potências distintivas, o leque de possibilidades de escolha dos fins intermediários aumenta incomensuravelmente. O esôfago, por exemplo, não escolhe não conduzir o alimento ao estômago; mas nós, dada a nossa liberdade, podemos escolher meios mais ou menos inadequados para a consecução não apenas do fim último (que é Deus), mas também dos fins intermediários. Aqui, entra em cena um conceito fundamental de qualquer teoria moral que pelo menos aspire a um salutar realismo: o de ato propriamente humano.


Mas este é um assunto a ser desenvolvido no curso Os princípios metafísicos da ordem moral, no Instituto Angeligum, do qual daremos notícia mais à frente...


* De acordo com Santo Tomás, no opúsculo De Principis naturae, “(...) três são os princípios da natureza: a matéria, a forma e a privação. Desses, um é aquilo a que se dirige a geração (a forma), enquanto os outros dois são parte daquilo a partir do qual se produz a geração. Daí que a matéria e a privação são a mesma coisa quanto ao sujeito, mas diferem quanto à razão. Pois a mesma coisa que é o bronze é informe antes do advento da forma — mas por uma razão se diz que é bronze, e por outra se diz que é informe. Por isso se diz que a privação é um princípio acidental, mas nunca essencial, porque coincide com a matéria. Assim, dizemos que o médico edifica por acidente, pois não edifica por ser médico senão por ser construtor, o qual coincide com o médico num mesmo sujeito” (De Principis naturae, II, nº. 6). Há, portanto, uma distinção importante entre negação e privação. Na pedra, o não ver é uma simples negação; no homem, o não-ver (cegueira) é privação.