Sidney Silveira
Como algumas pessoas pediram por email que falássemos um pouco mais sobre os princípios da ordem moral, lá vai.
Como vimos, a noção de fim é nevrálgica quando se trata de buscar os princípios metafísicos da ordem moral. Mas, após esclarecermos, no texto anterior, algumas distinções preliminares (entre finis qui, finis cui, finis quo, finis operis e finis operantis), convém fazer uma diferenciação entre dois modos particulares de tendência ao fim: a orientação ativa, volitiva e consciente ao fim, levada a cabo pelos entes inteligentes; e a orientação passiva, involuntária e inconsciente ao fim, que se dá nos entes não-inteligentes. Apenas os primeiros destes podem ordenar-se por si mesmos ao fim; os demais são ordenados ao fim, e isto de duas maneiras específicas: ou por (intrínseca) inclinação natural ou pela ação de um ente inteligente que os mova extrinsecamente a este ou aquele fim. Uma quantidade de água x numa cachoeira, por exemplo, não poderia produzir energia elétrica (por maior que fosse a sua força potencial ou atual), se não fosse canalizada para este fim por um ente inteligente.
Em todo e qualquer ente há, pois, uma tendência a um fim, e é à luz dessa finalidade observável nos entes (desse telos) que logramos a compreensão de três conceitos importantíssimos, para o tema que nos interessa: natureza, ordem natural e lei natural. Comecemos pelo de natureza.
Toda natureza é uma substância entitativa operante, enquanto potência para adquirir determinado ato ou perfeição ontológica de maneira estável. Ou seja: toda natureza alcança naturalmente o seu fim, o seu optimum, a sua excelência — que não é outra coisa senão a atualização das potências distintivas de sua forma entitativa. Quando isto não ocorre, dizemos que algo antinatural sucedeu (provavelmente um defeito decorrente de uma privação*). Na prática, toda natureza alcança esse optimum a partir dos seus princípios de movimento e de repouso, de acordo com a clássica definição aristotélica. A natureza mesma é esse princípio de movimento e de repouso no ente composto de potência e ato, matéria e forma, essência e ser.
Retire-se a noção de fim, e tudo se esboroará. Pois se nada tem “razão de fim”, a maior parte dos demais conceitos simplesmente se perde. Se a finalidade do estômago, por exemplo, não é digerir os alimentos (a partir das glândulas gástricas em seu interior), perdem sentido todas as operações intra-estomacais e também as relações do estômago com os demais órgãos que mantêm algum contato com ele e, de alguma forma, cooperam — como causas próximas ou distantes — na digestão dos alimentos: o esôfago, o diafragma, o intestino delgado, etc. E isto serve para todos os demais entes, sejam naturais ou artificiais: é sob a luz do conceito de telos que a nossa inteligência lhes dá razão suficiente, lhes descortina a essência, lhes codifica as operações, etc.
A coisa se complica formidavelmente quando se trata de natureza humana, na medida em que esta implica uma liberdade de ação a partir de suas potências mais excelentes: a vontade e a inteligência. Ao contrário dos entes não-inteligentes, que alcançam a sua excelência de forma, por assim dizer, automática, no caso dos homens, dada a imaterialidade dos fins atualizáveis por suas potências distintivas, o leque de possibilidades de escolha dos fins intermediários aumenta incomensuravelmente. O esôfago, por exemplo, não escolhe não conduzir o alimento ao estômago; mas nós, dada a nossa liberdade, podemos escolher meios mais ou menos inadequados para a consecução não apenas do fim último (que é Deus), mas também dos fins intermediários. Aqui, entra em cena um conceito fundamental de qualquer teoria moral que pelo menos aspire a um salutar realismo: o de ato propriamente humano.
Mas este é um assunto a ser desenvolvido no curso Os princípios metafísicos da ordem moral, no Instituto Angeligum, do qual daremos notícia mais à frente...
* De acordo com Santo Tomás, no opúsculo De Principis naturae, “(...) três são os princípios da natureza: a matéria, a forma e a privação. Desses, um é aquilo a que se dirige a geração (a forma), enquanto os outros dois são parte daquilo a partir do qual se produz a geração. Daí que a matéria e a privação são a mesma coisa quanto ao sujeito, mas diferem quanto à razão. Pois a mesma coisa que é o bronze é informe antes do advento da forma — mas por uma razão se diz que é bronze, e por outra se diz que é informe. Por isso se diz que a privação é um princípio acidental, mas nunca essencial, porque coincide com a matéria. Assim, dizemos que o médico edifica por acidente, pois não edifica por ser médico senão por ser construtor, o qual coincide com o médico num mesmo sujeito” (De Principis naturae, II, nº. 6). Há, portanto, uma distinção importante entre negação e privação. Na pedra, o não ver é uma simples negação; no homem, o não-ver (cegueira) é privação.