terça-feira, 18 de agosto de 2009

"Economia" ou "arte de multiplicar o dindim"?

Sidney Silveira
Em seu Comentário à Política de Aristóteles (I, Lectio VI), Santo Tomás aborda um tema que escapa à quase totalidade dos economistas atuais: a diferenciação entre a arte de adquirir dinheiro (ars pecuniativa) e a economia (oeconomiæ). É um capítulo simplesmente luminoso, pois vai diretamente ao x do problema que procuramos abordar desde o começo dos textos sobre o liberal Von Mises — os quais acabaram por gerar a longa série A estrutura da ação humana em sua completude (dada a absoluta insuficiência dos instrumentos metafísicos, antropológicos/psicológicos e políticos de que lançava mão Von Mises para explicar a ação humana).

A primeira questão suscitada por Aristóteles — e comentada pelo Aquinate — é a seguinte: será a ars pecuniativa a mesma coisa que a administração econômica (eadem oeconomicæ)? A resposta é categórica: não! A arte de adquirir dinheiro está a serviço da administração econômica, da mesma forma como a arte de construir navios está ordenada à arte de comandá-los, ou seja, à arte de navegar. Uma é subalternada à outra na exata medida em que a causa eficiente é subordinada à causa final. Diz Santo Tomás naquela mesma Lectio VI do seu Comentário: “A arte produtiva serve sempre à arte que se dirige ao uso [do que se produziu]”. Só se constroem navios porque há quem tenha ciência para navegá-los. Só se adquire dinheiro para que se possa dirigir o seu uso a estes ou àqueles bens. Mas aqui deparamos com outro problema: o uso do que se adquiriu pode ser dito bom ou mau, em algum sentido? Haverá, de fato, o bom e o mau navegador assim como o bom ou mau economista? E, em os havendo maus, quais seriam os malefícios decorrentes dessa deficiência?

Pois bem, a conclusão desse capítulo do Comentário de Santo Tomás é que a arte da aquisição do dinheiro (ars pecuniativa) é subordinada à economia (oeconomiæ), que por sua vez visa a administrar o que se adquiriu em vista do bem comum — e aqui, propriamente, entra em cena a Política. Ora, os bens comuns, numa casa, são todos os bens fundamentais compartilháveis pelos membros da família, a começar pelo mais material, que são os alimentos, sem cuja distribuição mais ou menos equitativa o convívio entre as pessoas se tornaria impossível, até o mais espiritual, que começa pela boa formação intelectual e culmina na religião, que visa à posse de bens de ordem superior. E o mesmo se pode dizer dos bens comuns políticos: se não são, pelo menos em sua base, compartilháveis pelos cidadãos livres, haverá dissensão política pelo simples fato de que a justiça não grassa onde o que é fundamental permanece na posse de poucos. E o fundamental, aqui, não é a liberdade “política”* como a concebem os liberais, pois esta pode ser tão-somente um veículo da ação humana, mas a liberdade ontológica do homem que, fazendo uso de suas potências distintivas (a inteligência e a vontade), alcança o fim para o qual foi criado: a felicidade, que só pode ser plena com a posse do Bem infinito que é a fonte de todos os bens finitos — Deus. Posse essa que, nesta vida, se dá de forma imperfeita por intermédio dos bens subministrados pela Igreja militante e, também, por uma política que não contrarie a esses bens superiores necessários à consecução do fim; e na outra vida, de forma perfeita pela visão direta da essência divina.

Aqui, propriamente, entra a nossa principal crítica à posição liberal de Von Mises: a colocação da economia como uma espécie fundamento em si da ação humana que não esteja subordinado nem à política (e a seus bens comuns fundamentais), e muito menos à religião e a seus bens sobrenaturais superiores — que na prática já começam a ser antecipados, em parte, nesta vida. Diz o nosso economista: “A economia é a filosofia da vida humana e de sua ação, pois diz respeito a tudo e a todos. É o âmago da civilização e da existência mesma do homem” (Human Action, VI, Cap. XXXVIII, nº 6). Ora, nem pelos maiores volteios sofísticos ou por truques psicológicos se conseguiria manter esta posição num debate com um adversário com sólida formação metafísica e teológica baseada no Próprio Ser. Seria uma verdadeira surra com vara de marlelo no perímetro glúteo! O bumbum ficaria com uma vermelhidão doída, em razão da santa palmatória realizada pelo instrumento da mais elementar maiêutica socrática!

Malgrado o seu materialismo tosco, a idéia de fazer da economia o fundamento de tudo — inclusive da moral, ai meu Deus! — foi colocada em prática, no todo e nas partes, pelo mundo liberal globalizado em que vivemos: hoje, a arte de multiplicar a grana (ars pecuniativa) — em geral por artifícios ou truques de mercado “livres” de quaisquer legislações reguladoras — nada tem a ver com a arte de usá-la bem (oeconomiæ), que por sua vez nada tem a ver com a arte de usá-la bem ordenando-a aos bens políticos, sem os quais não há sequer uma sociedade propriamente humana. E os nossos liberaiszões ainda acham que falta liberdade de ação para os agentes econômicos (que, em nossa terminologia, são na verdade agentes pecuniários, pois dominam a arte de multiplicar a riqueza, mormente a própria, mas não a de usá-la bem).

* A liberdade política não pode ser o fim de uma sociedade que se queira aperfeiçoadora, justamente porque a liberdade não é ato, mas potência. É sempre uma liberdade de, pois uma liberdade que não se ordenasse às escolhas livres da mesma forma como a potência se ordena ao ato seria uma não-liberdade. Só mesmo o devaneio das teses mais voluntaristas (encontráveis em todos os tipos de liberalismo) parece esquecer disto: a liberdade não é um absolutum, uma causa sui, mas algo relativo — ordenado à ação. Esta é uma das lições do livro A Política em Aristóteles e Santo Tomás, de Jorge Martínez Barrera.