Carlos Nougué
Assim, pois, o reino de Cristo é o Reino da Verdade; e, como nos ensinou Ele mesmo, devemos pedir que venha a nós esse reino, e seja feita a vontade de seu Rei, “assim na terra como no céu”. Mais claro impossível: a vontade de um rei é império, e a que se manda cumprir no Padre-nosso é a de um rei cujo reino não é deste mundo, mas se exerce sobre este mundo — desde o interior das almas individuais até a multidão dos indivíduos humanos que constitui as cidades. Não o disse o mesmo Cristo, ressurecto: “Omnia potestas data est mihi in cœlo et in terra (Foi-me dado todo o poder no céu e na terra)” (Mat., XXVIII, 18)?
Com isso, como se verá, derruem-se os fundamentos dos que querem ver nas palavras de Cristo: “Dai a César “o que é de César, e a Deus o que é de Deus” (Mat., XX, 21), a confirmação da sua tese humanista-liberal de subordinação no máximo indireta do poder temporal ao espiritual. Não obstante, para que se patenteie tal derruimento, é preciso demonstrar antes que de fato Nosso Senhor Jesus Cristo não se contradiz ao enunciar as duas passagens acima (como se tal fosse possível...). E tal se faz mostrando:
● primeiro, que de fato Cristo instituiu duas jurisdições — uma, a de César, e outra, a da Igreja. (Com isso, diga-se brevemente, resolvia um dilema dos mais lúcidos pagãos, que, como Platão, ansiavam por um governo dos filósofos: “Se os filósofos não reinarem nas cidades, ou não vierem a coincidir a filosofia e o poder político, não haverá trégua para os males das cidades, nem para os do gênero humano” [A República, 473; cf. Padre Calderón, “El gobierno de los filósofos. La solución cristiana al dilema de Platón”, en A la luz de un ágape cordial, SS&CC ediciones, Mendoza 2007, pp. 101-132]. Era o modo possível de um pagão perceber os grilhões por que estava ligado seu mundo, e que pela Escritura sabemos serem os grilhões do demônio: com efeito, a tal ponto escravizava ele o mundo antigo, que “pôde oferecer a Nosso Senhor todos os reinos da terra: ‘Omnia tibi dabo’ [Mt., IV, 9]”;
● e, depois, que uma jurisdição (a temporal, a de César) se ordena essencialmente e não indiretamente à outra (a espiritual, a Igreja); e que, conquanto até se possa dizer que a potestade desta sobre aquela é, de certo modo, indireta, não assim com respeito à ordenação daquela a esta, que será essencial assim como essencial é a ordenação do corpo à alma no ente humano; como o é a ordenação da natureza à graça no justo; e, por fim, como o é a ordenação da razão à fé na Teologia.
Com efeito, isto é capital para provar que a referida arte dos católicos humanistas ou liberais não passa de um mau ofício de corte-e-costura. Para chegarmos cabalmente a tal, porém, devemos proceder ordenadamente, ou seja, segundo as partes da própria Teologia: de seus princípios (os dados da fé) para as conclusões teológicas últimas (dadas pelos teólogos), passando pelas primeiras conclusões teológicas (dadas pelo magistério da Igreja). Concluamos, pois, antes de tudo o mais, a exposição dos dados da Escritura.
A confirmação de que Jesus se diz rei não só no interior das almas humanas, mas também sobre as cidades dos homens, nos é dada pelos próprios judeus, que, após o diálogo entre Pilatos e Nosso Senhor em que aquele pergunta a Este se é rei e este responde que, sim, “tu o dizes, sou rei”, concluem: “Que mais testemunho nos é necessário? Nós mesmos o ouvimos [ou seja, que Jesus se disse rei] de sua própria boca.” Ora, se tanto o horizonte de Pilatos como o dos judeus é aqui, patentemente, o dos reinos terrestres, o de Cristo, embora obviamente não se cinja, muito pelo contrário, àquele, obviamente o inclui, porque de outro modo Ele nem sequer teria assentido, ainda que vagamente, à pergunta do romano.
E, ainda do ângulo escriturístico, não confirmará o que dizemos o importantíssimo capítulo V do Apocalipse? Citamo-lo integralmente, com destaques e colchetes nossos: “E vi na mão direita do que estava sentado no trono [Deus Pai, cuja realeza Cristo herda por direito de nascimento eterno e de consubstancialidade divina] um livro escrito por dentro e por fora, selado com sete selos. E vi um anjo forte que clamava em alta voz: Quem é digno de abrir o livro e desatar os seus selos? E ninguém podia, nem no céu, nem na terra, nem debaixo da terra, abri-lo nem olhar para ele. E eu chorava muito, porque não se tinha encontrado ninguém que fosse digno de abrir o livro nem de olhar para ele. Então um dos anciãos me disse: Não chores: eis que o Leão da tribo de Judá [Cristo, rei por descendência carnal], da estirpe de Davi, venceu de modo que possa abrir o livro, e desatar os seus sete selos. E olhei, e eis que, no meio do trono e dos quatro animais, e no meio dos anciãos, estava de pé um Cordeiro [Cristo, rei por direito de conquista, resgate e redenção mediante sua própria Paixão e Morte na Cruz], parecendo ter sido imolado, o qual tinha sete chifres e sete olhos, que são os sete espíritos de Deus, enviados por toda a terra. E veio, e recebeu o livro da mão direita do que estava sentado no trono. // E, tendo ele aberto o livro, os quatro animais e os vinte e quatro anciãos prostraram-se diante do Cordeiro, tendo cada um uma cítara e taças de ouro cheias de perfumes, que são as orações dos santos; e cantavam um cântico novo, dizendo: Digno sois, Senhor, de receber o livro, e de desatar os seus selos; porque fostes morto, e nos resgatastes para Deus com teu sangue, de toda tribo, e língua, e povo, e nação; e nos fizestes para o nosso Deus reis e sacerdotes [que melhor comprovação de que o poder temporal e o espiritual, a cidade e a Igreja, são dois co-princípios, essencialmente ordenados um ao outro?]; e reinaremos sobre a terra [precisamente, como poder temporal e espiritual enquanto co-princípios]. // E olhei, e ouvi a voz de muitos anjos em volta do trono, e dos animais, e dos anciãos, e era o número deles de miríades de miríades, os quais diziam em alta voz: Digno é o Cordeiro, que foi morto, de receber a virtude [ou seja, a potestade ou poder], e a divindade, e a sabedoria, e a fortaleza, e a glória, e a honra, e o louvor. // E a todas as criaturas que há no céu, e sobre a terra, e debaixo da terra, e as que há no mar, e a todas as coisas que nestes (lugares) se encontram, as ouvi dizer [tal como no Salmo 148 são instadas a fazer]: Ao que está sentado no trono e ao Cordeiro, louvor e honra, e glória, e poder pelos séculos dos séculos. E os quatro animais diziam: Amém! E os vinte e quatro anciãos prostraram-se sobre o rosto, e adoraram aquele que vive pelos séculos dos séculos.”
Prossigamos, porém, nas Escrituras, e examinemos duas passagens muito citadas pelos católicos humanistas ou liberais em favor de sua tese: a) Romanos XIII, 1-7; e b) I Pedro, II, 13-17. Segundo eles, tais passagens provariam suficientemente a autonomia da jurisdição temporal, e que, portanto, razão tinha Dante ao afirmar que o Império e a Igreja são dois poderes independentes e respectivamente vinculados aos dois fins últimos do homem, um natural e o outro sobrenatural. Vejamo-lo, dizendo desde já o que se demonstrará ao longo do artigo: tal conclusão não passa de meia-verdade, razão por que não é verdade alguma. Com efeito, ou a verdade é total, ou não passa de falsidade.
a) “Toda e qualquer alma”, escreve São Paulo, “esteja sujeita aos poderes superiores, porque não há poder que não venha de Deus; e os (poderes) que existem foram instituídos por Deus. Aquele, pois, que resiste à autoridade resiste à ordenação de Deus. E os que resistem atraem para si próprios a condenação. Porque os príncipes não são para temer pelas ações boas, mas pelas más. Queres, pois, não temer a autoridade? Faz o bem, e terás o louvor dela; porque (o príncipe) é instrumento de Deus para teu bem. Mas, se fizeres o mal, teme, porque não é debalde que ele traz a espada. Porquanto ele é ministro de Deus vingador, para punir aquele que faz o mal. É, pois, necessário que lhe estejais sujeitos, não somente por temor do castigo, mas também por motivo de consciência. Porque também por esta causa é que pagais os tributos; pois são ministros de Deus, servindo-o nisto mesmo. Pagai, pois, a todos o que lhes é devido; a quem tributo, o tributo; a quem imposto, o imposto; a quem temor, o temor; a quem honra, a honra.”
b) “Sede, pois, submissos”, escreve por sua vez São Pedro, “a toda e qualquer instituição humana, por amor de Deus; quer ao rei, como a soberano; quer aos governadores, como a enviados por ele para tomar vingança dos malfeitores, e para louvar os bons; porque é esta a vontade Deus, e que, fazendo o bem, façais emudecer a ignorância dos homens insensatos; (procedendo) como (homens) livres, e não como tendo a liberdade por véu para encobrir a malícia, mas como servos de Deus. Honrai a todos, amai os irmãos, temei a Deus, respeitai o rei.”
Ora, dessas duas passagens não se podem inferir senão os seguintes corolários imediatos:
● Deus instituiu, efetivamente, duas jurisdições;
● a própria jurisdição temporal e seus poderes provêm de Deus;
● os cristãos devem submissão, obediência e honra aos reis ou príncipes na medida mesma em que estes, como ministros de Deus, louvam os que praticam o bem e trazem a espada para a vindita, ou seja, para punir os que fazem o mal;
● mas não o devem fazer por temor ao mal, porque, com efeito, como já dizia Aristóteles (cf. Ética Nicomaquéia, V, 1, 1129a 3-26; 2, 1129a 26-10, 1135a 14; 10, 1135a 15-15, 1138b 5; 14, 1137a 31-15, 1138b 13), grande diferença há entre um ato justo (por exemplo, pagar uma dívida porque se tem medo do credor) e um ato de justiça (por exemplo, pagar uma dívida porque se está convicto de que sempre é justo pagar o devido); e porque, ademais, se a Antiga Lei obrigava sobretudo no ato exterior, a Nova obriga sobretudo no ato interior (cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II, questões 98-108, especialmente esta última);
● nem, muito menos, os cristãos devem proceder com malícia, usando da liberdade como rebuço para ocultar um mau proceder (não é isso precisamente o que se faz no reino do demo-liberalismo?), mas como homens verdadeiramente livres, ou seja, como servos de Deus, uma vez que ser servo de Deus é não ser escravo das paixões, dos pecados, do demônio.
Por outro lado, dessas duas passagens não se podem inferir as duas proposições que se seguem:
> a jurisdição temporal e seus poderes não se ordenam essencialmente ao poder espiritual — porque, com efeito, o mero fato de esta jurisdição ter sida instituída por Deus mesmo e de seus poderes provirem (ainda que não diretamente) d’Ele pode antes indicar o contrário, ou seja, que tais poderes, pelo próprio fato de provir de Deus, devem ordenação e submissão a Ele e, por conseguinte, ao poder espiritual que Cristo mesmo instituiu diretamente (a Igreja);
> os cristãos devem sempre obedecer e honrar aos reis terrenos — porque afirmá-lo seria dizer que os cristãos devem obedecer a estes reis ainda quando queiram obrigá-los a desobedecer à lei natural (ou seja, a parte da lei eterna que rege a vida moral dos homens) e à lei divina positiva ou eclesiástica (ou seja, a lei do Espírito Santo positivada); em outras palavras, quando queiram obrigá-los a obedecer a leis humanas iníquas (quanto aos graus desta iniqüidade e quanto a se os cristãos devem, por razões de prudência, obedecer em foro externo às menos iníquas, cf. Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, I-II, questão 96, “O poder da lei humana”, especialmente artigo 4).
Além disso, o que os católicos humanistas ou liberais nunca viram naquelas duas passagens é o que se pode inferir sem grande dificuldade deste pequeno passo de São Pedro: para “que, fazendo o bem, façais emudecer a ignorância dos homens insensatos”, ou seja, daqueles mesmos homens que condenariam tantos cristãos ao martírio. Ora, o emudecimento da ignorância desses insensatos, muito mais que um modo de evitar o martírio (que, afinal, sempre é para o cristão uma palma de vitória), seria claramente a ante-sala de sua conversão. Pode-se sensatamente duvidar que, após lhes ter falado Cristo ressurrecto, e após lhes ter vindo em Pentecostes o Espírito Santo, não soubessem os Apóstolos que os insensatos pagãos romanos um dia se renderiam a Cristo e seu Vigário? Não por nada São Pedro, auxiliado por São Paulo, vai enraizar a Igreja no solo da Cidade “Eterna”: por certo, estavam eles divinamente orientados para colocar a Pedra no centro de uma civilização que a mesma Providência Divina preparara para, ao preço da efusão lustral do sangue cristão, ser batizada e dar à luz a Cristandade.
(Continua.)
Adendo do Sidney: Não é demais lembrar que, ao darmos ênfase à doutrina bimilenar da Igreja neste ponto, não temos ilusão de que, a esta altura dos acontecimentos históricos, ela tenha alguma humana chance de materializar-se no plano político (mas, por ser de direito divino irreformável, ainda assim cabe-nos defendê-la). Por outro lado, é deveras propedêutico e ilustrativo apontar que todas as demais formas de política em que os planos material e espiritual se desvinculam (como duas mônadas estanques, incomunicáveis) são tremendamente nefastas, ainda que sob a capa de algo muito bom (como a hodierna democracia liberal), e os seus propugnadores, sem exceção, são quiméricos milenaristas. Quiméricos porque sugerem coisas absurdas, como por exemplo (um, dentre tantos) a aplicação, por Dante, do princípio averroísta do "único intelecto possível" ao plano político; milenaristas porque imaginam a possibilidade de instituição política neste mundo (de uma civilização, enfim) à margem da lei de Deus...