Sidney Silveira
A participação dos entes na ordem do Ser se dá em graus, e estes são especificados pela nobreza ontológica de cada um — que a nossa inteligência é capaz de deduzir ao considerar o seu modo de operação, pois, como diz o axioma escolástico, “o operar segue o ser”. Assim, quanto mais perfeito for o ato de ser de um ente, tanto mais nobres serão as potências radicadas em sua forma e, por conseguinte, mais perfeições ele poderá atualizar e participar.
Descobrimos isto a partir da forma do ente, que é princípio de operação e de inteligibilidade; mas essa forma é abstraída da qüididade material da coisa (quidditas rei materialis), pois não podemos ter um vislumbre intuitivo da essência dos entes, ao contrário do que imaginava Husserl, na esteira de Duns Scot. Reiteremos: o grau de ser de um ente é deduzido por nós de sua forma, e esta, por sua vez, é abstraída por nossa inteligência da materialidade que os sentidos captam. Isto porque não temos contato direto com o ato de ser dos entes, mas sim com a sua forma a partir da matéria.
A diferença entre um inseto invertebrado e um homem idiota é, a título de exemplo, quanto ao grau intensivo de ser: o invertebrado não tem potência para a idiotia, mas muito menos tem-na para a sabedoria, dado que não pode participar nenhuma ciência a outrem porque não a pode ter. A sua participação no Ser é, pois, em grau muito inferior e menos intensivo que a do homem. Em palavras chãs: um inseto não pode aprender nem ensinar a verdade, ao passo que o idiota, embora não ensine, tem potência para aprender. A capacidade de ser idiota, como se vê, é apanágio do homem — pois só ele pode dar-se ao luxo da estupidez. Mas da idiotia ele pode sair pelo aprendizado; ou, nos casos mais dramáticos de burrice acachapante, com o luxuoso auxílio da graça divina.
Pois bem. Nos entes compostos, a atualização das potências se dá por meio de faculdades, e estas se ordenam umas às outras para que se realize o optimum operativo radicado, em última instância, no ato de ser participado por Deus, o Próprio Ser Subsistente — na Criação. No caso do homem, ente composto, há ordem entre as potências para que ele atualize os atos próprios de sua essência — e onde existe ordem existe hierarquia, subordinação ontológica. Neste contexto, diga-se que a nota distintiva do ser humano não são as suas potências sensitivas, pois estas no homem são instrumentais com relação às potências intelectivo-volitivas, dado que, para entender e querer, nos valemos dos sentidos. Mas também entre as potências superiores há ordem e subordinação, pois, como se frisou num dos textos desta série, a superioridade necessária da inteligência em relação à vontade é quanto ao ser; a superioridade acidental da vontade em relação a inteligência é quanto ao operar.
Em termos simples, podemos dizer que a vontade, ao querer, participa necessariamente da inteligência, pois não se pode querer o que não se entende — ainda que se entenda mal, pois a vontade labora até mesmo a partir de vestígios de inteligibilidade; mas a inteligência, ao inteligir, não participa da vontade. Traduzamos isto em palavras bem didáticas: o homem pode entender sem querer, mas jamais pode querer sem entender, pois o objeto da vontade é a forma intelectiva do bem, a ratio boni apreendida pelo intelecto. E isto se dá mesmo nos casos em que a inteligência labora em erro ou está obliterada por paixões perversas; neste caso a inteligência é causa acidental da má escolha da vontade. Por aqui se vê como é importante nos esforçarmos para entender as coisas como são, pois com isso a nossa vontade se torna mais preparada para exercitar a liberdade.
Pois bem, no primeiro texto desta série afirmou-se que faríamos alusão ao caráter problemático — ou, melhor dizendo, ao erro — do tomista Cornelio Fabro em textos nos quais aborda a relação entre a inteligência e a vontade. E ali citáramos o livro Riflessioni sulla Libertà, onde o padre italiano dá vazão à sua heterodoxia nesta matéria, pendendo para um voluntarismo que não tem base nos textos de Santo Tomás, mas antes se assemelha à posição de Duns Scot segundo a qual a vontade autodetermina-se. Ora, sendo Fabro um metafísico e um leitor tão sagaz da obra do Aquinate, ao nosso ver tal erro só pode ter sido motivado pela assimilação de algumas categorias do pensamento moderno e posterior tentativa de inseri-las no contexto da metafísica tomista, com o mal-disfarçado intuito de fazer da liberdade uma espécie de “absoluto” transcendental inexpugnável.
No livro citado, o capítulo “Horizontalidade e verticalidade na dialética da liberdade” (título meio abstruso, como sói acontecer na terminologia fabriana) resume a tese do nosso autor, no ponto que nos interessa. Para começar, de acordo com o italiano, o domínio objetivo (e formal) do intelecto sobre a vontade é, em verdade, pertencente aos pontos capitais do que ele chama de “tomismo histórico” (punti capitali del tomismo storico), dando com isso a entender que a tese não seria propriamente da lavra do Angélico Doutor, mas dos tomistas, embora reconheça haver textos do mestre medieval que dão suporte a ela.
Ocorre que, com o propósito de identificar essa tese clássica do Aquinate com um suposto “intelectualismo aristotélico” assimilado pela escola tomista, Fabro chega a dizer que o lapidar princípio simpliciter intellectus est nobilior quam voluntas (“em sentido absoluto, o intelecto é superior à vontade”) é estático e formal. O italiano não se conforma com o fato de que a “razão de bem apetecível” (ratio boni appetibilis) seja objeto exclusivo do intelecto, embora não aduza sequer um argumento convincente para defender sua idéia.
Como veremos, a inócua tentativa de desqualificar a tese da superioridade metafísica do intelecto sobre a vontade tem uma razão de ser, no texto fabriano. Mais à frente, no mesmo capítulo do livro, num tópico com o sugestivo título de “Superioridade dinâmica da vontade quanto ao objeto que é o bem”, Fabro se diz perplexo com a afirmação (expressa no texto de Santo Tomás!) de que o intelecto move a vontade. E então, mesmo contrariando a letra e o espírito claríssimos de uma passagem da Suma Teológica (I, q. 82, art. 4), é ele quem nos deixa absolutamente perplexos com esta opinião: “Dizer que o intelecto move a vontade é uma simples metáfora” (dire che l’intellecto “muove” la volontà è una semplice metafora). Uma metáfora? Terá o tomista italiano esquecido neste ponto que todo movimento pressupõe um ato do motor (actus motoris), um ato do móvel (actus mobilis) e uma tendência ao fim (via ad terminum), e que aqui se trata do fato de a inteligência ser motor da vontade subministrando-lhe a forma intelectiva do bem sem a qual ela sequer poderia querer? Custa-nos acreditar.
Para Fabro, o intelecto apresenta o objeto apetecível à vontade, mas esta pode aceitá-lo ou não, querê-lo ou não. Pois bem, quanto a isto nem Santo Tomás de Aquino jamais disse o contrário, pois há uma indiferença subjetiva da vontade com relação aos bens particulares. Ocorre que a moção primordial da inteligência sobre a vontade — no contexto de que se trata — é quanto à forma intelectiva do bem, e não com relação a este ou àquele bem particular. Mas Fabro, no desenvolvimento de sua opinião de que “a vontade é a faculdade que constitui a atividade mais profunda do espírito” (è la volontà la facoltà che constituisce l’attività più profonda dello spirito), deixa de lado esta distinção fundamental. Aqui começa a tornar-se ainda mais clara a raiz do erro: o propósito de fazer da liberdade quase um transcendental do ser.
No tópico seguinte do livro de Fabro, o problema aumenta bastante. O autor italiano apóia a sua tese da superioridade metafísica da vontade sobre a inteligência na famosa premissa de Santo Tomás (expressa, entre outros lugares, no Comentário às Sentenças, IV, d. 49, q. 2, a. 7) de que amar a Deus é melhor do que conhecê-Lo. Ocorre que, com essa premissa, o Aquinate se referia ao homem no atual estado de vida, em que só é possível conhecer a Deus pelos seus efeitos, ao passo que na glória O veremos face a face. Daí dizer Gallus M. Manser, um tomista sem pruridos dialogantes com o pensamento moderno, o seguinte: “Na outra vida [sob a luz beatificante da glória], a fé se converte em contemplação, a esperança se vê cumulada e o amor se segue à posse contemplativa da felicidade pelo intelecto; nesse estado, o intelecto recupera [totalmente] os direitos naturais de sua soberania [sobre a vontade]”. Ou seja: para nós, nesta vida, Deus é mais amável do que cognoscível apenas porque o nosso conhecimento natural d’Ele é tênue; mas na outra vida esse amor estará por completo sob o influxo benemerente do conhecimento que d’Ele teremos, incomensuravelmente superior ao atual.
Os títulos dos trechos seguintes dessa obra de Cornelio Fabro não deixam a mais ínfima margem a dúvidas: “Estrutura transcendental (existencial) da liberdade radical” e “Autodeterminação originária da vontade”. Em resumo, a liberdade, neste contexto, seria como um dos transcendentais do ser (a propósito, quase na mesma época, o filósofo do Opus Dei Leonardo Polo também pretendeu defender a tese da transcendentalidade da liberdade, mas de forma totalmente malograda). Nesses textos Fabro tenta mostrar que a libertas exercitii da vontade faz desta faculdade algo “independente na ordem tendencial” — contrariando alguns textos eloqüentes de Santo Tomás, embora apoiando-se em outros fora do contexto, como no exemplo acima citado.
No caso supracitado, Fabro menciona um texto da obra De Veritate em que o Aquinate afirma que a vontade pode querer ou não querer (potest velle et non velle), mas o italiano é claro ao não aceitar a tese tomista de que este livre-arbítrio só se dá com relação aos bens particulares, mas nunca, jamais, em tempo algum, com relação à ratio boni e, muito menos, ao Bem supremo que é Deus — pois, ao ver a Deus face a face, não é possível a nenhuma criatura pecar, não é possível a nenhuma não querê-Lo, não é possível a nenhuma não amá-Lo.
Não negamos a importância histórica de Cornelio Fabro como tomista, sobretudo por ter dado ênfase à teoria do actus essendi em Santo Tomás, assim como por mostrar de forma clara que o Aquinate fez uma síntese abarcadora entre a metafísica aristotélica e o conceito platônico de participação, até então dados como inconciliáveis. Trata-se sem dúvida de um metafísico de escol, embora como teólogo deixe a desejar, entre outras coisas, ao nosso ver, pela apatia do seu “diálogo” com a filosofia moderna.
Por fim, no tema de que tratamos neste breve texto, o filósofo italiano é não apenas bastante heterodoxo, mas frontalmente contrário ao mestre medieval. Levada às últimas conseqüências, a sua tese não pode senão descambar no voluntarismo individualista que caracteriza o homem moderno: um homem sem fé, sem esperança e sem caridade.