quarta-feira, 7 de abril de 2010

Magistério da Igreja: da imposição à deposição — considerações sobre um trecho do livro do Padre Calderón

Sidney Silveira
Que hoje o Magistério da Igreja seja dialogado ninguém de boa vontade pode duvidar, pois isto não é suposição de algumas pessoas, mas uma proposição expressa com toda a clareza pelo próprio Magistério, como veremos abaixo. Na prática, após dois mil anos de serviços prestados, o clássico magister dixit tornou-se obsoleto e foi eliminado; com isto, logo se perdeu a noção de que o Magistério autêntico não está abaixo da fé, mas em certo sentido se encontra acima dela, pois as suas sentenças não são reguladas pelos Dogmas, mas os regulam — e, por seu meio, quem se expressa é o Divino Mestre, que participou esse Magistério à Igreja. Por isso, o critério de verdade do Magistério é a ciência divino-humana de Cristo, e não a ciência meramente humana dos homens (aqui, a aparente tautologia se faz necessária) — desde que, obviamente, as autoridades magisteriais exerçam o seu carisma pela intenção de ensinar as verdades da fé. Mas se elas abrem mão expressamente dessa intenção magisterial e pretendem apenas dialogar, estão por conseguinte abrindo mão da assistência sobrenatural do carisma que lhes foi participado.


É em razão desta fonte divina reitora do Magistério que a ciência teológica não pode contrariá-lo, nem modificar as suas sentenças. Sendo assim, é impossível um diálogo em pé de igualdade entre o Magistério e os teólogos, porque estes não têm acesso ao critério de verdade superior daquele, participado por Cristo. Pelo menos de acordo com a doutrina tradicional da Igreja. A propósito disso, pergunta com santa ironia o Padre Álvaro Calderón: “Por acaso Nosso Senhor tinha algo a aprender com Nicodemos?”. Quando teólogos, portanto, dão vazão a toda sorte de hipóteses fantasiosas à margem do autêntico Magistério e da Sagrada Escritura, estão na prática julgando-se superiores a Deus.

Pois muito bem: após reler algumas páginas do luminoso e aterrador livro A Candeia Debaixo do Alqueire: Questão Disputada sobre a Autoridade do Magistério Eclesiástico a partir do Concílio Vaticano II, do mencionado Padre Álvaro Calderón, que tivemos a felicidade de editar no Brasil, não há como não concluir, tomando como fonte os documentos eclesiásticos dos últimos 45 anos, que a Igreja tem preferido a expressão comum do sensus fidei da comunidade eclesiástica ao carisma magisterial. Infelizmente o diálogo continua, em detrimento do ensino.

Para provar o que se disse no primeiro parágrafo, ou seja, que o Magistério dialogado não é invenção de nenhuma pessoa, mas do próprio Magistério, transcrevo um pequeno trecho do livro citado (sobre o qual traremos algumas novidades em breve):

“Instauração do ‘diálogo’ como novo modo de exercer o magistério apostólico

A mudança mais manifesta do magistério conciliar com relação ao magistério anterior é que ele preferiu exercer-se por meio do diálogo. Este foi solenemente promulgado por Paulo VI na Ecclesiam suam, sua primeira encíclica, de 6 de agosto de 1964 [que diz]: “‘Ide e ensinai a toda a gente’; é o último mandato de Cristo a seus apóstolos. Estes, com o nome próprio de apóstolos, definem sua própria e indeclinável missão. Nós daremos a esse interior impulso de caridade, que tende a tornar-se dom exterior de caridade, o nome, hoje já comum, de diálogo. A Igreja deve entabular diálogo com o mundo em que tem de viver. A Igreja torna-se palavra. A Igreja torna-se mensagem. A Igreja torna-se colóquio [...]. O diálogo deve caracterizar o nosso ministério apostólico [...]. Essa forma de relação (...) não visa a obter imediatamente a conversão do interlocutor, já que respeita a sua dignidade e a sua liberdade'. A Hierarquia não pretenderá, portanto, impor um ensinamento por meio de autoridade: 'A autoridade do [diálogo] é intrínseca pela verdade que expõe, pela caridade que difunde, pelo exemplo que dá; não é ordem, não é imposição [nº 75]'”.

Como se pode ver no trecho papal acima citado ad tertium do livro do Padre Calderón, não há como ser mais claro: o ensinamento da Igreja será, a partir de então: a) por meio do diálogo, e não ao modo das fórmulas magistrais; b) esse diálogo não terá por objetivo a conversão; c) a Igreja não o proporá fazendo uso de sua autoridade.

A referida Encíclica de Paulo VI diz ainda que esse diálogo tem uma tríplice perspectiva: (1º) será da Igreja com a humanidade em geral, incluindo os ateus; (2º) com os crentes de outras religiões, em particular os judeus e os muçulmanos; (3º) com os “irmãos separados”, recebendo este último o apodo papal de “ecumênico”. Além disso, a Encíclica propõe um diálogo doméstico, no interior da Igreja, e por fim observa — no momento em que o Concílio ainda estava em curso — que “o diálogo no interior da Igreja e para o exterior que a circunda já é uma realidade”.

Voltemos, pois, a Calderón: “Esse diálogo ad extra e ad intra da Igreja, longe de terminar com o encerramento do Concílio, se intensificou e oficializou por meio de novas Comissões instituídas por Paulo VI. Para o diálogo ad extra, estabeleceram-se os Secretariados ‘para a União dos Cristãos’ e ‘para os Não-Cristãos’, dos quais dependem diversas Comissões de diálogo; para o diálogo ad intra se instituiu a ‘Comissão Teológica Internacional’, vinculada à S.C. para a Doutrina da Fé”. É muito instrutivo considerar a finalidade e a modalidade dessas Comissões, e sua relação com a Cúria Romana:

> A Comissão Teológica Internacional (CTI) reúne teólogos de diversas opiniões, representativos de um desejado pluralismo teológico, para que, dialogando entre si, encontrem o que há de comum em suas opiniões, e possam assim servir de interlocutores no diálogo com a Hierarquia, representada por sua vez pela S.C. para a Doutrina da Fé (SCDF)[1]. Embora, para facilitar o diálogo, o prefeito da SCDF seja ao mesmo tempo presidente da CTI, esta porém não será uma instituição pontifícia e nem sequer necessariamente clerical (na medida em que está aberta a leigos).
> As Comissões de diálogo inter-religioso têm natureza semelhante, são nomeadas oficialmente, mas suas conclusões comprometem somente a autoridade dos teólogos que intervêm; depois são publicadas para ver como são ‘recebidas’ pela Igreja, e a Hierarquia permanece livre para continuar ou não com os acordos ecumênicos.

Como se vê e se podia pressupor, ao instaurar-se a metodologia do ‘magistério dialogado’, os teólogos adquirem importância fundamental como interlocutores naturais diante da Hierarquia eclesiástica, cumprindo a função de mediadores entre o cume das autoridades e a base dos simples fiéis”.

Retomemos agora o fio da meada: de tal mudança expressa na intenção magisterial advireram todos os frutos que hoje já estão mais do que maduros: hoje o Papa dialoga com os bispos, sem no entanto ter força nem autoridade para impor a sua vontade (um exemplo é o pro multis da Missa, que ninguém obedece, malgrado o que diz um conhecido documento da Congregação para o Culto Divino e a Disciplina dos Sacramentos); os bispos dialogam com os teólogos, particularmente com os da CTI; e os teólogos dialogam entre si e com os simples fiéis, para captar-lhes o sentir comum da fé e, então, propor fórmulas que serão depois ratificadas pela Hierarquia. A Igreja, por sua vez, dialoga com os outros credos (a esta altura, a noção de verdadeira religião esboroou-se por completo), para com eles compartilhar algo que acidentalmente haja em comum.

O que se segue daí é o seguinte: 1) a Igreja não mais se proporá converter ninguém; 2) ela perderá unidade doutrinal, pois passará a se basear naquilo que Calderón, com notável agudeza de espírito, chama de consenso “plurânime” dos teólogos (já que cada um arroga-se o direito de dizer qualquer coisa, não raro contrariando o Magistério tradicional e a Escritura, até porque o diálogo passa a ter valor em si mesmo, e não necessariamente visa a alcançar um denominador comum); 3) essa babel doutrinal se refletirá tanto na Liturgia (que se abrirá a vários experimentalismos oriundos do "sentir comum" de cada comunidade de fiéis), como na evangelização.

Neste último tópico entra em cena a nova doutrina da inculturação do Evangelho, que abordaremos noutro texto...

Quando olhamos desapaixonadamente para este estado de coisas, é impossível não chegar à conclusão de que a Igreja só superará a atual crise — que é muito mais do que simplesmente moral, como nos querem fazer crer os neoconservadores — quando se reorientar doutrinalmente pela Tradição e pelo Magistério bimilenar, expurgando todos os tipos de modernismos teológicos que pretendem servir de sustentáculo racional para os gravíssimos erros que hoje observamos.

[1] - Alocução de Paulo VI aos membros da CTI, de 6/10/1969: “Seja-nos permitido assegurar-vos nossa intenção de reconhecer as leis e as exigências próprias de vossos estudos, ou seja: de respeitar aquela liberdade de expressão própria da ciência teológica. (...)”. De acordo com o Mons. Ph. Delhaye, Secretário da CTI, “o papel do teólogo, e muito especialmente do membro da CTI, não consiste em repetir e comentar os ensinamentos do Magistério, como supunha o esquema clássico de Pio XII. O teólogo deve colaborar com o Magistério”.