sexta-feira, 29 de janeiro de 2010

O apriorismo de Kant e suas conseqüências (II)


Sidney Silveira
A desarticulação entre a inteligência e a realidade — suposta em todas as premissas do criticismo kantiano — pode muito bem receber o nome de agnosticismo gnosiológico. Ou seja: trata-se da descrença na capacidade do intelecto de penetrar a região das essências das coisas, o “em si” dos entes. Tal agnosticismo acabou por acarretar a supremacia da praxis sobre a noesis, atitude predominante em quase toda a filosofia do século XIX e que será a porta-bandeira do marxismo revolucionário. Em suma, sendo o núcleo ontológico dos entes inalcançável pela nossa inteligência, é claro que o estatuto noético da relação do intelecto com as coisas se esfacelará, em detrimento do aspecto prático que, até então, era apenas um dos seus corolários. Para Platão e Aristóteles, por exemplo, uma praxis sem noesis seria nada menos do que uma aberração.

Hoje, com um olhar histórico que abarca não apenas as doutrinas kantianas, mas também as suas conseqüências e as reações que gerou, podemos indagar o seguinte: como pôde escapar ao filósofo de Königsberg que toda a vida do espírito se inicia sob luz da inteligibilidade dos entes? Ora, tão grande é a evidência desta verdade que uma das coisas mais angustiosas da vida, como afirmava Ortega y Gasset em Ideas y Creencias, é permanecer em dúvida. Para a nossa psique, o desconhecimento causador da dúvida traz consigo inquietação, incerteza, frustração, ao passo que o conhecimento abre novos horizontes de pensamento e ação — e, portanto, descortina todo um universo de possibilidades para o homem exercitar a sua liberdade. Não à-toa, diz Santo Tomás, no comentário ao Liber de Causis, que a inteligência se faz inteligente em ato mediante um objeto inteligível. Mas não assim para Kant, que deforma o ato do conhecimento logo no começo de sua Crítica da Razão Pura, como vimos no texto anterior.

Kant chama de “juízos analíticos” somente àqueles em que o predicado está formalmente contido no sujeito (por ex.: “O todo é maior do que as partes”), e este seu reducionismo, como veremos, deu margem a vários erros subseqüentes. Isto pelo seguinte: pode ser — como diz o já mencionado Octavio Derisi — que um predicado não esteja contido num sujeito pura e simplesmente (simpliciter), mas haja uma nota deste último que exija o predicado como propriedade sua. Deste segundo modo, podemos chamar de “analítica”, por exemplo, a esta proposição que se refere ao princípio de causalidade: “Tudo o que começa a ser tem, necessariamente, uma causa”. Aqui, embora o predicado não esteja contido formalmente no sujeito (“tudo o que começa a ser”), há neste uma nota (a contingência, ou seja: a possibilidade de ser ou não ser) que necessariamente implica e exige o predicado. Mas Kant simplesmente subtrai dos seus juízos analíticos este tipo de que tratamos, com o fito de construir com eles o que chamará de “juízos sintéticos a priori”.

Deixemos Derisi falar:

¿Cómo es posible que Kant no haya visto lo que nosotros tan fácilmente vemos? Y de nuevo en la respuesta nos encontramos con el mismo y funesto error fundamental: porque, mientras nosotros analizamos un concepto o un juicio, vale decir, un conocimiento que es esencialmente una penetración en el seno mismo de la realidad esencial, una comunicación intencional con la trascendencia misma del ser en la inmanencia de nuestro acto, y en ella vemos no sólo las notas expresas del sujeto sino sus exigencias ontológicas, Kant consagra su análisis a un concepto o a un juicio que no quiere ser sino un puro concepto inmanente o la unión de dos conceptos inmanentes, sin contacto alguno esencial con la realidad. Y entonces, claro está, es imposible hallar por puro análisis del concepto-sujeto un concepto-predicado que no esté formalmente en él encerrado. La necesidad de existir (esse), en ese caso, sólo puede provenir de la subjetividad. Los juicios sintéticos a priori, pues, sólo son concebibles partiendo de una noción deformada y falsa del conocimiento: de una idea o concepto desvinculada de la realidad, como pura representación suya”.

Que argúcia, Derisi! De fato, partindo de tais premissas, Kant só poderia dizer que o a priori desses juízos sintéticos não poderia vir da realidade, com a qual a inteligência — desalojada por ele do seu habitat natural — deixou de ter contato direto.

Em resumo, Kant empreende e erige a sua obra gnosiológica sobre uma deformação radical (e prévia) do próprio objeto da investigação crítica: o conhecimento. A sua “análise transcendental” versa sobre uma coisa que, ao fim e ao cabo, não é o conhecimento em si, mas uma idéia equivocada a respeito dele.

Repitamos sempre com o genial Derisi: a adoção de semelhante método para analisar a inteligência humana é absurda e contraditória, na medida em que não temos outra medida para avaliar a inteligência senão a própria inteligência que, previamente, Kant separou das coisas...

Noutro texto, traremos alguns aspectos da gnosiologia realista de Tomás de Aquino e veremos que, no plano da praxis, as conseqüências do kantismo serão ainda mais avassaladoras.