quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Da consciência farisaica à detração

Sidney Silveira
Diz Santo Tomás que a virtude é certa disposição psicológica de um sujeito que seja congruente com o modo de ser de sua natureza, razão pela qual a virtude é uma espécie de bondade*. E o vício é, justamente, o oposto: uma disposição contrária ao modo de ser de sua natureza. Mas entre uma virtude e um vício oposto, muitas vezes, há tanta semelhança que é dificílimo fazer a distinção entre eles. Há pusilanimidade parecida com prudência, prodigalidade com aparência de liberalidade, imprudência com fumos de coragem, avareza semelhante a equilíbrio nos gastos, adulação com ares de afabilidade, etc. Para julgar com retidão, é preciso atentar para os atos correlatos ao vício ou virtude em questão, pois estes nunca vêm sozinhos.

Uma dessas confusões se dá entre a benignidade e a covardia. Na verdade, é ridículo pensar que um sujeito é bom apenas porque não briga com ninguém, não discute sobre nada, mas busca sempre a convergência. Acentua antes os pontos em comum e minimiza as discordâncias entre as pessoas. De fato, isto em muitos casos pode ser boa coisa, pois, antes de tudo, revela uma predisposição para a concórdia que, em si, deve ser louvada. O problema se dá quando os pontos de desacordo se referem a algo de capital importância, e mais ainda: quando implicam o erro ou o acerto, a verdade ou a mentira em relação a determinado ponto. Então, aquilo que parecia de uma bondade alvar (como dizia caricatamente Nelson Rodrigues de alguns de seus personagens de crônicas) revela o seu caráter maléfico. E o que parecia ser o retrato de um espírito bondoso e pacificador, mostra ser o signo de uma omissão — que pode ser mais ou menos culpável na exata medida do conhecimento com que a ação foi levada a cabo.

Neste último caso, a consciência vai-se obliterando até chegar ao ponto em que o auto-engano se transforma num hábito pelo qual o sujeito torna-se incapaz de julgar com retidão os acontecimentos de sua própria vida. É o caso da consciência farisaica, que, de acordo com os grandes mestres de Teologia Moral, faz uma pessoa diminuir o que é importante e essencial, e aumentar o que é desimportante e acidental.

Não há como este arquetípico sujeito farisaico não se transformar num detrator, com o decorrer do tempo. Mas detrator de quem? De qualquer um? Não. Daqueles que dizem as verdades incômodas que a sua consciência tinha jogado para debaixo do tapete — e ele, decididamente, não quer ver. Não há como não se tornar semelhante ao personagem Dorian Gray do romance de Oscar Wilde, cuja fulgurante beleza esconde uma consciência tornada horrenda, em razão de uma vida de mentiras. É claro que, devido a esta atitude inicial de negação, uma pessoa em tal situação dramática não quer pôr à prova as suas crenças e opiniões, pois o medo de ver o erro em que está fala mais alto. Portanto, não lhe resta senão a murmuração.

Alguns católicos liberais, talvez por se ligarem a grupos ou a alguns movimentos que hoje pululam na Igreja, têm um esgar de nojo e espanto com os textos do Contra Impugnantes — apesar de os freqüentarem com uma assiduidade que muito nos honra. São os nossos mais sutis detratores, e muitas vezes essas palavras ao léu por eles proferidas, aqui e ali, nos chegam por canais os mais improváveis. Mas o fato é que chegam.

Definitivamente, não lhes quero o mal, de forma alguma. E, quanto a alguns deles, tenho a firme esperança de que Deus os tirará, mais dia menos dia, dessa rede de crenças equívocas que molda a sua consciência**.

* Suma Teológica, I-II, q. 71, a. 1, resp.
** É claro que não me refiro aqui àqueles liberais que mentem e detratam com plena consciência. O caso destes é muito difícil, pois os pecados contra a Verdade se tornam uma qualidade permanente da alma, como diz o Aquinate em alguns trechos de sua obra...