Sidney Silveira
Não pode haver liberdade, em nenhum sentido, onde não há inteligência. Ou, noutros termos, é graças à luz subministrada pelo intelecto à vontade que nos tornamos capazes de escolher entre os bens que se nos apresentam. Em suma, escolhemos isto ou aquilo não de maneira cega, mas por esta ou por aquela alegada razão — ainda que errônea, por não deliberar acerca de algum ponto importante implicado na escolha. Fundamentalmente, para ser livres precisamos da ratio (e, por meio dela, da posse do seu objeto formal próprio, que é a verdade*), mesmo que, fazendo mal uso da inteligência, reduzamos a nossa liberdade a escolhas cada vez mais distantes da lei natural captada por nossa razão prática.
Não pode haver liberdade, em nenhum sentido, onde não há inteligência. Ou, noutros termos, é graças à luz subministrada pelo intelecto à vontade que nos tornamos capazes de escolher entre os bens que se nos apresentam. Em suma, escolhemos isto ou aquilo não de maneira cega, mas por esta ou por aquela alegada razão — ainda que errônea, por não deliberar acerca de algum ponto importante implicado na escolha. Fundamentalmente, para ser livres precisamos da ratio (e, por meio dela, da posse do seu objeto formal próprio, que é a verdade*), mesmo que, fazendo mal uso da inteligência, reduzamos a nossa liberdade a escolhas cada vez mais distantes da lei natural captada por nossa razão prática.
Portanto, o ato moral é o ato livre praticado pelo homem sob o influxo da luz natural da inteligência. É a inteligência que, formalmente, nos diz que querer ou fazer isto ou aquilo é ou não é bom, sob determinada ratio. E não é preciso ser filósofo para usar relativamente bem da liberdade, pois há em todos nós uma fundamental conaturalidade com os primeiros princípios da razão prática que nos dão a notícia, desde a mais tenra idade, da bondade ou maldade intrínseca de alguns atos e fatos elementares.** Desde pequeno, (em condições normais) eu sei que agredir ou matar os outros não é bom, porque não o é ser agredido ou morto pelos outros. Que não é bom mentir porque não o é que mintam para mim. E assim por diante. Em síntese, toda boa filosofia não só não ofende a esse bom senso primordial, como é, na prática, uma extensão sua.
Um dever de consciência que obriga uma pessoa a agir desta ou daquela forma é, neste contexto, como uma extensão das evidências de que ela parte em suas escolhas. A consciência, sendo uma determinada ciência aplicada a algo (cum alio scientia, na conhecida expressão de Santo Tomás), vincula a nossa ação de tal forma, que contrariá-la causa sempre algum grau de remordimento, a menos que a consciência esteja absolutamente cauterizada por vícios que nascem de hábitos mentais deturpados. E quanto mais importantes são as verdades de que um homem tem consciência, mais moralmente está obrigado a agir balizado por elas, ainda que contrariando a muitas pessoas. A consciência é “regra regulada” (regula regulata). Ou seja, é regra no ato de nossas escolhas; e regulada pelo fundamento que a sustém e alimenta: a captação dos princípios da lei natural pela razão prática, de que falamos acima.
Ter reta consciência de uma verdade importante e não proclamá-la apenas para evitar constrangimentos, ou por medo de perder amizades, ou por razões políticas de qualquer ordem, é sempre uma omissão culpável em algum grau. E isto até mesmo nos casos em que a consciência esteja errada, pois, como afirma Santo Tomás em alguns de seus escritos, a consciência errônea também obriga ao ato e é menos culpável quem age mal sendo fiel aos ditames de sua consciência errônea do que quem age mal deliberadamente — quer dizer: sabendo de antemão laborar no erro e induzir os outros a erros. O segundo desses atos é o que os teólogos chamam de pecado contra o Espírito Santo, que se dá pela impugnação (culpável) da verdade conhecida.
Digo tudo isso a propósito de algo que me veio à mente hoje, pensando em algumas reações recentes ao meu trabalho e ao do Nougué (neste blog, na Sétimo Selo, no Instituto Angelicum, etc). São pessoas que parecem querer adivinhar as intenções e motivações que nos compelem a agir. Mas como os seus juízos neste exercício de adivinhação passam a léguas da realidade de nossas reais motivações (o que para mim é mais uma prova material de que os homens não conhecem as coisas por intuição direta das essências), e como não há como demonstrar apodicticamente quais são as nossas intenções (pois só Deus sonda os corações humanos), podemos no entanto aduzir como argumento provável algo semelhante ao que fez Sir. Thomas More durante o seu injusto julgamento, ao tentar mostrar aos juízes que o que dizia um dos seus acusadores era uma nefanda mentira:
Um pedido desses, embora não seja uma prova material de inocência, é exatamente o que alguns juristas de antanho chamavam de argumento provável em defesa do réu quanto a determinado ponto do julgamento, na medida em que roga para si a aplicação de uma pena maior (nada menos que a perda definitiva da alma), por uma jurisdição superior cujos decretos são absolutamente irrevogáveis, em detrimento da pena menor aplicada por um tribunal cuja competência é, igualmente, menor.
Agia Thomas More, no caso em questão***, por um dever de consciência: o de negar-se a considerar lícita a separação entre Henrique VIII e sua esposa, assim como o de negar-se a reconhecer a legitimidade da recém-criada Igreja Anglicana pelo rei que levou uma nação inteira à apostasia. Perdeu ele a amizade do rei e, depois, a própria vida por um dever de consciência. Não à-toa foi proclamado santo.
Como dizem os grandes tratadistas da Teologia Moral, com relação ao modo de julgar pode ser a consciência escrupulosa (crer que há erro e pecado onde não os há); laxa (inclinar-se, por motivos fúteis ou inapropriados, à inobservância de alguns ditames fundamentais da reta razão); farisaica (aumentar o que é desimportante e diminuir o que é relevante); cauterizada (ser indiferente às maiores barbaridades ou crimes); e delicada (julgar retamente até os menores detalhes). Se observarmos bem os atos de nossa própria vida, sempre nos veremos nalguma dessas úteis classificações. Mas na verdade só os veremos pelo exame de consciência (aquele mesmo que é preciso fazer antes de confessar a Deus um pecado, não sem antes pedir as lágrimas da santa compunção).
Nada mais difícil do que julgar um caso de consciência, pelas inúmeras circunstâncias implicadas nos atos humanos. Que dirá julgar as consciências alheias!
Que Deus não nos permita ver a Sua face beatificante, se com este trabalho agimos contrariamente à nossa consciência e ao dever de (como cristãos) não denegar a verdade católica — não diminuí-la, não condicioná-la a fatores exógenos absolutamente contingentes.
Esta é a única coisa que podemos alegar aos que querem "adivinhar" os nossos motivos, ou melhor: àqueles que insinuam serem os piores possíveis.
* “Conhecereis a verdade, e a verdade vos fará livres” (Jo. VIII, 32).
** Não entra no mérito desse texto o pecado original, que impede que alcancemos a excelência em nossos atos humanos.
*** Digo "no caso em questão" porque estou referindo-me aqui à corajosa posição de Thomas Morus contra o nefasto Henrique VIII, e não aos erros que perpetrou em sua famosa Utopia.