segunda-feira, 10 de novembro de 2008

Um “ecumenismo” de conversão

Sidney Silveira
O chamado diálogo inter-religioso tem — no parecer de seus atuais defensores nas universidades da Europa e dos EUA — alguns exemplos modelares na Idade Média. Um deles teria sido o pensador catalão Ramon Llull, homem que viveu entre os séculos XIII e XIV.

Conheci, em síntese, a trajetória deste singular pensador cristão leigo por uma mera contingência existencial: meu irmão, professor de História Medieval, dedica-se há vários anos ao estudo da vida e da obra de Ramon Llull.

Mas o que me interessa, no momento, é o seguinte: podemos discordar ou concordar com Llull em várias de suas proposições teológicas, metafísicas, lógicas, etc., e também especular acerca do estatuto epistemológico de sua famosa Arte, mas um dado histórico não se pode negar nem, muito menos, sonegar ou minimizar, para não se defraudar a verdade em um ponto fundamental: o objetivo do diálogo de Llull com muçulmanos e judeus não era outro senão a conversão destes à religião católica. Incontáveis documentos nos dão conta disto. É, portanto, um equívoco supor que a busca de pontos em comum para o estabelecimento de um diálogo com representantes de outras religiões, na obra de Llull, fizesse do próprio diálogo um fim em si mesmo. Ou então que tivesse transformado Llull em alguém a serviço do diálogo, como dizem alguns historiadores, pois a expressão “servir ao diálogo” nos induz, obviamente, a concluir que o diálogo é um fim e um bem em si — e este não era, em verdade, o caso de Llull.

Há, entre esses historiadores, quem afirme que, para Llull, o diálogo inter-religioso deve partir da suposição de que o que o outro quer nos dizer tem, possivelmente, um conteúdo proposicional verdadeiro. Mas aqui cabe fazer uma ressalva (entre outras, que omitimos por uma simples questão de espaço no blog): isto só poderia ser válido se eliminássemos do horizonte do diálogo a autoridade do Magistério, no que diz respeito ao seguinte tópico: os dogmas não se referem a proposições filosóficas verdadeiras ou falsas, e muito menos dizem respeito às predisposições psicológicas de alguém ao entrar num debate de idéias, mas têm por objeto formal próprio as verdades de fé. E nestas, é bem certo o ditado: Roma locuta, causa finita est*. Em suma, a suposição de que o que o outro quer nos dizer tem um conteúdo proposicional verdadeiro não pode ser o sustentáculo do diálogo inter-religioso simplesmente porque o objeto em discussão são, exatamente, os pontos que, para o católico, estão fora de qualquer discussão: as mesmas verdades de fé, e não as verdades filosóficas a que a razão natural pode chegar**.

Eis, em resumo, a diferença fundamental entre a postura de Ramon Llull e isto a que contemporaneamente chamamos "diálogo inter-religioso": o atual diálogo não é de conversão! Ele é na prática um fim em si mesmo ou, então, tem por objetivo um “crescimento comum no mútuo entendimento", nas palavras de alguns ecumenistas praticantes. De minha parte, estou de acordo com Jordi Pastor, quando diz que “o fato de Ramon Llull absorver elementos externos à sua fé não significa que ele seja um ecumênico, um pioneiro do diálogo inter-religioso, ou algo parecido, como alguns afirmaram, mas que tentou buscar pontos comuns entre as três religiões [monoteístas] para poder mostrar a primazia da fé cristã”.

A diferença formal é, então, entre um ecumenismo do diálogo e um diálogo de conversão do infiel, realidades que são absolutamente distintas: numa delas, o diálogo é o fim a ser buscado; noutra, o meio para que se alcance o fim da conversão do infiel e da refutação dos seus erros. É verdade que, para alguns professores, Llull é apenas um precursor, e hoje avançamos muito neste ponto... Por acaso, em geral não são católicos.

* Não é ocioso lembrar (como acertadamente faz o teólogo Álvaro Calderón, num de seus livros) que a função precípua do Magistério da Igreja não é tanto a de explicar, com precisão de termos, os alcances da doutrina católica, ou a conexão desta com a Revelação — tarefa que o Magistério também cumpre, mas que pertence, mais propriamente, à teologia —, e sim estabelecer, com uma certeza superior à humana, certas verdades para ser cridas pelos fiéis e para que sirvam de princípio e fundamento das questões teológicas. Daí que os Papas e os Concílios, em suas declarações solenes, sempre optassem por sentenças breves, escolhendo os termos não por uma suposta clareza “científica”, mas pela segurança de expressar com absoluta fidelidade a Tradição. Estas considerações de Calderón nos apontam que, com relação aos dogmas e aos costumes, o Magistério é a palavra final, toda vez que é exercido com intenção de obrigar a todos os fiéis. E se se nega que o Magistério parte de uma certeza superior à humana, caímos fora do horizonte da fé, pois com isto se nega, ipso facto, que o Magistério tenha sido participado pelo próprio Cristo, verdadeiro Deus e verdadeiro homem. Mas, neste caso, já não estamos a falar de fé católica, e sim de uma religião antropomórfica qualquer.
** Há um consenso entre os estudiosos contemporâneos da obra de Llull de que, até prova em contrário, o autor catalão não leu nada de Santo Tomás de Aquino — Doutor da Igreja que, na Suma Contra os Gentios, já nos dera a fórmula para o estabelecimento de algum "diálogo" inter-religioso: com os judeus, temos em comum o Antigo Testamento, apenas; com os hereges, o Novo Testamento (mas diferimos destes em relação às opiniões contrárias ao Magistério que, obstinadamente, mantêm); e com os sarracenos — ou seja: os muçulmanos —, não temos em comum nada das Sagradas Escrituras, razão pela qual devemos partir de dados que a razão natural alcança, para demonstrar os seus erros. Como se vê, também em Santo Tomás não havia (como aliás não poderia deixar de ser!) nenhuma espécie de "diálogo pelo diálogo" ou coisa que o valha.