quarta-feira, 19 de novembro de 2008

René Girard e o catolicismo

Omne subsistens in natura rationali vel intellectuale est persona”.
Santo Tomás, Suma Contra os Gentios (IV, 35)

Sidney Silveira
“Tudo o que subsiste na natureza racional ou intelectual é pessoa”. Vejamos esta máxima de Santo Tomás com olho de lince, para depois fazermos alguns comentários:

A) Toda pessoa tem algo em si: uma natura racional ou intelectual. E não poderia ser diferente, pois, em todo e qualquer ente, há um radical ato de ser que o constitui, mesmo que tal ente encontre formalmente a sua razão de ser noutro ente — como o sangue, por exemplo: ele existe para transportar oxigênio, substâncias orgânicas (dissolvidas) e sais pelas veias e artérias do corpo humano, numa atividade coordenada pelo coração. Finda a vida do corpo, o sangue pára de circular, coagula e deixa de ser o que é. Mas o fato de o sangue ter uma causa final (uma função específica para além de si mesmo) não implica que, por isso, deixe de ter um ato de ser próprio, uma substância com tais ou quais características, simplesmente porque um não-ente não poderia ter função nenhuma. O mesmo se pode dizer do “eu” pessoal: ainda que tenha sido feito para amar e louvar a Deus, ele não deixa, por isso, de estar na posse substancial do seu ato de ser, inclusive quando, dramaticamente, faz uso de suas potências mais elevadas (inteligência e vontade) para negar a finalidade que Deus projetou para ele: a perfeita bem-aventurança — caso dos demônios e também dos homens que morrem na situação que os teólogos chamam de obstinação final.

O “eu” pessoal, portanto, antes de ser relacional, é ontologicamente substancial. E a sua substância racional-volitiva é de tal ordem, que lhe propicia relacionar-se livremente com as demais pessoas e coisas. Sendo assim, o “eu” decide como e de que forma vai relacionar-se; não fosse assim, não seria livre. E nisto é, essencialmente, diferente do sangue, que não é livre para relacionar-se com as veias, as artérias e o coração de forma distinta da que se relaciona. A propósito, a metafísica da relação nos aponta para as distinções possíveis entre ser e relacionar-se, categorias sem cujo conhecimento é temerário emitir juízos nesta matéria.

Quando René Girard e seus sequazes nos querem fazer acreditar que é da natureza do desejo ser movido não pelos bens objetivos com os quais o espírito se relaciona, mas apenas pelo fato de uma coisa ser objeto do desejo de outras pessoas (na pressuposição de que, pela posse de tal coisa, esse “eu” desejante se diferenciará dos outros, e assim se tornará também ele mais “desejável”), na verdade está invertendo os pólos, tentando transformar, por meio de uma diabólica alquimia, a substância da vontade (apetite intelectivo do bem, raiz de todo e qualquer desejo) em algo patologicamente insanável, movido apenas pela intenção de singularizar-se*.

De acordo com tal “tese”, a vontade não quer nada de forma objetiva, mas transobjetiva. Ou seja: quer algo tão-somente quando movida pela inveja dos bens possuídos por outrem, e o quer exatamente porque outras pessoas também o querem. Ora, não negamos que alguém possa encontrar-se nesta desgraçada situação, mas fazer dela algo “natural” no homem é, para dizer o mínimo, luciferino. Se quem diz isto é católico, das duas uma: ou está impugnando a verdade conhecida e servindo ao inimigo do gênero humano, ou jamais leu sequer o Catecismo.

Que alguém sem formação filosófica pense isto, definitivamente não é problema nosso. Rezemos para que um dia tal arquetípica pessoa estude, para aprender que, na ordem ontológica, é impossível haver um ente meramente relacional — pelo simples fato de que o ato é, radicalmente, anterior à potência; sendo assim, para um ente relacionar-se é necessário, antes de tudo, ser. Esta é a razão por que o nosso ser pessoal não é como um ente relacional matemático. Mas que tais pessoas propaguem essas idéias associando a elas qualquer coisa do Catolicismo, é algo que nos cabe desmascarar com firmeza, se possível publicamente. Se possível, pessoalmente. Que tais pessoas se apresentem para uma disputa! Mas sem consultar o mapa astrológico ou o horóscopo do dia, e sem apelar para o pé-de-pato-mangalô-três-vezes.
***
O fato é que o “eu” pessoal não deseja e age para ser visível e desejado por outros “eus”. Que o digam, por exemplo, os monges e freiras enclausurados, escondidos da espetacularização do mundo, dos “porkuts”, dos big brothers, etc. Será que eles agem sempre querendo projetar uma imagem? Quando um monge aplica — longe dos olhos do mundo! — a disciplina, chicoteando-se com firmeza, estará ele querendo projetar uma imagem para outras pessoas, ou querendo conformar-se ao sofrimento de Cristo e combater a concupiscência, desgovernada pelo pecado original? Ou será ele um hipócrita?**

Santo Tomás já nos dissera que pessoa é o que há de mais íntimo e perfeito em toda a ordem do ser. Ser pessoa é ter, portanto, uma fundamental instância de interioridade. E essa intimidade se atualiza pelos movimentos de nossas potências mais excelentes: a inteligência e a vontade. Este fato é comprovável empiricamente: se entendo ou quero algo, ninguém poderá sabê-lo, a menos que eu expresse esse entendimento e esse desejo. Trata-se de algo radicalmente íntimo. Mas o que Girard faz com a sua tese é, na prática, acabar com a nossa interioridade, fazendo o âmago da nossa vontade ser movido por exterioridades torpes ou fúteis e orbitar em torno delas. E veremos por que razão, noutro texto.

* Quando fala dos 12 degraus da humildade em sua Regra, São Bento nos ensina que um deles é, justamente, não nos singularizarmos, não querermos parecer diferentes ao olhos dos outros, por supostos méritos que tenhamos. E o Santo vai além: aconselha cada um a se comprazer INTERIORMENTE quando for mal julgado pelos homens. Mas, se levarmos a sério a tese de Girard e de seus sequazes, a humildade se torna uma impossibilidade ontológica, pois, segundo tal tese, nunca agimos senão para nos singularizarmos perante os outros. Vivemos pela e para a platéia.
** Ainda no caso do hipócrita, lembremos do que dizia Santo Tomás: “Mesmo a hipocrisia é uma forma de reverência ao bem”. Por quê? Simplesmente porque o hipócrita — ao querer parecer melhor do que é — mostra com isto o respeito e a reverência que tem pelo bem em si.
Em tempo: A relatividade dos entes (dentre os quais a criatura humana) ao Própio Ser (que é Deus, o absolutamente necessário) não lhes retira o estatuto ontológico atual, mas apenas aponta para o princípio e o fim de todos eles. Eles não são meramente relacionais porque a semelhança que têm com as Pessoas Divinas é justamente esta: cada coisa é vestígio da Trindade na exata medida em que é algo, um ente, razão pela qual Santo Tomás nos diz que cada coisa subsiste em seu ser (cf. Suma Teológica, I, 45, a. 7), mesmo que este se relacione com as Pessoas Divinas assim como o efeito se relaciona com a causa.