Sidney Silveira
Agradeço ao Pe. Renato Leite pelo convite e, também, pela generosa acolhida para o evento por ele organizado em São Paulo, no último sábado (30/07), encerrado com a Santa Missa no rito tridentino. Foi comovente ver o interesse que o problema do mal e do pecado na obra de Santo Tomás despertou, assim como a questão relativa aos princípios metafísicos da ordem moral. Na ocasião, um dos temas aos quais se fez referência foi o modo da existência de Deus nas coisas, e, dada a importância teológica desta questão filosófica de grande profundidade metafísica, penso não ser ocioso expressá-la por aqui.
De um só golpe, na questão da Suma Teológica intitulada De Existentia Dei in Rebus (I, q. 8.), após haver demonstrado numa série considerável de artigos a existência de Deus (I, q.2), a omnímoda simplicidade de Deus (I, q.3), a perfeição de Deus (I, q.4), a bondade de Deus (I, q.6) e a infinitude de Deus (I, q. 7), Tomás de Aquino põe por terra todos os tipos de panteísmo e de imanentismo, que não são outra coisa senão duas formas de gnose, com variadas configurações e/ou diferenças específicas. A sua resposta magistral demonstra que os modos segundo os quais se pode dizer que Deus está nas coisas são, exatamente, os seguintes:
Ø Per præsentiam: Aqui, enfatiza-se o fato de que Deus está em todas as coisas devido ao Seu perfeitíssimo conhecimento delas. Neste contexto, a expressão latina per præsentiam significa que a inteligência divina tem em Si, presencialmente, ou seja, em ato, a forma inteligível de todas as coisas. Em resumo, elas estão de todo “presentes” a Sua inteligência, no sentido de que Ele esgota, de forma absoluta, a inteligibilidade delas contemplando-Se, como causa perfeita e inteligente ao infinito. Por analogia, podemos dizer que o conhecimento de um bom professor em determinada matéria se espraia imaterialmente pelas coisas por ele conhecidas, embora jamais esgote o que nelas há de inteligível em potência, dada a humana finitude de nosso intelecto. Mas Deus — o Ser Subsistente, verdadeiro e único “olho” que a tudo vê — tem presentes na inteligência, num só ato, todos os entes sem nenhuma exceção, nos princípios e também nos fins últimos deles radicados em Sua própria essência infinita, que é Ser em sentido absoluto (esse simpliciter). Além do mais, as coisas têm o ser n’Ele, pois sem Ele nada seriam. Retenhamos, pois, isto: formalmente, Deus está em todas as coisas pelo conhecimento. Daí dizer-se que é Ele omnisciente. Portanto, este é o primeiro modo da omnipresença divina, ou seja, da ubiqüidade de Deus: imaterial, pelo conhecimento perfeitíssimo que Ele possui de todas as coisas — tanto das essências como de seus acidentes individuantes.
Ø Per potentiam: Neste tópico, antes de tudo, vale referir o fato de que a potência é um possível no Ser, e todas as coisas estão em potência para o Próprio Ser na exata medida em que participam d’Ele. Pois bem, quando afirma que Deus está nas coisas per potentiam, o Aquinate quer simplesmente frisar o seguinte: a absoluta omnipotência divina alcança todas as coisas sem nenhuma exceção, razão pela qual o mestre medieval enfatiza recorrentemente em sua obra que os entes têm potentia obedentialis relativamente a Deus, seu criador e mantenedor. Não se trata, como é evidente, de que Deus esteja em potência com relação às coisas, mas justamente o contrário, elas é que são um possível metafísico radicado no Próprio Ser, no Ato Puro sem mescla de nenhuma potência passiva. Pois bem, se no item anterior recorremos à analogia do bom professor cujo conhecimento se projeta nas coisas conhecidas em sua matéria, agora usamos a analogia do governante da nação cujo poder se estende a todos os cidadãos. Um eminente poder de regência. E este é, justamente, o segundo modo da omnipresença ou ubiqüidade divina: a absoluta omnipotência, ou seja, a Sua virtude operativa máxima com respeito a todas as coisas, daí dizer-se que Ele é Todo-Poderoso. Ora, ter poder sobre as coisas implica tê-las sob o influxo da ação, motivo pelo qual se pode dizer que Deus está nas coisas também per potentiam. E não é demais reiterar que esta omnipotência radica na infinitude do ato de Ser divino, que cria e mantém todas as coisas na ordem do ser, conforme se apontou acima.
Ø Per essentiam: Aqui, como veremos, não se trata de que os entes compartilhem em suas próprias formas da essência divina (o que nos levaria, ao fim e ao cabo, a algum panteísmo imanentista, quando não a uma divinização do homem e da natureza, como quando se diz que “há uma parte de Deus em nós”), e nem da união hipostática em Cristo, o Verbo Encarnado, pois este é um problema teológico que escapa ao tema em questão. Trata-se de ver que todos os entes são perfeições causadas, ou seja: são coisas que somente Deus pode produzir, e sem o intermédio de causas segundas, o que está implicado na premissa de que o conjunto de entes do universo não poderia ser autocausado, o que seria absurdo. Em palavras simples, frise-se que o ser penetra e invade profunda e intimamente todos os entes sem exceção alguma — é famosa a frase de Tomás “o ser é o mais íntimo em todas as coisas” —, pois tudo quanto há nos entes, por recôndito que seja, está atuado, informado e realizado pelo ser, que é participado por Deus. Neste sentido e somente neste, como afirma o notável Santiago Ramírez, é possível dizer o seguinte: Deus é ao mesmo tempo profundamente imanente a todas as coisas (mas não como se compartilhasse com elas a matéria e a forma, e sim pelo fato de os entes serem uma participação no Ser divino) e absolutamente transcendente a elas. E transcende a todas justamente porque não é parte essencial ou acidental de nenhuma, mas reside nelas como causa agente que as conserva continuamente no ser. Neste sentido se diz que Deus é Ato Puro, e somente um ser assim poderia atuar infinitamente, como Deus o faz. E este é, pois, o terceiro modo de omnipresença de Deus: como causa agente primeira eminentíssima, que atua sobre todas as coisas não apenas ao criá-las, mas também ao mantê-las.
Neste contexto, convém destacar que a virtude operativa dos entes finitos radica proximamente em suas formas, mas primeira e fundamentalmente no ser — que as transcende e é participado por Deus. Em resumo, nenhuma criatura alcança dar o ser nem aniquilá-lo, pois isto é algo que somente um Ser omniperfeito teria potência para realizar. Repitamos com outras palavras, e a título de técnica mnemônica com o intuito de gravar bem este último conceito: a nossa ação só alcança a matéria e a forma dos entes, mas não o ser; este último é o suposto fundamental de todas as coisas, e só pode ser atuado por Deus.
Bem, depois de considerar este tríplice modo divino de estar nas coisas (per præsentiam, per potentiam e per essentiam), vale registrar: quando observamos os erros em que caíram incontáveis filósofos importantes, anteriores ou posteriores a Santo Tomás, nesta questão, atualizamos na mente a grandeza extraordinária do Aquinate.
Se Espinosa, por exemplo, tivesse aprendido esta e outras lições na Suma Teológica, provavelmente não incorreria em tantos erros primários na sua Ética, como o da pressuposição infantil — não obstante feita de sutis matizes argumentativos — de que só há uma substância em todo o universo. O seu Deus sive Natura, absurdidade lógica e ontológica, talvez sequer tivesse sido inventado...