Sidney Silveira
Compartilho com os leitores do Contra Impugnantes o começo da apresentação à edição bilíngüe do livro "As Heresias de Pedro Abelardo", editado pela Sétimo Selo, a qual assinarei juntamente com o meu irmão, o Prof. Ricardo da Costa — cabendo a ele a parte histórica (com detalhes interessantíssimos e deveras reveladores) e a mim, os aspectos relativos ao conceito de heresia e ao que estava implicado, do ponto de vista eclesiástico, neste famoso embate. Como se frisou noutra ocasião, estamos correndo para lançar a obra no evento Santo Tomás, médico da alma, a realizar-se no próximo dia 24/09.
Apresentação
BERNARDO DE CLARAVAL, ARQUÉTIPO DO BOM COMBATENTE
Neste livro encontra-se o essencial do episódio em que se enfrentaram São Bernardo de Claraval (1090-1153), grande corifeu da Ordem Cisterciense no século XII, e Pedro Abelardo (1079-1142), retórico e lógico que tomou parte na famosa querela sobre os universais e se tornou famoso, nos séculos seguintes, devido ao seu malfadado romance com a sobrinha de um cônego — Heloísa —, narrado pelo próprio Abelardo na Historia Calamitatum, obra também conhecida com o nome de Abælardi ad amicum suum consolatoria. Trata-se da demonstração, por parte de Bernardo, das principais heresias de Abelardo, com destaque para o monarquianismo ou patripassianismo, doutrina que rejeitava a concepção da Santíssima Trindade e proclamava a unicidade absoluta de Deus, nisto contrariando cabalmente o mistério do Deus uno em natureza e trino em Pessoas.
Para dimensionar a questão, é preciso antes de tudo saber o que é uma heresia e apontar o seu caráter deletério para a Igreja. Depois, compreender quais foram as heresias de Abelardo que combateu Bernardo. E, por fim, lançar um olhar histórico-crítico sobre o embate entre estes dois homens, com o intuito de desfazer a visão deformadora que, nos últimos séculos, fez de Bernardo uma espécie de algoz autoritário, e de Abelardo, a “vítima” impedida injustamente de exercer a sua liberdade de expressão. Ver-se-á com toda a clareza o quão distante isto se encontra da realidade dos fatos, e como o abade cirsterciense pode ser considerado uma espécie de arquétipo do bom combatente.
Antes de tudo vale ressaltar que a história dos dogmas da Igreja caminha no mesmo compasso das heresias: incontáveis vezes foram eles proclamados de forma solene pelo Magistério eclesiástico para combater doutrinas ou opiniões derrogadoras da fé — e, portanto, lesivas ao fim último buscado pela Igreja militante no mundo: a salvação das almas. Excluir esse fim de qualquer análise historiográfica, além de denotar uma particular espécie de má-fé hermenêutica [1], é colocar-se previamente em situação de não poder compreender o foi a Cristandade e o que é a Igreja.
Igreja e heresia
A palavra “heresia” provém do vocábulo grego αἵρεσις, e do latim hæresis. Significa “eleição”, “escolha”, “opção”. Trata-se, na prática, de uma pertinaz adesão a conceitos divergentes ou contrários às verdades de fé que integram o corpo doutrinário da Igreja — ocasionando a este uma grave ruptura na unidade e pondo em risco a sua perenidade no decorrer dos séculos. Noutras palavras, é a literal deturpação de uma proposição de fé, mantida pelo herege mesmo após as advertências das autoridades eclesiásticas baseadas na Sagrada Escritura, na Tradição, no Magistério e nos argumentos teológicos e filosóficos que demonstram a absurdidade intríseca da heresia. Por aqui se entrevê a primeira característica da heresia: versar exclusivamente sobre matéria de fé [2], motivo pelo qual é considerada formalmente uma infidelidade, chegando, nos casos mais graves, ao cisma ou à fundação de seitas que de cristãs têm apenas alguns traços esparsos, chamados pelos escolásticos de vestigia Ecclesiæ, ou seja: fatores insuficientes para imprimir caráter eclesial a comunidades cismáticas, heréticas e/0u excomungadas, as quais sempre têm alguma heresia como pedra angular da doutrina.
Tal é o caráter corruptor das heresias para a fé cristã que, desde sempre, o Magistério, os Santos Doutores e os teólogos as enfrentaram com todo o vigor. Já na época dos Padres da Igreja, Santo Irineu escrevia o Adversus hæreses, contra heresias gnósticas; contra o arianismo colocou-se Santo Atanásio; contra o donatismo, o maniqueísmo e o pelagianismo, o grande Santo Agostinho deixou-nos obras memoráveis; os iconoclastas encontraram em São João Damasceno um inimigo implacável; contra a heresia cátara, já na Idade Média, escreveu Santo Antônio de Lisboa as suas páginas mais eloqüentes e ácidas; Santo Tomás de Aquino, por sua vez, combateu praticamente todas as heresias anteriores à sua época, e para ter idéia disto basta ler, na Suma Contra os Gentios, o seguinte subtítulo: Liber de veritate catholicæ contra errores infidelium. Os exemplos são incontáveis e enumerá-los seria ocioso.
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1- Conforme se frisa na apresentação ao livro Raimundo Lúlio e As Cruzadas, quando a Igreja diz que a heresia deve ser combatida por ser fruto da cegueira instilada pelo “pai da mentira” (pater mendacii), por exemplo, quer o historiador acredite ou não no demônio, quer acredite ou duvide da insensatez das doutrinas heréticas ali aludidas, não é lícito nem hermeneuticamente defensável que pressuponha haver — por trás dessa razão claramente expressa pela autoridade eclesiástica — outras motivações ocultas, de ordem política, econômica, histórica, filosófica, etc. A menos que estivessem consignadas ou pelo menos aludidas nas fontes. In Silveira, Sidney. “Breve Nota Introdutória”. In. Raimundo Lúlio e As Cruzadas, Sétimo Selo: Rio de Janeiro, 2009, p. iii No que diz respeito à Igreja, as interpretações forçosas vem tornando-se um grande vício da historiografia contemporânea, que deturpa as fontes para fazê-las afirmar, muitas vezes, o contrário do que está claramente expresso nos documentos. Veremos isto nas páginas seguintes acerca do embate entre São Bernardo e Pedro Abelardo.
2- Observa Santo Tomás de Aquino na Suma Teológica que, a princípio, uma opinião falsa em coisas estranhas à fé não tem o condão de corromper a doutrina cristã, dando como exemplo os erros em matéria de geometria ou campos afins a este — casos em que não pode haver heresia. No entanto, acrescenta o grande Doutor da Igreja em sua obra mais conhecida que de duas maneiras pode uma verdade pertencer à fé: a) uma direta e principal, quando versa diretamente acerca de um artigo da fé. b) outra derivativa e secundária, quando versa sobre algo que, embora não explicitamente referido a um artigo específico da fé, levado às últimas conseqüências traz consigo a corrpução dele. Ver Santo Tomás de Aquino, Suma Teológica, II-II, q. 11, art. 2.