Sidney Silveira
No último texto sobre o tema das relações Igreja-Estado, vimos que o Magistério tradicional sempre destacou os seguintes ensinamentos: a) a única e verdadeira religião é a Católica; b) o Estado deve professar a Religião. À simples audição de tais idéias, o liberal católico tem sintomas psicofísicos que se assemelham a verdadeiras comichões subcutâneas, pois isto agride as susceptibilidades daquilo que, de forma equívoca, ele chama de “liberdade”. Vejamos.
Estes dois ensinamentos do Magistério encontram o seu fundamento na Sagrada Escritura, mas não custa relembrar algo que já frisamos noutro texto: o Magistério eclesiástico tem um objeto primário (as verdades reveladas implícita ou explicitamente por Deus) e um objeto secundário (todas as verdades que, embora não tenham sido expressamente reveladas, ao juízo da Autoridade estão de tal forma integradas à Revelação, que são necessárias para custodiar o precioso depósito da Fé). Para defender essas verdades, são proclamados solenemente os dogmas. E a partir de então, como muito bem diz o ditado, Roma locuta, causa finita: não pode haver a mais ínfima discussão teológica acerca do assunto.
Entender de outra forma o alcance do trabalho dos teólogos é ipso facto cair na armadilha do pluralismo teológico liberal que se recusa a aceitar a autoridade e, simplesmente, desobedece. Apenas para aduzir um exemplo, entre inúmeros a que poderíamos aludir, o nefastíssimo Urs von Balthasar opinava que o inferno está vazio (não haveria ali um só pecador, mas apenas pecados). Ora, além de ser abstrusa, essa idéia é frontalmente contrária à Sagrada Escritura e ao Magistério. Noutra época, pelo bem da fé de todo o rebanho, o Bom Pastor (encarnado na figura do Vigário de Cristo e da Igreja, da qual ele é o cabeça) teria imposto o silêncio ao teólogo em relação ao tema em questão; e, no caso de obstinada manutenção da heresia por parte do recalcitrante... anathema sit! Sim, pois se a maçã está podre, que seja retirada do cesto para não contaminar as demais. Por isso a excomunhão sempre foi uma pena disciplinar altamente benéfica, pois visava ao bem comum da Igreja (na verdade, era benéfica tanto para a Igreja como para o excomungado, que pela graça do arrependimento poderia voltar à comunhão com o Corpo Místico, aprendendo o valor da santa obediência, oposta ao non serviam diabólico).
Vimos também que o liberalismo católico havia feito uma artificiosa separação entre o Reino de Deus e a Igreja, que, para o Magistério tradicional e para os Santos Doutores, eram uma só e mesma coisa (ver Santo Tomás, Sent., IV, dist. 49, q. 1, art. 2). Na “concepção” liberal, o Reino de Deus seria meramente escatológico, e a Igreja, meramente temporal. Essa tese joga por terra a clássica definição entre Igreja triunfante e Igreja militante e abre um abismo intransponível entre a Cidade de Deus e a Cidade dos Homens, análogo ao que há entre este mundo fenomênico e o mundo das Idéias platônicas que jazem no Hiperurânio. Neste contexto, os fins do Estado, ao se circunscreverem aos bens naturais (prosperidade, cultura, justiça), mas sem uma conexão necessária com os bens supranaturais (pois mantêm com estes apenas uma espécie de livre orientação acidental), acabam por definhar. E definhar em círculos concêntricos que, numa progressão geométrica, culminarão no absoluto afastamento entre Deus e as sociedades humanas (ou seja: no tempo atual, em que as leis humanas perderam qualquer referência à Lei Divina). Ora, se é verdade que a saúde das relações entre os homens depende da saúde das relações que mantenham com Deus, advirá desse hiato satânico entre o Céu e a Terra a sociedade mais violenta, psicótica, tarada e pervertida. Justamente a sociedade descrita por São Paulo como prelúdio do fim dos tempos (em II Timóteo, 3): meras aglomerações de homens sem afeições naturais, inimigos do bem, amigos mais dos deleites do que de Deus, fanfarrões, soberbos, incontinentes, ímpios, implacáveis, caluniadores, ingratos, com aparência de piedade embora negando a Deus o seu poder, etc.
Em síntese, a inversão que faz o liberalismo pode resumir-se no seguinte quadro:
> TEOLOGIA CATÓLICA: Há subordinação necessária (per se) e não acidental (per accidens) do poder temporal em relação ao poder espiritual. O homem, reunido em sociedade, será tanto mais livre quanto mais voluntariamente submisso for à Lei de Deus.
> TEOLOGIA LIBERAL: Há subordinação acidental e não necessária do poder temporal em relação ao poder espiritual. O homem, reunido em sociedade, já é livre para gozar dos bens naturais.
Neste segundo caso, perde-se absolutamente o caráter complementar entre os dois poderes, ou seja: entre a natureza e graça. Na prática, sustentar tal tese implica (como ensina o Padre Calderón num dos seus livros) cair numa heresia pelagiana aplicada ao corpo social: defender que a sociedade dos homens, sem a graça, conserve íntegra a sua natureza, ou, em termos políticos: defender que se consigam lograr os bens da Pólis apenas com as virtudes humanas.
Mas, como diz o mesmo Calderón, “a Pólis sem Cristo é um cadáver de Pólis, pasto de demônios santarrões”. A Cidade sem a Lei de Deus é uma cidade fantasma, uma cidade em que a natureza ferida pelo pecado não tem acesso à graça sem a qual o homem não consegue lograr nem sequer os seus bens naturais.
Veremos, noutra ocasião, que no modo dessa subordinação do temporal ao espiritual está a resolução do problema (assim como pode estar também o seu mais nefasto erro, que é o de reduzir a um mínimo mais ou menos conveniente a Realeza de Cristo).
Chegando ao final deste texto, deixo uma frase do Padre Calderón para reflexão dos leitores. “Jesus Cristo — que modera os cetros do mundo (qui sceptra mundi tempera*) —, ao estabelecer a Igreja na terra não arrebata os cetros temporais, mas, se estes se submetem, Ele comunica-lhes a verdadeira realeza”.
Em contrapartida, se se nega a Cristo a realeza sobre todos os bens temporais, não resta ao homem senão soçobrar na maldade. Sobre todos nós, de alguma maneira, pesa a palavra de Nosso Senhor a Pilatos: Non haberes potestatem adversum me ullam nisi tibi esse datum desuper propterae (Jo. XIX, 11).
* Hino de Cristo-Rei.