segunda-feira, 26 de outubro de 2015

A moral dos apostadores de rinhas



Sidney Silveira
Excelência má, abnegação perversa, retidão abjeta, probidade torpe. Estes são traços da alma de quem se vale de meios viciados para lograr presumíveis bens. Trata-se de pessoas aferradas minuciosa e farisaicamente a normas e procedimentos, acostumadas a emitir, de maneira robótica, juízos morais definitivos, como se o valor das ações humanas fosse aquilatado por funções logarítmicas, ou então por leis geométricas que valessem invariavelmente para todos os casos possíveis — a partir de dada situação. Para essa gente, o ato moral é uma realidade cibernética, algo desprovido de plasticidade, carente da seiva hermenêutica que é o nutriente básico da razão prática.

Os intelectuais do Medievo não costumavam cometer tais sandices porque conheciam a epiquéia, virtude graças à qual se torna possível entender que seguir a norma geral da moralidade, ou mesmo da religião, pode ser ruim nesta ou naquela circunstância. Vejamos. Devemos restituir os bens do alheio? Sim, o princípio está correto. Devemos restituir uma arma de fogo a alguém no exato momento em que está acometido de acessos de fúria? Não. Isto seria temerário, e a temeridade arrola-se entre as realidades moralmente condenáveis. Um católico das antigas perguntará: um padre deve usar batina? Sim. Mas durante a Revolução Francesa, por exemplo, sacerdotes vestiram-se com indumentária civil pelo bem da Igreja, que precisava deles vivos. Ademais, sabiam que o martírio não é escolha pessoal humana.

Não é o caso de aprofundar neste texto os vetores da ação moral segundo a filosofia perene, nem de discutir se a moralidade é matematizável. A intenção aqui é apenas dar um recado a quatro ou cinco cavalheiros que se julgam reitores das minhas desavenças, impávidos juízes dos meus perdões, infalíveis escrutinadores do que me vai n’alma, omniscientes conhecedores dos meus motivos. Querem porque querem que eu brigue com Olavo de Carvalho. Mandam-me mensagens por variados meios, algumas anônimas, aduzem argumentos mil, muitos deles eivados de flagrantes quebras dos princípios que eles próprios alegam defender. 

Em suma, torram a minha bíblica paciência.

A alguns respondi que precisam estudar um bocado antes de se meterem em contendas; a outros tentei fazer ver em que pontos o seu pedido carecia de razoabilidade. Houve até pessoas a quem aconselhei aprender a escrever — e a ler — na própria língua, sem cujo domínio as idéias baralham-se, a concatenação entre premissas e conclusões tende a perder-se, a inteligência chacoalha no vazio, pois a linguagem é veículo de inteligibilidade e possui regras elementares sem cuja observância, digamos o português claro, a vaca vai para o brejo. Em síntese, aconselhei prudência a estes rapazes.

Sucede que, na terra da valentia covarde, presumir a honestidade do próximo vai transformando-se em delito moral de imprudência. Foi o que verifiquei ao deparar com a resposta — proferida num agressivo tom pontifical — de um desses adoradores de rinhas de galo. O sujeito obteve como tréplica de minha parte a enumeração de algumas coisas óbvias:

> o AR DE SUPERIORIDADE não é a própria superioridade; 
> ALTIVEZ não enobrece as ações humanas;
> uma CERTEZA TÓPICA não garante a posse formal da verdade, muito menos de um conjunto de verdades em dada matéria;
> o GESTO SOBRANCEIRO não empresta virtude a nenhuma iniciativa; 
> INSULTOS — com os quais fui agraciado — não mudam formalmente os termos de uma proposição. 

Mas quem são estes objetores que não suportam ser contra-objetados? Quem são estes controversistas que, à primeira ponderação razoável contrária aos seus afãs, partem para a agressão verbal? Quem são estes “pensadores” para os quais as normas gramaticais inexistem? Quem são estes homens corajosos que precisam pedir ajuda ao titio para entrar numa briga? Respondo: são gente para quem o mundo é a expressão de certezas monocromáticas. Criaturas que não enxergam os matizes do real.

Estão em situação análoga à do orgulhoso irmão do filho pródigo, que quase se perde por inveja e pela incapacidade de interpretar a bondade do Pai e o valor espiritual do arrependimento do seu parente consagüíneo.

Na prática, trata-se de pessoas que normalmente trocam as coisas pela expressão exterior delas, e por isso precisam entender, o quanto antes, que um instrumento não se iguala à obra para cuja consecução contribui. Valerá menos o “Moisés” de Michelangelo do que o martelo com o qual o artista bateu no mármore ao fazê-lo? A pena com que Vieira escreveu o “Sermão da Sexagésima” valerá mais que o resultado final deste escrito notável do nosso prosador maior? Ora, nem mesmo as boas intenções garantem a bondade do ato a que se inclinam, pois é considerável a possibilidade de ocorrerem funestos desvios no percurso entre a deliberação tomada e a coisa realizada.

Que estas pessoas não sejam contadas entre quem pratica a patifaria com candura. Entre quem, com semblante angelical e sob alegações nobilitantes, age imoralmente contra o próximo. Entre quem imagina que uma discussão filosófica é o pagode na casa do Vavá. Ou entre quem pensa que, numa rixa, vale tudo. Mas para mim não vale, pois, no meu entender, o vale-tudo é sempre arriscado. A propósito, ensina São Francisco de Sales a certa altura de sua magnífica “Filotéia” o seguinte: nunca podemos dizer que um homem é mau sem perigo de mentir. Prudência de santo? Não só! Em verdade, bom senso de pessoa atenta à dinâmica do mundo interior de cada ser humano.

Quem quiser meter-se numa contenda contra um adversário, apresente as armas e assuma os riscos — morais e intelectuais — inerentes a este ímpeto. Mas não tente meter terceiros na briga, e pior: na tola presunção de que, se estes não aderirem à coisa, são pessoas inqualificáveis.

Enquanto vocês brigam, tenho procurado ocupar o meu escasso tempo com a difusão do pensamento escolástico no Brasil. Em novembro próximo, devem vir à luz uma nova edição do "Proslogion", de Santo Anselmo, em tradução do Prof. Sergio Pachá, pela editora Concreta; e o "Tractatus de Primo Principio", de Duns Scot, em tradução do Prof. Carlos Nougué, pela editora É Realizações. Isto em diferentes coleções que tenho a honra de coordenar.

A vocês, que pretendem dirigir a minha vida, deixo o recado arquetípico de Hamlet: 

“There are more things in Heaven and Earth, Horatio, than are dreamt 
of in your philosophy”.