segunda-feira, 7 de julho de 2014

A virtude, o tempo e o vento

Sidney Silveira
Por serem uma força espiritual que se realiza num dado percurso de vida e estarem hierarquizadas pelos graus de abrangência do influxo sobre as potências superiores da alma — inteligência e vontade —, as virtudes requerem esforço e visão para deitar as suas benéficas raízes no caráter de uma pessoa. Em breves palavras, virtudes não espocam como bolhas epidérmicas de catapora, pois exigem planificação, ordem em vista de um fim ao qual, preliminarmente, chamaremos felicidade. Neste contexto, frise-se desde logo que nenhuma virtude é a justaposição ocasional de boas ações, ainda que estas sejam inumeráveis, mas o hábito predisponente ao agir bem. Como dizia o filósofo alemão Josef Pieper, a virtude não se define pela honradez ou probidade de ações isoladas. 

Podemos, pois, dizer com total segurança:

> Ninguém é subitamente virtuoso.
> Ninguém é circunstancialmente virtuoso.
> Ninguém é involuntariamente virtuoso.
> Ninguém é seletivamente virtuoso.
> Ninguém é inconscientemente virtuoso.
> Ninguém é topicamente virtuoso.

A virtude é um projeto. E aqui não nos custa lembrar que o vocábulo “projeto” tem o seguinte étimo: vem do latim projectus, cujo significado é “ação de se lançar para diante, de se estender”. Daí dizermos nós que a virtude é o projetar-se sobre as situações da vida sob a luz da sabedoria. E esta, por sua vez, caracteriza-se pela clara visão do sentido de unidade dos saberes a partir duma ordenação hierárquica — a qual leva em conta os princípios que um saber toma de empréstimo de outro. Quem entende, por exemplo, as razões por que a perspectiva depende da geometria, a nutrição da biologia, a lógica da metafísica e a música da aritmética não terá nenhuma dificuldade para compreender a natureza arquitetônica da sabedoria. “La sagesse c’est architectonique”, dizia com acerto um tomista canadense.

Quando pensamos com mínima argúcia, logo concluímos que, para o homem, não existe melhor e mais inteligente projeto de vida que o de buscar a virtude, ou seja, vetorizar a alma pela excelência, não obstante tal projeto esteja fadado ao malogro nalgum grau — pois, nesta vida, a virtude perfeita é, material e formalmente, inexeqüível. Mas, neste ponto, seja feita com ditosa contundência a seguinte ressalva: a curto e médio prazos, pouco ou nada importa o êxito prático da empreitada; o simples colocar-se a caminho já pressupõe a entrada numa espiral de conceitos e hábitos que, de maneira assintótica e paulatina, fortalecerá o espírito e moldará o temperamento às exigências e à dinâmica da vida cotidiana.

Como ficou dito, uma virtude é tanto mais excelente quanto maior é a abrangência do seu influxo sobre as potências superiores da alma. Daí também estarem elas hierarquizadas. Por exemplo, no tocante à razão prática, as chamadas virtudes cardeais possuem precedência ontológica sobre as demais por abarcarem-nas, mas também devido ao fato de que o seu selo indelével é muito mais decisivo. Como se pode deduzir, existe uma imbricação metafísica e gnosiológica entre todas as virtudes, por isso Santo Tomás indica incontáveis vezes em sua monumental obra que vícios e virtudes nunca andam desacompanhados.

Vamos em frente. Sem prudência, que é virtude principal no âmbito do agir humano, é impossível a uma pessoa adquirir o hábito da justiça, pois o justo não é o sujeito que realiza uma boa ação como quem, por sorte, ganha na loteria; sem justiça, a fortaleza acaba por se transformar num trampolim para a maldade, espécie de fraqueza anabolizada, disfarçada por todos os tipos de bravatas. E assim ocorre com todas as demais virtudes, que se vão engendrando e retroalimentando com notável funcionalidade, até definirem o norte da alma: fazerem com que o homem seja habitualmente inclinado ao bem, a ponto de defendê-lo mesmo quando, por conta disso, sofra funestas conseqüências. 

No começo deste breve artigo, falou-se da felicidade como o fim das virtudes. Agora, em vista do esclarecimento da virtude como inclinação habitual da alma ao bem, é possível entender as gradações de felicidade a partir da perenidade dos bens adquiridos. Em resumo: quanto mais imateriais são os bens possuídos intencionalmente pela alma, mais inexpugnável é a felicidade, quer dizer, menos tendente a mudar por conta das intempéries e dos contratempos da vida. “Felizes os que sofrem perseguição por amor da justiça, pois deles é o reino dos céus”, disse Cristo.

Podemos resumir a trajetória humana por este vale de infortúnios e injustiças por um breve raciocínio disjuntivo: ou o homem busca a virtude, ou toda a sua vida é um tempo vão

Vão como um vento maligno que sopra sempre na direção da agonia.

P.S. O livro que ilustra esta postagem, “La Formación del Carácter por Las Virtudes” — Vol. I: Templanza e intemperancia, propuestas terapêuticas y educativas”, foi coordenado pelo amigo Martín Echavarría, a meu ver o psicólogo tomista mais importante da atualidade. 

Leitura utilíssima para quem queira compreender a importância das virtudes para uma vida bem vivida.