segunda-feira, 30 de setembro de 2013

A profundidade da oração e a recitação dos Salmos


Sidney Silveira

O verdadeiro sentido de uma vida humana cujo propósito é elevar-se a Deus está dado pelo fato de que a mens, ou seja, o espírito, procura conformar-se devidamente à vox, entendida de acordo com a Regra de São Bento, que a concebe como palavra sagrada pronunciada na salmodia, no ofício divino. Em suma, muito mais do que um simples acordo entre mente e voz, quer dizer, entre vida interior e vida exterior — dever moral de todo homem —, trata-se de modelar a vida interior pelo Logos divino.

Noutros termos, o genuíno louvor a Deus vai além da honestidade de um homem para consigo mesmo, pois esta é apenas o pressuposto elementar, o invólucro necessário. Tal louvor consiste em o homem ir aos poucos deixando-se entranhar pelo Verbo divino que inunda as Sagradas Escrituras, compêndio das verdades amorosamente reveladas pelo próprio Deus para remi-lo. Como veremos abaixo, é óbvio ser possível um diálogo orante pessoal (feito de palavras escolhidas a dedo pela criatura racional) para com o Criador, mas para este ser fecundo deve dar-se no espírito — e sempre que possível também na letra — da Sacra Página.

Pressupor o contrário é imaginar que o homem pode encontrar o melhor caminho espiritual sozinho, elevar-se a Deus sem a ajuda de Deus, à qual os cristãos chamam graça. Implica deixar a oração depravar-se pela raiz do orgulho, fato mais comum do que a princípio se possa imaginar. Nesta matéria, a liberdade anda pari passu com o fiel seguimento da sabedoria divina, num dobrar-se ao texto sagrado contemplado como catequese batismal em forma de sentenças bíblicas. É ele, acima de tudo, a fonte na qual se destroem quaisquer vestígios de hesitação deliberativa em seguir as leis de Deus. É como ensina o salmo tão belamente comentado por Tomás de Aquino: “Regas os montes das alturas, e com o fruto da tua sabedoria a terra será saciada”.

Tais alturas não são outra coisa senão o texto bíblico mesmo, que pode e deve ser recitado, decorado, meditado. Mas tenha-se claramente em vista o seguinte: recitar salmos não é mero exercício de repetição vocal mais ou menos compreensiva, ao modo de um mantra entoado com intenções de técnica de relaxamento psicológico, mas é fazer a alma formalmente concordar com Deus, ou seja, realizar obra com o coração unido ao Todo Poderoso, num doce amplexo espiritual. E o que aqui se diz, lembremos, serve não apenas para a salmodia, e sim para toda e qualquer oração digna deste nome, que é quando a pessoa humana esvazia-se de si para preencher-se de Deus.

Ora, se uma das propriedades da prece — e considere-se aqui o proprium em seu sentido técnico, a saber, como acidente metafísico emanado da essência da coisa — é ser suplicante, ou seja, é pedir com firme esperança, é rogar com plena confiança, como dizia Santo Tomás, isto denota perfeitamente a atitude humilde a ser assumida por quem reza, pois pedir é reconhecer no ato que não se tem, e esperar de quem pode dar. Ora, quantas vezes infelizmente esquecemo-nos de seguir o ensinamento de Cristo: "O que pedirdes ao Pai em meu nome Ele vo-lo concederá". Não sejamos, pois, acanhados no pedir, pois deixar de fazê-lo é a mais triste forma de desconfiança na providência divina. Apenas não se tente a Deus com pedidos inócuos ou perversos nem se peça nada fora da reta ordenação aos bens espirituais. “Procurai primeiro o reino dos céus, e tudo vos será dado em acréscimo”.

na Didaqué encontrava-se o preceito de rezar o Pai Nosso três vezes ao dia, o que indica a importância de orar sempre tendo no horizonte as palavras expressas na Escritura, para poder fazê-lo de forma eficacíssima, e, no caso católico, sem perder de vista que a oração litúrgica é partícipe da vida eterna e é, pois, conveniente e benéfico buscar a mínima compreensão das orações que integram o ano litúrgico, em seu ritmo pneumático ascensional. Ocorre que isto não se faz sem repeti-las interior e exteriormente, até gravarem-se no coração e na mente, e ouvi-las com espírito atento na Santa Missa, na qual dia a dia vão sendo lidas. Só assim a humildade da alma suplicante revela o seu real dinamismo de subida reverente a Deus.

Estaria redondamente enganado quem supusesse que, seguindo essa disciplina psallendi, como diz São Bento no capítulo XIX de sua Regra, segundo a qual deve buscar-se a concordância entre mente e voz, aludida no primeiro parágrafo do presente texto, não se possa ou não se deva dialogar livremente com Deus, expressar-Lhe dores e conflitos intransferíveis, o que requer fazê-lo mediante palavras de cunho pessoal, não necessariamente coincidentes com o texto da Escritura. Trata-se apenas de entender que a excelência maior da oração é ser esmagamento da vontade própria — no sentido de que esta tem valor se e quando se molda à vontade divina —, e Deus não é um serviçal dos nossos caprichos e desejos, mas deve ser a meta das nossas aspirações genuínas. Em palavras simples: ainda que se peça algo específico, pessoal, tópico, este não pode não coincidir com a vontade de Deus, a qual visa aos bens superiores e à salvação da alma. E a vontade divina no tocante ao homem está expressa nas proposições escriturísticas, em forma perfeitamente adequada ao nosso modo de conhecer a verdade, que é por meio de raciocínios.

Encerremos dizendo que, se o temor de Deus é um tipo de vigilância amorosa, a maldade é, por sua vez, a pior das fadigas humanas: essa filha maldita da soberba extenua a alma naquilo que esta tem de mais excelente, a potência de querer o bem e buscar a verdade.

A maldade tolhe o acesso ao sublime, mas o tamanho desse drama existencial só o compreende quem sabe rezar, ou seja, quem entende a importância de fazê-lo tendo como referência maior os textos sagrados e o Magistério da Igreja, regra próxima e abalizada da fé.


Abalizada por um carisma inapagável.

E impagável.


P.S. Quem puder e lembrar, reze por caridade pela minha saúde.