sexta-feira, 16 de agosto de 2013

A epopéia dos estúpidos e os novos contadores de histórias

  
Ao medievalista Ricardo da Costa,
voz de resistência.
Sidney Silveira
As epopéias antigas cantavam — em versos de suma beleza — feitos heróicos de personagens míticos, legendários. Na Grécia eram oralmente transmitidas de geração em geração por poetas populares, os aedos, que respeitavam até a métrica das composições em seu ofício de passar adiante a tradição. A propósito, “épos” era termo usado pelos gregos para designar o relato originário, as façanhas carregadas de simbologia que traduziam o DNA espiritual de um povo e apontavam para o seu destino histórico. A antiguidade está repleta desses escritos épicos em que as façanhas representam um modo de ser paradigmático: da anônima Epopéia de Gilgamesh à Odisséia de Homero, da Eneida de Virgílio às Metamorfoses de Ovídio, vemos um sem-número de obras artísticas prenhes dessa palavra fundadora, modelar.
Passaram-se milênios de avanços e recuos civilizacionais, até chegarmos ao curioso momento histórico em que as epopéias traduzem a estupidez humana e são contadas não por artistas de escol, mas por jornalistas politicamente corretos e por grupos financiados, direta ou indiretamente, pelos mais maquiavélicos e corruptos governos, que precisam contar a história de sua própria depravação dando nomes novos aos bois, ou seja: ressignificando atos desde sempre considerados nefastos por meio de expressões eufemísticas claramente mal-intencionadas.
O politicamente correto, fruto de décadas da mais fina engenharia social, é a nova moral apátrida transnacional com que amarras semânticas são usadas como mordaça para criminalizar crenças e usos sociais desde sempre aceitos pelo senso comum, em todos os países do Ocidente. A propósito disso, transcrevo a seguir um jocoso trecho escrito pelo filósofo tomista brasileiro Luiz Astorga, amigo querido, para o Prefácio do Dicionário do Politicamente Correto às Avessas, de minha lavra, que se eu tiver ócio bastante para não precisar ganhar o pão com o suor da indignidade, em escala quase insuportável, sairá ainda este ano:
“(...) As palavras são ouvidas corretamente, mas o seu sentido tornou-se fluido, nebuloso, ambivalente. Aos poucos, elas adquiriram novos significados, que você nem sabia existir; os antigos, a propósito, vão desaparecendo no horizonte. De repente, os nomes decidiram fundir-se a esmo com hífens. Prefixos e sufixos surgiram do nada, e advérbios terminados em ‘-mente’ juntaram-se com lascívia a particípios, trazendo ao mundo uma ninhada de expressões quilométricas. (...).
“(...) Algumas das antigas palavras passaram a dizer o contrário do que significavam. Neste clínico contexto, vale frisar o seguinte: nem a pior aguardente de ameixa teria dado a Kafka tamanha ressaca cognitiva, em que o assombrassem parcerias eco-responsáveis, atores sociais eticamente engajados e engajadamente pró-ativos, programas homo-sócio-sustentáveis, empoderamentos mil. Já em delirium tremens, veríamos tiranos ‘democráticos’, ‘diálogos’ unânimes, grupelhos ‘inclusivos’, agressores ‘tolerantes’ e outros cágados voadores deste admirável mundo novo(...)".
A coisa é tão bem urdida e tão universalmente disseminada, que se torna difícil imaginar qualquer saída para este Hades enevoado, feito de eufemismos criminosos com os quais as mentes vão tornando-se cada vez mais teleguiadas por slogans e debilitadas patologicamente em sua capacidade de lucubrar, de encadear raciocínios básicos que uma criança da década de 70 do século passado engendrava sem o menor esforço.
A continuarmos neste compasso, em breve chegará o dia em que expressar um simples pensamento de forma direta, com a espontaneidade típica das ações honestas, será delito inafiançável. A bondade será substituída pelo seu macabro avesso embelezado por torções e contorções do novo vocabulário simbólico, nesta espécie de esperanto do inferno, marca da Besta em forma de linguagem imposta universalmente.
E ai de quem tiver a ousadia de mijar fora do penico ou pensar fora das canaletas dessa Nova Ordem, perto da qual o País das Maravilhas, onde cabeças são profilaticamente cortadas, é o paraíso terrestre.
Será vítima de pessoas que — com o apetite de hienas a esfolar-se umas às outras por qualquer minúsculo pedaço de carniça — destroçarão vidas julgando fazer um bem à humanidade.