terça-feira, 1 de novembro de 2011

Périplo na escuridão: a militância da verdade sagrada na Cidade dos Homens

Sidney Silveira


A vida religiosa não se caracteriza por uma mescla anárquica de crenças, intuições ou certezas místicas, e sim pela ordem que se funda nas verdades da Sagrada Escritura custodiadas pelo Magistério da Igreja — que é regra próxima da fé. Portanto, onde há desordem mental, superstição, desprezo a preceitos, não existe religião. Onde não há Dogma, doutrina, hierarquia, disciplina, obediência, não existe religião. Onde não há teologia sagrada e uma filosofia que lhe dê suporte ao modo instrumental, não existe religião.


Tudo isso porque a religião, sendo o ápice da vida moral humana — dado que o primeiro dever de justiça do homem, captável pela sindérese, é prestar culto a Deus — pressupõe uma regra ordenadora da vida do espírito. No caso do Catolicismo, vera religio, trata-se de uma regra divina a ser seguida com o auxílio do alto (“Para os homens isso é impossível, mas para Deus tudo é possível”, Mt. XIX, 26). Pois bem: onde existem regras, leis, preceitos, etc., é preciso haver estudo, ensino. Isto por parte dos vocacionados para esta nobre tarefa, que humildemente contribuirão para a perenidade da doutrina.


Não por outro motivo, São Domingos de Gusmão, ao criar a Ordem dos Irmãos Pregadores, prescreveu o seguinte: “Não se funde convento sem prior e sem leitor (professor)”. Este preceito do fundador dos dominicanos parte da premissa de que é necessário haver hierarquia e sabedoria entre os que se põem a seguir a lei divina:


Ø hierarquia porque nenhum homem tem em si mesmo a regra do seu agir, como demonstra Santo Tomás na Iª-IIª da Suma, razão pela qual é preciso existir uma autoridade que modele a consciência humana ao ponto de abri-la para a moção da graça. Essa autoridade é a de Deus, revelada na Sagrada Escritura. Mas como na prática ela se verifica e se atualiza na observância dos preceitos e no seguimento dos conselhos, convém haver uma autoridade humana que, de alguma forma, seja reflexo da divina: é o caso do abade, no mosteiro; e dos clérigos seculares, no mundo[1]. Portanto, nas coisas que dizem respeito ao fim último de todas as criaturas (Deus), numa sociedade tradicional estes homens serão de hierarquia superior, pois o seu trabalho é perfectivo, ou seja, aperfeiçoa a multidão. E isto de três formas principais: a) pela custódia da lei divina; b) pela pregação da verdade que ela encerra; e c) pelos remédios naturais e sobrenaturais ministrados para curar a sociedade de seus erros e vícios. Cabe, pois, aos homens espirituais ordenar as coisas na Pólis aos seus fins devidos, sob a luz da fé[2]. Isto no catolicismo pré-Vaticano II.


Ø sabedoria porque, onde a verdade está presente, é necessário haver gente capaz de contemplá-la e partilhá-la caridosamente. Gente douta, para difundi-la de forma conveniente. Melhor dizendo: considerados o humano modo de conhecer e o pecado original que o desordenou, esta tarefa exige gente sábia, e com o termo “sábio” referimo-nos especificamente a pessoas versadas em teologia sagrada, que é sabedoria em grau eminente[3]. A propósito, a diferença entre douto e sábio é, aqui, análoga a que há entre o bom conhecedor da doutrina e o intérprete dela que serve como auxiliar do Magistério na guarda da verdade revelada — defendendo-a e combatendo os erros que ponham em risco o Corpo Místico e, por derivação, a Pólis, que, sem a sombra da lei divina a lhe aperfeiçoar, se transforma em pasto de demônios. Neste sentido a teologia é ancilla magisterii, e o teólogo, o estudioso da sabedoria divina cujo papel é superior ao do professor douto. Vale aqui dizer que a situação atual é absolutamente anômala: devido à defecção magisterial das autoridades eclesiásticas desde o CVII, não raro cabe aos leigos defender intra Ecclesiam a doutrina de sempre contra os erros contrários à salvação das almas, em razão da ignorância de muitos sacerdotes (propter ignorantiam multorum sacerdotum[4]), proveniente em nosso tempo ou da omissão da doutrina revelada em pontos capitais, ou de sua pura e simples deturpação[5].


A propósito de São Domingos de Gusmão, a Ordem dos Irmãos Pregadores por ele fundada nada propunha, na prática, que já não estivesse no âmago da fé; nada preceituava que não fosse praticado desde sempre na Igreja, de uma forma ou de outra. Santo Tomás, o seu mais brilhante irmão, mostrou isto cristalinamente em alguns opúsculos de controvérsia:


Ø Contra Impugnantes Dei cultum et religionem;


Ø De Perfectione Spiritualis Vitae; e


Ø Contra Retrahentes.


Pois bem. O contexto histórico destes escritos — atualíssimo, diga-se de passagem — serve como pano de fundo para uma longa e desgastante controvérsia que Santo Tomás manteve, por considerar de capital importância. Nela estava em jogo nada menos do que a existência mesma da Igreja, e isto por uma simples razão: a eclesiologia dos adversários dos frades mendicantes (se levada às últimas conseqüências) derruiria a ordem pressuposta na hierarquia eclesiástica, algo semelhante ao que acontece hoje, com a eclesiologia vaticano-segunda disseminada por todo o orbe católico como um vírus quase invencível.


Tratava-se, portanto, de uma contenda muitíssimo maior do que a princípio poderia parecer, a ocorrida entre mestres seculares da universidade de Paris e monges mendicantes que ali davam aulas — acusados das maiores torpezas, caluniados, injuriados e detratados com notável pertinácia. Para se ter idéia disto, Guilherme de Santo-Amor, o mais influente boca-suja de meados do século XIII — que, segundo consta por depoimentos coetâneos dignos de fé, parece ter morrido em impenitência final —, fez o diabo, com sua incrível habilidade para a intriga, com o intuito de acabar com as ordens mendicantes que tantos frutos espirituais davam à Igreja [6].


Durante quase uma década Santo-Amor murmurou entre bispos e padres; articulou maquiavelicamente com autoridades seculares; escreveu opúsculos de patentíssima ira má[7], filha da inveja; deu grande publicidade a libelos difamatórios, inclusive enviando-os ao Papa; usou de sua influência como reitor na Universidade de Paris, para beneficiar os mestres seculares em detrimento dos religiosos; espalhou boatos e ditos sarcásticos infames; xingou e detratou pessoas; incitou o clero paroquial ao mais insano ódio aos monges da Ordem dos Pregadores; exigiu a observância de regulamentos universitários (fora de contexto) para afastar os dominicamos de suas cátedras; convenceu a muitos de que os religiosos das ordens mendicantes não poderiam pregar nem ouvir confissões; feriu espiritualmente quem pôde, para semear o seu joio doutrinal. Tudo isso com uma raiva espumante que revelava a sua dramática situação espiritual, a qual oscilava entre a complacência dissimulada e o mais louco furor. Atitude típica de quem tem a alma esquizofrenicamente cindida em mil “pedaços”.


A propósito, as implícitas ou explícitas alusões detratórias deste pobre-diabo a Santo Tomás de Aquino, e aos dominicanos de maneira geral, chegam a ser engraçadas — contempladas à luz do que hoje conhecemos do Santo Doutor: lobo, hipócrita, pseudopregador, enviado do Anti-Cristo, falso profeta, preguiçoso, descumpridor de preceitos, ambicioso, imoral, mendigo das glórias humanas, usurpador da autoridade dos párocos e dos bispos, burro, criminoso, professor de quinta categoria, etc. Um sujeito desses ser cognominado de “Santo-Amor” é, sem dúvida, uma doce ironia. Seja como for, o Papa Alexandre IV, na bula Romanus Pontifex (do dia 5 de outubro de 1256), pôs fim às pretensões do iracundo Guilherme, que logo seria defenestrado da Universidade de Paris e, depois, expulso da França pelo rei São Luís. Vale muito a pena ler um trecho do documento magisterial acerca do De Periculis[8] de Guilherme, retrato de como então a Igreja defendia os seus zelosos filhos dos ataques dos inimigos, sobretudo quando a fé estava em perigo.


Santo Tomás, por sua vez, utilizava o recurso magistral de falar e escrever semper formaliter, ou seja: buscando formalmente o cerne da questão, sem citar a sua Ordem e também sem nomear os adversários detratores[9]. Este procedimento — que, levado efetivamente a cabo, revela grandeza espiritual e estatura intelectual — fez com que as suas refutações ultrapassassem em larga medida o estreito campo em que se moviam os seus contraditores, pois o Aquinate buscava conclusões relativas a princípios supratemporais, ao passo que os seus inimigos soçobravam em problemas comezinhos ou circunstanciais. Alguém já disse que só o ter dado ordem à confusão das maliciosas teses dos adversários dos mendicantes no Contra Impugnantes (que, embora seja um opúsculo, é razoavelmente copioso) bastaria para caracterizar Santo Tomás como grande sábio.


O que está por trás dessa luta encarniçada no distante século XIII, a época de ouro da Cristandade do ponto de vista filosófico, teológico e político (o século própero do catolicíssimo rei São Luís de França), pode ser aplicado a todos os tempos: a oposição entre aqueles que têm o zelo de disseminar, entre os homens, a verdade revelada — no seio da Pólis — e os inimigos da verdade, os diáconos da maldade que buscam estabelecer um ambiente que impeça, tanto quanto possível, a moção da graça entre os homens. Guerra que não é contra a carne, como alertara São Paulo, mas contra principados e potestades do mal que possuem um disciplinado exército a seu serviço, em qualquer época. É a luta da Igreja militante no mundo, em seu dificultoso périplo pela Cidade dos Homens, e por conseguinte a de seus diletos filhos, que amam a doutrina sagrada a ponto de sofrer quando a vêem sob o risco de perder-se.


Hoje, como no século de Santo Tomás, o Maligno está à espreita — e avança as suas hostes entre o resto de intelectualidade católica que, tendo contra si até mesmo a hierarquia de uma Igreja ecumênica, tíbia, prevaricadora, escandalosa, mundanizada e inflintrada por intelectuais liberais (alguns deles líderes de seitas), luta para não ser levada de roldão pelo modernismo.


Luta — apesar dos reveses e aflições — confiante em que “o Guardião de Israel não dorme nem dormita” (Sl. 121, 4), e os inimigos da fé, não obstante a sua vertigem insana de vitória, já estão julgados pelo Senhor dos Exércitos.


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1- Isto, evidentemente, numa situação em que a Igreja não abra mão de sua função magisterial, evangelizadora e apostólica a um só tempo — como infelizmente hoje acontece. Esta advertência parece-me necessária num ambiente eclesial como o da atualidade: corroído pelo mundanismo, pelo ecumenismo, pelo laxismo moral, pelos escândalos de todo tipo, pelo alheamento à doutrina, pela falta de sabedoria (não divina, mas humana mesmo), etc. Ou seja: não se propõem aqui tais clérigos como reflexos no mundo da sabedoria de Deus, é claro, mas apenas se faz referência a princípios que, desde sempre, foram amiúde considerados pelo Magistério, quando a Igreja atuava como Mestra das Nações e não como uma espécie de instância diplomática de incentivo ao diálogo político e religioso, como hoje; e não como uma dentre tantas vozes “legítimas” no ambiente pluralista da democracia liberal vitoriosa no mundo. Quem ama a Igreja e conhece os seus fins sobrenaturais não pode senão entristecer-se com o caráter e a abrangência da atual crise, criada e alimentada pela própria hierarquia; não pode senão rezar para que Deus ponha fim a tal estado de coisas, seja como for.


2- Remeto os leitores a uma premissa do Pseudo Dionísio Aeropagita, no livro Sobre a Hierarquia Celeste, que Tomás de Aquino repete em vários lugares de sua obra, fazendo uma analogia com o papel da hierarquia eclesiástica: a ordem dos pontífices e dos bispos se caracteriza por ser perfectiva; a dos sacerdotes, por ser iluminativa; e a dos ministros (diáconos), por ser purgativa — de forma tal que o mais pode o menos, mas o menos não pode o mais. Assim, os pontífices e bispos aperfeiçoam, iluminam e purgam; os sacerdotes iluminam e purgam; e os diáconos purgam. No sentido em que o Aquinate se refere a esta doutrina, para uma sociedade não se barbarizar, não se perder, não se tornar hedionda, é preciso haver quem a aperfeiçoe (pela custódia da lei de Deus), quem a ilumine (pregando a verdade revelada) e quem a purge (ministrando o sacramento da penitênica e realizando a correção fraterna). Retirem-se estes remédios, e as leis positivas humanas se afastarão — em progressão geométrica — da lei eterna, da lei divina e da lei natural.


3- Santo Tomás, Suma Teológica, I, q.1, art. 6.


4- Santo Tomás, Contra Impugnantes, q. 4. O Aquinate refere-se, nesta passagem em que menciona a ignorância dos padres, ao argumento de Guilherme de Santo-Amor segundo o qual os monges não poderiam pregar nem ouvir confissões.


5- Decerto muitos padres ensinam erros não porque querem, mas porque os aprenderam nos seminários e nos documentos conciliares e pós-conciliares; os seus erros são, portanto, devedores dos equívocos magisteriais de seus superiores. Seja como for, na defesa da doutrina contra tais erros é preciso recorrer ao princípio da obediência à autoridade superior (Cristo), já que se trata de um estado de necessidade, mas sempre de forma respeitosa — sobretudo no trato com clérigos, pois estes possuem dignidade de estado muito superior à dos leigos, no Corpo Místico.


6- A destruição urdida por Santo-Amor e por seus seguidores era meticulosa. Defendia, entre outras coisas, que os religiosos das ordens não podiam ensinar; que não podiam entrar em colégios de doutores seculares; que não podiam pregar nem ministrar o sacramento da penitência (nem mesmo por delegação dos bispos ou até mesmo da Sé Apostólica); que estavam obrigados a trabalhos manuais; que não podiam viver de esmolas; etc. A grande pressão feita por Santo-Amor, que arregimentou mestres seculares, párocos e bispos, obteve vários resultados ao longo dos anos de 1250 a 1256. Mas no final a sua derrota foi acachapante.


7- Os mais conhecido é o De periculis, ou Tractatus brevis de periculis novissimorum temporum. Outro importante escrito seu é o Collationes Catholicae, enviado ao Papa Alexandre IV. A obra — segundo insinua o seu subtítulo — retrata o iminente perigo para a Igreja representado pelos “pseudopregadores” e “hipócritas” das ordens mendicantes.


8- "No libelo [de Gilherme], lido cuidadosamente e examinado de forma madura, (...) achamos de forma manifesta coisas perversas e reprováveis contra o poder e a autoridade do Romano Pontífice e dos bispos (ipso quaedam perversa et reproba contra potestatem et auctoritatem Romani Pontificis et coepiscoporum suorum); e algumas coisas contra aqueles que mendigam pela causa de Deus sob estrita pobreza (qui propter Deum sub artissima paupertate mendicant), vencendo com voluntária indigência ao mundo com suas riquezas (mundum cum suis opibus voluntaria inopia superantes); e outras ainda contra os que, animados por ardente zelo pela salvação das almas, dedicando-se a sagrados estudos, logram na Igreja de Deus incontáveis proveitos espirituais e dão muito fruto. Achamos também coisas contrárias ao saudável estado dos religiosos, pobres e mendicantes, como são os nossos amados filhos Frades Pregadores [dominicanos] e Menores [franciscanos], os quais com vigor de espírito, abandonando o século e suas riquezas, suspiram pela Pátria Celeste. Reprovamos também [no escrito de Guilherme] o estilo e muitas coisas inconvenientes dignas de eterna confutação. (...) O aludido libelo é também semente de escândalo e dá matéria a muita confusão (idem libellus magni scandali seminarium et multae turbationis materia existebat), além de trazer dano às almas. (...) Julgamos com autoridade apostólica (...) que este livro [De periculis] há de ser reprovado e para sempre condenado (...cum auctoritate Apostolica reprobamus et in perpetuum condemnamus), como iníquo, criminoso e execrável, e os ensinamentos nele contidos devem ser tidos por perversos, falsos e infames”. Denziger, 840-844, Erros de Guilherme de Santo-Amor sobre os Mendicantes.


9- No Contra Impugnantes, o Aquinate — levando o seu método aos píncaros da perfeição formal — depara a certa altura com a premissa de que os frades mendicantes, como buscadores da perfeição cristã, não poderiam responder às ofensas, mesmo injustas, dos inimigos, e sim oferecer a outra face, a exemplo do que ensinou Nosso Senhor. Após uma série de demonstrações espetaculares, Santo Tomás conclui que as ofensas pessoais, as detrações, as murmurações, os xingamentos, as insinuações maliciosas, etc., tudo isso deve ser suportado com paciência e espírito de resignação, mas as diatribes que, mesmo indiretamente, afetam a Deus e à sua Igreja devem ser respondidas com todo o vigor.