segunda-feira, 26 de setembro de 2011

Palestra de sábado: texto de referência completo

Sidney Silveira


A pedidos, posto abaixo o texto completo que serviu de base para a minha palestra no evento Santo Tomás, médico da alma, realizado no último sábado. Agradeço a todos que compareceram. Foi sem dúvida um momento especial.


Um pouco mais à frente, provavelmente após a publicação de alguns textos e a postagem de trechos (em vídeo) das conferências do referido ciclo de palestras, darei algumas notícias a respeito do nosso trabalho com o blog.




A alma humana: ser e operações segundo Santo Tomás de Aquino[1]




Na antiga filosofia grega, os maiores problemas acerca da alma humana giravam em torno de quatro questões principais:


Ø sua natureza (ser);


Ø sua origem (causa);


Ø as relações que mantém com o corpo (operações);


Ø sua sobrevivência ao corpo (imortalidade).



Esses problemas foram abordados à exaustão por Platão e Aristóteles, que, apesar das posições antagônicas no tocante a várias questões atinentes à alma, influenciaram grandemente a Cristandade em distintos momentos históricos.


É conhecida a posição de Platão segundo a qual a alma humana é por natureza totalmente espiritual, sendo a sua união com o corpo acidental. Aristóteles, por sua vez, matiza a tese platônica frisando que a alma é, sim, de natureza espiritual, mas forma com o corpo uma união substancial. Estes princípios, no que diz respeito ao problema da sobrevivência da alma após a morte, terão profundos reflexos na doutrina destes que são os dois maiores filósofos gregos: Platão, partindo da premissa da absoluta espiritualidade da alma, e de ela estar no corpo como em uma prisão — segundo a sua famosa expressão —, não tem problemas em afirmar que a alma é de per si imortal, dada a sua imaterialidade e conseqüente incorruptibilidade, e que fará após esta vida um retorno ao mundo das Idéias (das Formas arquetípicas absolutamente separadas da matéria). Para Aristóteles, embora espiritual, a alma é imortal tão-somente no que tange às funções do intelecto.


Para chegar a esta conclusão, o Estagirita precisou superar algumas aporias, e neste ponto vale registrar o seguinte: embora a sua conclusão seja acertada e congruente com os princípios de que parte, há imprecisões conceptuais em sua teoria, zonas de zombra que serão esclarecidas, eliminadas, resolvidas por Santo Tomás de Aquino, muitos séculos depois. O Doctor Communis, sem abrir mão do arcabouço metafísico que informa a psicologia aristotélica, inocula nela os aperfeiçoamentos realizados por sua síntese magistral entre a teoria de Aristóteles do ato e da potência e o conceito platônico de participação — lançando novas luzes sobre o problema. E, como não poderia deixar de ser, o Angélico também lhe acrescenta boa dose de teologia cristã, partindo dos dados revelados na Sagrada Escritura.


No tocante à origem da alma, para Platão é evidente que ela se dá fora do corpo, além de possuir em relação a ele uma primazia ontológica e cronológica. Para Aristóteles, a alma humana é co-originada com o corpo, com o qual forma uma unidade substancial, e o composto hilemórfico humano — corpo (matéria) e alma (forma) — desenvolve as suas potências com o passar do tempo. Haveria uma “evolução” neste desenvolvimento: da alma vegetativa passar-se-ia à sensitiva, e da sensitiva à intelectiva. Não é o caso de apontar, neste breve texto, os reflexos dessa premissa de Aristóteles na obra do Aquinate, mas registre-se que ela conduziu o autor medieval a uma tese que ainda hoje dá margem a muita discussão entre os tomistas, no tocante a suas conseqüencias teológicas e morais: a alma seria infundida por Deus depois de o corpo — com relação à potência sensitiva — estar apto a recebê-la, o que levou alguns defensores do aborto a se apoiar em Santo Tomás de Aquino para justificar suas teorias, embora a partir de uma interpretação totalmente forçosa e errôna dos textos do mestre medieval.


A filosofia e a teologia cristã dos primeiros séculos encontraram em Platão o autor que presumivelmente convalidaria, do ponto de vista filosófico, a mensagem bíblica. Isto é bastante claro, por exemplo, em Clemente de Alexandria e Orígenes (séc. III). Um pouco mais tarde, Santo Agostinho ratifica a autoridade de Platão, expurgando da obra do mestre grego algumas mitologias e teses de caráter gnóstico. No tempo de Santo Tomás de Aquino, séculos depois, a Cristandade latina depara-se com a descoberta de Aristóteles pelo viés da hermenêutica árabe (sobretudo averroísta), e, como é sabido, a recepção da obra do Estagirita por parte de teólogos cristãos e também pelo Magistério foi permeada de uma desconfiança profunda: a de que se tratasse de algo contrário à fé. São Boaventura, por exemplo, aponta em seu Comentário aos Dez Mandamentos que, desde os estudos na Faculdade de Artes de Paris, ainda jovem, teve péssima impressão de Aristóteles, porque este afirmava que o mundo é eterno — contrariando frontalmente a letra e o espírito do Livro do Gênesis.


Neste ambiente totalmente adverso à recepção da obra do Estagirita no maior pólo cultural da Cristandade medieval, Paris, Santo Tomás se afasta do neoplatonismo cristão e opta clara e corajosamente por Aristóteles. A história das querelas em que se envolveu (para expurgar a obra do Estagirita dos erros da interpretação averroísta, no seio da Cristandade) é arquiconhecida nos dias atuais; e, especificamente, com relação ao tema da alma, o Aquinate assimila os princípios da teoria aristotélica, não sem lhe fazer preciosíssimos aperfeiçoamentos e correções.



1. Natureza da alma


Após acolher a formulação de Aristóteles no livro II do Peri Psiché de que a alma é o ato primeiro de um corpo natural organizado, Santo Tomás salienta que ela é de natureza imaterial, ou seja, espiritual. Mas a sua espiritualidade não é evidente, razão pela qual é preciso realizar acerca deste tema uma sutil e diligente inquirição (“diligens et subtilis inquisitio” – Suma Teológica, I q.87, a.1). Ora, o princípio intelectivo, chamado de “mente” ou “intelecto”, possui uma atividade própria que é independente do corpo no tocante à causa eficiente: entender e querer. Assim, embora o corpo sirva para a inteligência e para a vontade como causa instrumental, os atos próprios dessas duas potências não mantêm com o corpo uma relação de dependência necessária, do ponto de vista da causalidade eficiente: ter cérebro, por exemplo, não garante por si a alunos de matemática o entendimento dos teoremas expostos pelo professor em sala de aula, pois in actu exercito o entendimento é absolutamente imaterial e não radica nas funções cerebrais, que estão para ele como uma espécie de substrato material, apenas, com potências predisponentes aos atos propriamente humanos de entender e querer, mas não ao modo de causa eficiente. Na prática, é necessário dispor as potências intelectivas e volitivas para o exercício ótimo de sua atividade noética por meio da aquisição de hábitos, que, na metafísica tomista, são o intermediário entre a potência e o ato.


Seja como for, aqui apresenta-se um problema: se a alma é a forma substancial do corpo — tese aristotélica acolhida por Santo Tomás —, como poderia realizar algumas operações sem o corpo? A resolução de Santo Tomás parte da premissa de que a inteligência humana é, antes de tudo, potência para os inteligíveis, ou seja, pode ela conhecer todas as naturezas. Ora, tal conhecimento não pode ser obstado pelos limites físicos da matéria, pois neste caso o único conhecimento possível seria o sensitivo, como ocorre com os animais irracionais, cujo máximo grau de abstração da matéria é a chamada potência estimativa, análoga à potência cogitativa nos homens.


Portanto, o intelecto, no ato de entender, é imaterial, e ser imaterial aqui significa que não depende da matéria — seja em sua essência, seja em sua atividade. Na verdade, as operações do intelecto têm por objeto essências abstratas e universais e buscam enunciar relações necessárias, universais e intemporais, o que exclui a hipótese de serem realizadas por órgãos corporais — pois estes nos apresentam o contingente, o particular e o temporal. Nesse sentido, como afirma o filósofo espanhol Juan Cruz Cruz em sua apresentação à edição espanhola da Questão Disputada Sobre a Alma, o espírito humano possui finitude atual e infinitude virtual.


Diz a este respeito Santo Tomás:


“Não existe dificuldade alguma em admitir que a capacidade de uma substância intelectual finita se estenda a coisas infinitas (...), dado que a sua capacidade intelectiva é de algum modo infinita, pois não é delimitada pela matéria. Daí que possa conhecer o universal, o qual de certo modo é infinito, na medida em que contém em si coisas infinitas em potência”. (Tomás de Aquino, De An, a. 18, ad 3).


Noutras palavras, embora seja copartícipe, juntamente com o corpo, da essência humana, a alma racional o transcende no exercício formal dos seus atos próprioso que demarca a sua intrínseca imaterialidade. Neste tópico, convém salientar que, quando se fala de imaterialidade da inteligência, se está falando, ao mesmo tempo, de imaterialidade da vontade, a qual é um apetite intelectivo do bem. Isto quer dizer o seguinte: no ato de volição, a alma também opera sem depender formalmente do corpo, embora este sirva de substrato instrumental para os quereres humanos, na medida em que todo conhecimento das coisas passa, de alguma forma, pelo aparato sensitivo (senso comum, memória, potência imaginativa e potência cogitativa), e a vontade para atuar alimenta-se, como veremos adiante, de formas imateriais subministradas pela inteligência.


2. Substancialidade da alma


Verificada a primeira característica essencial da alma humana, ou seja, a sua intrínseca espiritualidade, que lhe demarca a diferença específica com relação à alma dos animais irracionais e à alma dos vegetais — incapazes de transcender formalmente à matéria —, é preciso considerar a seguinte propriedade: sua substancialidade. Em Santo Tomás, a demonstração dessa propriedade corrige as incertezas e ambigüidades da antropologia aristotélica.


Na citada Questão Disputada Sobre a Alma, há um artigo sobre essa questão em que se arrolam algumas teses inadmissíveis para o Aquinate: as de filósofos materialistas, de uma parte, que não creditavam nenhum caráter substancial à alma racional e a equiparavam a outras formas naturais contingenciadas pela matéria; e a de pensadores platônicos que, não obstante afirmarem ser a alma uma substância, queriam creditar a ela uma transcendentalidade absoluta em relação ao corpo, chegando a dizer que o homem é a alma. Esta premissa é para o grande gênio medieval absurda, pois implica desprezar o corpo como um dos elementos constitutivos da essência humana. Ora, a evidência da essencialidade do corpo no composto humano leva o Doutor Angélico a dizer o seguinte, depois de uma série de premissas harmonicamente ordenadas entre si:


“Deve-se concluir que a alma, para poder subsistir por si (per se potens subsistere), não é tal que forme uma espécie completa, mas entra na espécie humana como forma do corpo. Assim, se pode dizer que a alma seja uma forma que é substância”. (Tomás de Aquino, De An. a. 1)


Pois muito bem. Sabedor de que “o operar segue o ser” (operari sequitur esse), ou seja, de que nada pode operar senão enquanto é, e tendo demonstrado a espiritualidade da alma racional (e, por conseguinte, a sua independência com relação ao corpo no que tange à sua operação ótima: entender e querer), o Aquinate recorre à fina distinção entre essência e ser para apontar a substancialidade da alma. Em resumo, a alma humana, mesmo sendo imaterial, possui uma radical distinção metafísica com relação à imaterialidade da essência divina: nela há composição de essência e ato de ser, ao passo que em Deus há identidade máxima, sendo a Sua essência simplesmente ser (esse simpliciter).


Isto quer dizer o seguinte: o ser da alma humana não é simplícimo, em sentido metafísico, mas composto, pois nele se dão ato e potência. Por exemplo, a alma racional tem potência para entender (intelecto possível) e entende em ato (intelecto agente), sendo o conhecimento justamente este movimento imaterial, acidental, da potência intelectiva. Deus, ao contrário, é o que entende, pois tudo n’Ele é o Seu próprio conhecer, ao passo que a alma humana não se identifica em termos absolutos com o seu próprio entender: ela é, como se frisou acima, finita em ato e infinita em potência, ao passo que Deus é absolutamente infinito em ato, não havendo n’Ele potência passiva alguma. Deus é o Próprio Ser Subsistente, ao passo que todos os entes têm o ser participado por Ele. Exclua-se, pois, do horizonte metafísico o Ipsum Esse Subsistens, e toda a realidade dos entes se tornará aporética.


Eis a distinção metafísica que representa, para alguns tomistas, uma das grandes novidades do Aquinate no tocante a este tema:



Ø a alma humana é ontologicamente simples (dada a sua imaterialidade), e metafisicamente composta (dada a sua composição de essência e ser).





3. União da alma com o corpo humano


Dadas estas duas características principais da alma humana (espiritualidade e substancialidade), Santo Tomás não encontra dificuldade alguma em fazer sua a tese aristotélica da união entre alma e corpo, assumindo neste ponto os conceitos do hilemorfismo do Estagirita. “A alma é aquilo por meio do qual o corpo humano possui o ser em ato, e isto é próprio de uma forma. Portanto, a alma humana é a forma do corpo”. (Tomás de Aquino, De An. a.1, ad.7).


Duas são, pois, as principais características dessa união:


1ª.) ela é substancial. Para evidenciar isto Santo Tomás lembra que, quando a alma abandona o corpo, não resta nada nele de prioriamente humano, a não ser a aparência, e dizer isto significa que o cadáver não tem potência para atualizar nenhuma das atividades próprias e distintivas do ente humano. “Assim, se a alma estivesse no corpo [acidentalmente] como um marinheiro [está] num navio [metáfora usada por vários filósofos platônicos], não imprimiria o caráter de espécie a esse corpo”. (Tomás de Aquino, De An. a.1, ad.7).


2ª.) justamente por ser substancial, essa união abarca o ser e o operar. “A alma está unida ao corpo para a sua perfeição substancial, isto é, para a completude da espécie humana, e também para a sua perfeição acidental, ou seja, para isto a que chamamos conhecimento intelectivo, ao qual a alma chega por meio dos sentidos, sendo este o modo de conhecer conatural ao homem” (Tomás de Aquino, De An. ibid, ad.7.).


Em síntese, no homem há uma só alma que abarca todas as operações das potências inferiores (vegetativas e sensitivas) e superiores (intelectivas e volitivas). Eis as palavras claras de Santo Tomás: “Sendo a alma uma forma substancial, que constitui o homem em determinada espécie de substância, [é preciso dizer que] não existe uma forma substancial intermédia (...), mas o homem, dada essa alma, é aperfeiçoado segundo os diversos graus de perfeição, em razão do seu modo de ser [primeiramente] corpo, de ser corpo [vegetativo e] animado e [por fim, de ser] alma racional”. (Tomás de Aquino, De An. ibid, ad.9.).


Segundo esta teoria, a alma racional não é uma dentre tantas formas no composto humano — tese da pluralidade das formas no homem —, mas é uma única perfeição entitativa que absorve e abarca formalmente todas as funções das potências superiores e inferiores. “Sendo simples quanto à essência, a alma humana é potencialmente múltipla, enquanto é princípio de variadas operações. E como a forma aperfeiçoa a matéria não apenas quanto ao ser, mas também no tocante ao operar, é necessário que a alma, sendo forma [imaterial] única, aperfeiçoe as partes do corpo de variados modos”, afirma o Doutor Angélico (Tomás de Aquino, De An. ibid, ad.14.).


Neste ponto vale mencionar que a tese da pluralidade das formas no composto humano era quase unanimemente defendida na Universidade de Paris no tempo de Santo Tomás. E mais: o escândalo causado pela teoria tomista (demonstrada por ele filosoficamente, e, décadas depois, referendada pelo Magistério da Igreja) contribuiu para a famosa condenação de 1277 — pelo bispo Estêvão Tempier — da tese da unicidade da forma substancial da alma humana. A história do embate solitário de Tomás de Aquino com praticamente todos os mestres do seu tempo (teólogos e filósofos), assim como com vários irmãos de fé, aponta para o papel que cabe ao verdadeiro filósofo (amicus Plato, sed magis amica veritas) como defensor da verdade: levar os princípios até o fim, ainda que arcando com o ônus do opróbio, do desprezo, da condenação. O fato é que, anos depois da morte do Aquinate, a verdade de sua teoria impôs-se, e a escola tomista ao longo de 700 anos tratou de mostrar as absurdidades e aporias da tese pluralista.




4. As faculdades da alma: primazia ontológica da inteligência e da vontade


Em meio à vastíssima gama de operações realizadas pela alma humana, Santo Tomás enfatiza a excelência de suas duas faculdades principais: a inteligência e a vontade.


A vontade: movimento apetitivo-intelectivo tendencial ao bem


Em várias passagens de sua imensa obra, Santo Tomás frisa que a vontade é o apetite intelectivo do bem. Em primeiro lugar, ela apetece o bem em sentido universal (bonum in communi). Assim, toda vez que o homem quer algo, o quer na forma intelectiva de um bem. Por exemplo: um estuprador, embora cometa um ato moralmente condenável, deseja no instante em que o pratica um bem, um gozo psicofísico (que, em si, não pode ser dito mau); um ladrão, por sua vez, deseja algo que também não pode ser dito mau em si (os bens de ordem material); e assim também o suicida, que comete esse ato terrível desejando um bem psicológico (pôr fim a seus tormentos, sejam quais forem); etc. A imoralidade intrínseca de todas essas ações humanas está no fato de que, nelas, o querer está desordenado, não delibera no ato a respeito da hierarquia dos bens ontológicos que integram a realidade, nem acerca da forma como devem ser adquiridos pelo homem. Seja como for, o bem é o que a vontade busca, ao querer, e mesmo quando age mal ela é movida sub ratione boni — “sob a razão de bem”. Eis, em síntese, a teoria tomista em suas linhas gerais.


Impõe-se agora uma distinção. Afirmou-se que a vontade quer, com necessidade, o bem em sentido geral. Mas e com relação aos bens particulares? Elas os quererá com igual necessidade? A resposta de Santo Tomás é enfática: “não”. Na concepção do Aquinate, os bens particulares (bona particularia) não podem determinar a vontade necessariamente, e essa radical indeterminação manifesta a indifferentia objectiva da vontade, ao passo que o ato de escolha, em si, manifesta a indifferentia subjectiva. E aqui reside propriamente a liberdade humana: somos livres para querer ou não querer estes ou aqueles bens, e em razão disto se diz que a vontade é a instância inexpugnável da liberdade humana. Somente um Bem absoluto e infinito poderia repousar absolutamente a vontade humana, e este é Deus. Por isso, na visão beatífica da essência divina é impossível para o homem querer algo que não seja Deus mesmo, ou seja, é impossível para ele pecar, escolher o mal, desviar-se do fim, pois sua inteligência e sua vontade estão deificadas pela apreensão formal (e conseqüente volição perfeita) do fim último e inesgotável que é Deus. Nesse estado de contemplação da essência do Próprio Ser, a potência volitiva humana locupleta-se, chega ao ápice, alcança a felicidade na posse efetiva do bem.


A liberdade de eleição — conhecida por nós como livre-arbítrio — é a faculdade conjunta da inteligência e da vontade, conforme diz o Aquinate numa famosa passagem (libero arbitrium dicitur esse facultas voluntatis et rationis, Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q. 83, arts. 3 e 4). Essa simples frase, além de mostrar o quão equidistante está Santo Tomás tanto do intelectualismo como do voluntarismo, revela uma verdade fundamental da antropologia tomista, a saber: não há nenhum ato propriamente humano que não proceda da inteligência e da vontade, do entendimento e da volição. Os atos não voluntários não são uma propriedade do homem, pois outros animais também os realizam. Somos portanto livres no ato de escolha (electione), que radica na vontade, sendo esta o apetite intelectivo do bem.


A doutrina pode ser então sintetizada:


Ø a vontade humana tem como objeto formal próprio o bem (em sentido geral), e sua propriedade essencial é a liberdade. Mas esta só pode ser exercida com relação aos bens particulares que se lhe apresentam. Com relação ao Bem supremo e infinito, que é Deus, a vontade não é livre, no sentido de que, diante d’Ele, possuindo-O em ato, ela não está em potência para não querê-Lo.




A inteligência: movimento de apreensão imaterial dos entes.


É bastante conhecida a etimologia da palavra intelecto: intus legere (ler por dentro). Ela indica que a inteligência é algo capaz de ir além da superfície das coisas, descortinar-lhes as essências, as causas, a finalidade. Em sentido próprio, a inteligência é potência para a apreensão (imaterial) da forma de todos os entes. É, na linguagem da gnosiologia aristotélico-tomista, potência para os inteligíveis. Neste contexto, não é ocioso salientar que as coisas são inteligíveis na exata medida em que têm ser, pois o não-ser é ininteligível — e a inteligibilidade tem raiz na forma dos entes. A forma é, pois, princípio de operação e também de inteligibilidade. Isto significa o seguinte: pela forma substancial os entes operam, e pela operação conhecemos as suas essências, embora jamais as esgotemos, dada a natureza débil da nossa inteligência (comparada à de Deus e à dos Anjos), além do fato de as coisas terem em si algo da inesgotabilidade do Próprio Ser Subsistente, de onde provêm, razão pela qual, por mais que conheçamos as coisas, o conhecimento não se esgota — pois para esgotar-se precisaríamos conhecer a causa causarum de todas elas: Deus (o que, segundo a Sagrada Teologia, só acontecerá aos bem-aventurados, no céu). A este respeito é especiosa a frase de Santo Tomás em seu Comentário ao Credo: “Nenhum filósofo jamais conseguiu investigar perfeitamente sequer a natureza de uma mosca” (...sed cognitio nostra est adeo debilis quod nullus philosophus potuit unquam perfecte investigare naturam unius muscae. Tomás de Aquino, Comentário ao Credo, Proêmio).


No contexto do presente tema, interessa-nos apenas aludir a duas características próprias do intelecto humano, que receberam a seguinte terminologia do Aquinate — herdada da teoria do conhecimento de Aristóteles: intelecto possível e intelecto agente.


Tomás de Aquino, em diferentes passagens de sua obra, começa abordando primeiramente o intelecto divino, antes de referir-se ao humano, sendo a nota distintiva da inteligência divina ser Ato Puro sem mescla de nenhuma potência passiva. Ou seja: num só ato, Deus contém em si todos os inteligíveis da ordem do ser. Conhecendo-Se perfeitamente, Ele conhece o que é, o que foi, o que era, o que será e também o que seria. Deus, portanto, não está em potência para conhecer nada além do que já conhece, pois isto demarcaria uma imperfeição no seu Ser, pois conhecer algo novo é, de alguma forma, receber uma perfeição, e sendo Ele omniperfeito não há nenhuma nova perfeição que possa adquirir. Deus conhece perfeitamente as coisas antes mesmo de elas serem, conhece as suas essências, os seus fins, as suas substâncias e respectivos acidentes; conhece a matéria de que são feitas, a forma que as especifica, o seu modo de operar, como e quando operam, quais os desvios a que estão sujeitas numa ordem de causalidade acidental (per accidens), aonde vão chegar numa ordem de causalidade necessária (per se), etc. Há várias outras características da inteligência divina, mas estas bastam para o tema em foco. E como também não é o caso de abordar aqui as características do intelecto dos Anjos segundo o Doutor Comum, passemos ao humano.


Pois bem: a inteligência humana está, inicialmente, em potência para entender tudo. Em termos simples: logo que o corpo humano é animado, ou seja, recebe a sua forma substancial que é a alma, a inteligência é tabula rasa, vazia, ainda não preenchida por nenhum conteúdo inteligível. Começamos a vida, por assim dizer, com a inteligência zerada. Ora, como é fato insofismável que transitamos da potência ao ato conhecendo o que antes não conhecíamos, isto indica também haver nessa forma imaterial um poder ativo. Assim, à potência para os inteligíveis chamará Santo Tomás intelecto possível, e ao ato de apossar-se imaterialmente deles, intelecto agente.


Não trataremos nesta comunicação do modo da apreensão imaterial dos entes pela inteligência humana, mas registrem-se algumas de suas características. A primeira: ela é por abstração. Isto quer dizer que chegamos ao conhecimento da essência dos entes abstraindo-lhes as qüididades materiais. Diz o Aquinate: a essência das coisas materiais abstraída de suas notas individuantes (quidditas rei materialis abstracta a notis individuantibus) é o objeto próprio do conhecimento humano. Em suma, conhecemos o universal por meio do particular, o necessário por meio do contingente ou acidental, o imaterial por meio do material, o inteligível por meio do sensível. E aqui chegamos à segunda característica do humano modo de entender: ele é por raciocínio. Assim, alcançamos verdade — que é uma certa adequação entre a inteligência e as coisas — não num flash intuitivo, mas aos poucos, raciocinando, elaborando premissas e delas extraindo corolários necessários. Por isto, com muita dificuldade a inteligência humana vai assimilando os conceitos das coisas, descobrindo-lhes as essências, ou, como se disse acima, a sua forma inteligível.


A história do tomismo legou-nos uma imensa bibliografia a respeito da teoria do conhecimento de Santo Tomás de Aquino, apontando inúmeras características do modo de chegar à verdade, assim como o que seriam as instâncias especulativa e prática do intelecto humano. Não é possível fazer neste breve texto referência a todos estes aspectos, mas o que foi dito acima basta para concluir, ao modo de síntese:


Ø O intelecto é a faculdade precípua da alma humana, intrinsecamente espiritual. Uma forma imaterial finita, aberta ao infinito. Finita em ato (porque composta de essência e ser, sendo a essência o limite do seu ato de ser) e infinita em potência (porque capaz de assimilar todos os inteligíveis na ordem do ser).




5. Origem da alma humana.


Arroladas algumas das principais características da alma humana, chega-se à questão capital: De onde ela provém? Seria ela um produto, uma conseqüência natural da concepção, como ocorre com os animais irracionais?


A argumentação, aqui, segue a seguinte linha:


Ø O que é independente da matéria em seus atos próprios não pode provir dela. Ora, o intelecto humano, no ato de conhecer, é independente das potências sensitivas (incluídas aqui as vegetativas; no caso, as neurológicas). Logo, ele não pode ser gerado naturalmente pela concepção.


Para Santo Tomás, a alma intelectiva, devido à sua natureza espiritual e imaterial, não pode ser produto de uma preexistente substância material (ou seja: da união do óvulo com o espermatozóide), pois no plano ontológico o que é de grau inferior não tem potência para gerar o superior. E também não pode ser produto de uma preexistente substância espiritual do mesmo grau ontológico, ou seja, que possua a mesma essência, pois a substância espiritual, sendo una e imaterial, não se transmuta em outra. E nem de uma finita substância espiritual superior, como a dos Anjos, que não têm nenhuma parte com a matéria, pelo mesmo motivo do argumento anterior: algo imaterial não pode perder a unidade, pois é de per si indecomponível e não multiplicável (só podendo haver muitos indivíduos da mesma espécie onde há o princípio material de individuação).


Logo, a alma humana só pode receber o ser por criação, e isto só cabe ao Próprio Ser Subsistente, Deus. (cfme. Suma Teológica, I, q. 90, arts. 2 e 3, resp.)


Ø Em resumo: a alma racional é criada diretamente por Deus e infundida no corpo humano.



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1- Devemos ao Dizionario Enciclopedico del pensiero de San Tommaso d’Aquino, de Battista Mondin a estrutura desta comunicação. Foram feitos ajustes e vários acréscimos ao texto do teólogo italiano, assim como supressões de pontos ao nosso ver imprecisos.