Sidney Silveira
A pedido de amigos, compus hoje esta breve questão disputada sobre o uso de palavrões por parte do filósofo. Depois, certamente, se apresentará ocasião para comentarmos em detalhes o que segue abaixo.
A pedido de amigos, compus hoje esta breve questão disputada sobre o uso de palavrões por parte do filósofo. Depois, certamente, se apresentará ocasião para comentarmos em detalhes o que segue abaixo.
QUESTÃO DISPUTADA SOBRE O USO DE PALAVRAS TORPES POR PARTE DO FILÓSOFO
(Em um artigo)
Sobre se é lícito ao filósofo, contra adversários maliciosos, argumentar com palavrões ou ditos insultuosos.
E PARECE QUE SIM.
Primeira objeção
Entre pessoas que buscam a verdade, mas divergem com relação a determinado tópico (τόπος), a discussão dialética deve dar-se por meio de um tratamento respeitoso, sem palavras de calão, para que a luz da razão natural (lumen rationis naturalis) dos debatedores não se obscureça pelas paixões do apetite irascível e consiga, assim, levar ao ato uma potência que é conatural a todos os homens: chegar à verdade após um movimento que radica no chamado intelecto possível [1]. Ocorre que há maliciosos opositores, como os comunistas, por exemplo, entre os quais não há quem de fato busque a verdade, mas apenas defensores de uma ideologia criminosa — com maior ou menor grau de consciência das primícias de sua atuação e das conseqüências, diretas ou indiretas, que dela decorrem. Logo, parece lícito usar palavras desrespeitosas e de calão numa discussão dialética com comunistas ou com defensores de quaisquer outras ideologias nefastas.
Entre pessoas que buscam a verdade, mas divergem com relação a determinado tópico (τόπος), a discussão dialética deve dar-se por meio de um tratamento respeitoso, sem palavras de calão, para que a luz da razão natural (lumen rationis naturalis) dos debatedores não se obscureça pelas paixões do apetite irascível e consiga, assim, levar ao ato uma potência que é conatural a todos os homens: chegar à verdade após um movimento que radica no chamado intelecto possível [1]. Ocorre que há maliciosos opositores, como os comunistas, por exemplo, entre os quais não há quem de fato busque a verdade, mas apenas defensores de uma ideologia criminosa — com maior ou menor grau de consciência das primícias de sua atuação e das conseqüências, diretas ou indiretas, que dela decorrem. Logo, parece lícito usar palavras desrespeitosas e de calão numa discussão dialética com comunistas ou com defensores de quaisquer outras ideologias nefastas.
Segunda objeção
Diz Aristóteles no Peri Hermeneias que a palavra escrita é símbolo da palavra falada, e a palavra falada é símbolo das afecções da alma, ou seja: das imagens da realidade que afetam a potência sensitiva interna da imaginação, antes de ser conduzidas à vis cogitativa da alma e, desta, à razão superior que abstrai a verdade dos dados subministrados pelos sentidos. Mas as palavras (escritas ou faladas) usadas pelos comunistas na defesa de suas teses, assim como as dos defensores de quaisquer outras ideologias nefastas travestidas de filosofia, não simbolizam em nenhum grau a realidade, mas representam a negação desta por meio de sofismas ou slogans que visam a seduzir as pessoas e levá-las ao erro. Portanto, eles não podem, propriamente, ser considerados filósofos e, por esta razão, não merecem adentrar o terreno das discussões dialéticas que pressupõem o debate respeitoso aludido na primeira objeção. Logo, o filósofo não está obrigado a usar com eles das palavras vernáculas que expressam os elevados conceitos mentais pelos quais se chega filosoficamente à verdade, mas pode, se quiser, usar palavras de calão.
Diz Aristóteles no Peri Hermeneias que a palavra escrita é símbolo da palavra falada, e a palavra falada é símbolo das afecções da alma, ou seja: das imagens da realidade que afetam a potência sensitiva interna da imaginação, antes de ser conduzidas à vis cogitativa da alma e, desta, à razão superior que abstrai a verdade dos dados subministrados pelos sentidos. Mas as palavras (escritas ou faladas) usadas pelos comunistas na defesa de suas teses, assim como as dos defensores de quaisquer outras ideologias nefastas travestidas de filosofia, não simbolizam em nenhum grau a realidade, mas representam a negação desta por meio de sofismas ou slogans que visam a seduzir as pessoas e levá-las ao erro. Portanto, eles não podem, propriamente, ser considerados filósofos e, por esta razão, não merecem adentrar o terreno das discussões dialéticas que pressupõem o debate respeitoso aludido na primeira objeção. Logo, o filósofo não está obrigado a usar com eles das palavras vernáculas que expressam os elevados conceitos mentais pelos quais se chega filosoficamente à verdade, mas pode, se quiser, usar palavras de calão.
Terceira objeção
Os defensores do comunismo e de outras ideologias tão ou mais nefastas — como o liberalismo, em seus mais variados matizes — muitas vezes mentem em sua argumentação, e a mentira em si é muitíssimo mais daninha do que o palavrão, já que este último não necessariamente expressa um engano, mas, em geral, apenas retrata um estado de espírito. Assim, por serem contumazes impugnadores da verdade conhecida, estão esses mendazes adversários excluídos da discussão filosófica, pois na melhor das hipóteses se pode conceder que defendem os seus erros com algum grau de ignorância culpável. Logo, por princípio, não é preciso usar de linguagem escorreita no trato com eles, pois, dada a sua leviandade, não são merecedores do respeito hipotecado aos verdadeiros adversários filosóficos, pois estes últimos buscam a verdade, enquanto os comunistas e os defensores de outras ideologias nefastas (como o liberalismo), não.
Os defensores do comunismo e de outras ideologias tão ou mais nefastas — como o liberalismo, em seus mais variados matizes — muitas vezes mentem em sua argumentação, e a mentira em si é muitíssimo mais daninha do que o palavrão, já que este último não necessariamente expressa um engano, mas, em geral, apenas retrata um estado de espírito. Assim, por serem contumazes impugnadores da verdade conhecida, estão esses mendazes adversários excluídos da discussão filosófica, pois na melhor das hipóteses se pode conceder que defendem os seus erros com algum grau de ignorância culpável. Logo, por princípio, não é preciso usar de linguagem escorreita no trato com eles, pois, dada a sua leviandade, não são merecedores do respeito hipotecado aos verdadeiros adversários filosóficos, pois estes últimos buscam a verdade, enquanto os comunistas e os defensores de outras ideologias nefastas (como o liberalismo), não.
EM SENTIDO CONTRÁRIO, remetamo-nos ao que diz Aristóteles no Protreptico, por meio de um silogismo disjuntivo: “Ou devemos filosofar, ou não devemos. Se devemos, então devemos [sem problemas]. Mas se não devemos, também devemos para explicar por que não devemos. Logo, devemos filosofar sempre”. Desta conclusão do Filósofo deduz-se que o modo humano de conhecer pressupõe, necessariamente, o uso de argumentos para alcançar a verdade — e tão mais verazes serão esses argumentos quanto menos estiverem contaminados pela exacerbação das paixões do apetite irascível, que normalmente afloram numa discussão aos palavrões. Ademais, na língua insultuosa não se encontra a sabedoria, mas, ao contrário, ela apenas reflete a arrogância e leva a grandes quedas espirituais as pessoas que discutem aos palavrões. Daí dizer a Sagrada Escritura: O prepotente (...) usa de palavras perniciosas (Sl. 51). E ainda: Não terá duração na Terra a má língua (Sl. 139, 12). E mais: A boca do justo produz sabedoria, mas a língua perversa será arrancada (Prov., 10. 31). E por fim: Aquele que profere uma linguagem iníqua não pode fugir de Deus; a Sua justiça vingadora não o deixará escapar (Sab. I, 8); etc.
RESPOSTA. Duas coisas devem considerar-se, como preâmbulo à resposta a esta questão. A primeira é que o bem e a perfeição do intelecto humano consistem em conhecer a verdade, como afirma Santo Tomás na Suma Contra os Gentios (I, 1, 3). Portanto, sendo a verdade o bem (e o fim) do intelecto, a ela devem ordenar-se todos os raciocínios que compomos ou dividimos fazendo uso da potência intelectiva, assim como todas as discussões em que estejamos envolvidos. A segunda é que a esse bem do intelecto humano que é a verdade não se chega sem que haja uma causa instrumental extrínseca — no caso, o mestre. Pois, como diz Santo Tomás no livro Sobre a Verdade (q. 11, art. 2. resp.), embora possamos conhecer sozinhos muitas coisas graças à luz da razão natural dada por Deus a todos os homens, nem por isso podemos dizer que somos mestres de nós mesmos, pois quando alguém adquire a ciência por si mesmo, ainda assim a tem apenas em seus princípios comuns aplicados a algo específico e limitado — mas não em relação aos conhecimentos mais abstratos e superiores, para os quais é preciso haver uma causa instrumental exterior que incuta o hábito da ciência na alma daquele que busca a verdade.
Pressupostas estas duas coisas (ou seja: que todos tendemos à verdade; e que, para alcançá-la em sentido pleno, precisamos de um mestre), deve-se dizer que, numa discussão contra adversários maliciosos, é absolutamente ilícito e contraproducente para o filósofo fazer uso de palavrões ou de expressões insultuosas, e isto por algumas razões. Aduzamos somente duas, pois nos bastam. A primeira delas é que o ofício do sábio (officium sapientis) consiste em uma dupla função: ordenar as coisas aos fins que lhes são próprios e combater os erros, conforme acentua Santo Tomás no começo da Suma Contra os Gentios (I, 1). Ora, sendo o comunismo e quaisquer ideologias tão ou mais funestas (como o liberalismo) um erro tremendo, mais do que nunca cabe ao filósofo usar dos seus melhores instrumentos para refutá-las de forma apodíctica e, assim, tentar conduzir os seus adeptos à clara visão da verdade — o que não se faz por insultos nem com palavrões. Na prática, se o filósofo começa a xingar os seus adversários que estão em erro, com isto acaba por engolfá-los mais e mais no erro em que estão, pois os induz a responder iradamente na mesma medida, sem raciocinar, dado que uma das precondições para a razão alcançar a verdade reside no fato de que não esteja obliterada por vícios mentais [2] que, na prática, são grandemente estimulados pela linguagem torpe. Assim, ainda que o adversário seja um “demônio”, não se deve baixar o nível da linguagem na denúncia de suas argúcias sofísticas, pois para o filósofo basta refutá-las.
Deve-se também aduzir o seguinte fato, considerando a malícia dos adversários comunistas (e também liberais) e a natureza nefanda dos seus erros: é impossível, nesta vida, o homem estar definitivamente obstinado no mal. Bem o demonstra o Angélico no livro Sobre a Verdade (Q. 24, art. 11, resp.), onde diz: “A obstinação implica certa firmeza no pecado, em virtude da qual o pecador não consegue sair de sua situação. Pois bem, o fato de que um pecador não consiga abandonar o pecado pode entender-se num duplo sentido: em primeiro lugar, em razão de as suas forças não serem suficientes para que ele se liberte do pecado, e neste sentido se diz de todo aquele que cai em pecado mortal que não pode voltar [sozinho] à retidão. Mas esta firmeza no pecado não basta para dizer que alguém esteja propriamente obstinado. Noutro sentido, se diz que alguém está firme no pecado porque não consegue cooperar para sair dele”. A partir daí, Santo Tomás afirma que a obstinação perfeita existe apenas nos demônios, cuja inteligência está tão fixada no mal que quaisquer dos seus movimentos volitivos e intelectivos implicam em si o engano, a malícia, e, portanto, o pecado. No caso do homem, por pior que seja a situação moral e intelectual em que esteja, a sua obstinação é imperfeita, na medida em que sempre há débeis e episódicos movimentos em direção ao bem da inteligência, que é a verdade. Portanto, ainda que os adversários comunistas e liberais estejam em tal situação dramática (na qual, teologicamente, só se pode esperar por uma moção superabundante da graça divina), cabe ao filósofo, mais do que nunca, tentar fazê-los recuperar o senso comum, que é precondição para a verdade vir à luz. Se não conseguir, ele não deve insultá-los com xingamentos ou coisas assim, pois isto literalmente faria com que eles se obstinassem mais e mais em sua posição, como a experiência o demonstra de forma eloqüente.
EM RESPOSTA À PRIMEIRA OBJEÇÃO, deve-se dizer que, do fato de os comunistas (e também os liberais) não buscarem a verdade em sentido próprio — pois são meros ideólogos em busca de argumentos com aparência de verdade —, não se deduz, logicamente, que seja lícito usar para com eles palavrões ou insultos. Trata-se de um enorme salto lógico, típico do pensamento erístico, entre as premissas maior e menor e a conclusão do silogismo: aquelas definitivamente não conduzem a esta. Ademais, do fato de termos de usar de palavras respeitosas para com quem busca a verdade não se deduz que só devamos usá-las neste caso.
EM RESPOSTA À SEGUNDA OBJEÇÃO, deve-se dizer que ela comete o mesmo raciocínio vicioso, no seguinte ponto: do fato de tais contendores não serem propriamente filósofos não se deduz que não devamos usar para com eles da mesma linguagem respeitosa implicada na discussão verdadeiramente filosófica.
EM RESPOSTA À TERCEIRA OBJEÇÃO, façamos menção a Santo Agostinho, que nos lembra o seguinte: nem todos os que dizem uma coisa falsa mentem (Sobre a Mentira, I, cap. 3), mas apenas aqueles que, tendo uma determinada coisa na mente, expressam outra contrária com o intuito de não revelar a verdade. Sendo assim, pressupor que todos os comunistas e liberais mentem é cometer o grave pecado de julgamento de intenção. Além do mais, ainda nos casos em que a mentira se torne de tal forma patente (e que, portanto, não cometamos o julgamento de intenção ao atribuí-la a outrem), disto não se deduz (nem se justifica) que tenhamos de responder a ela com insultos e palavrões, entre outras coisas pelas razões apresentadas no corpus.
[1] Em linhas gerais, Aristóteles conceituara o “intelecto possível” (ou “passível”: o noûs pathetikós) como potência do intelecto para atualizar todos os inteligíveis. Trata-se da pura e simples capacidade que possui cada ser humano, individualmente, de atualizar toda a sorte de conhecimentos.
[2] Aduzamos, à guisa de exemplo, a ira e a contumélia.