quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

Autoridade de Santo Tomás (V): a doutrina comum da Igreja!


Sidney Silveira

Como aponta Santiago Ramírez em sua clássica apresentação à Suma Teológica, publicada em meados da década de 40 do século passado pela editora espanhola BAC, ao falar-se em “autoridade doutrinal” de Santo Tomás de Aquino (Doutor Comum da Igreja), convém fazer a distinção entre autoridade científica e autoridade dogmática.

> a autoridade científica depende do valor intrínseco da obra;

> a autoridade dogmática depende da conformidade da obra com a Divina Revelação e de sua recomendação solene pelo Magistério da Igreja, mestra infalível da verdade revelada.

Pois muito bem: no caso de Santo Tomás de Aquino, ambas as autoridades se dão em grau superlativo, eminentissimum. Mas no que tange especificamente à sua autoridade dogmática, lembra-nos Ramírez que é preciso salientar o seguinte: desde a canonização do “Boi Mudo”, no distante século XIV, até meados do século XX, ela manteve uma linha ascendente formidável — sendo dignificada como doutrina comum da Igreja.

Neste contexto, é preciso deixar claro o seguinte, para não dar margem a confusões: quando se diz que o tomismo é a doutrina comum da Igreja, está-se reiterando, com o Magistério da Igreja, que em seus princípios e em seus fins ela não contém erros em matéria de fé, e mais ainda: tal é a sua riqueza teológica que dela se serve o próprio Magistério na proclamação de Dogmas e/ou na defesa da fé contra erros e heresias. É evidente que, nos pontos teologicamente opináveis, pode um católico concordar com um Doutor que não esteja totalmente alinhado a Tomás. Mas, mesmo nestes casos, é grandemente temerário afastar-se do Angélico, e veremos o porquê disto.

A doutrina teológica do Aquinate, como apontara Clemente VI, é verdadeira sem contágio algum de falsidade (vera sine contagio falsitatis), é clara sem a tediosa sombra da obscuridade (clara sine taedio obscuritatis) e é frutuosa sem o vício da curiosidade (fructuosa sine vitio curiositatis). É, por fim, “Doutrina Comum da Igreja” (videmus ad sensum quod doctrina istius sancti, quae dicitur ‘Doctrina Communis’ [...] semper tamet permanet et invalescit in saecula saeculorum).

São Pio V canoniza definitivamente essa doutrina na bula Mirabilis Deus, já citada noutro artigo da presente série, pela qual proclama Santo Tomás Doutor da Igreja Universal. A fórmula é bem simples e solene: a doutrina de Santo Tomás é regra certíssima da fé (certissima christiane regula doctrinae, qua Apostolicam Ecclesiam infinitis confutatis erroribus illustravit). Neste mesmo documento magisterial diz São Pio V nada menos que o seguinte: a Igreja recebe essa doutrina teológica como sua, por ser a mais certa e segura de todas (...eius doctrinam theologicam ab Ecclesiam Catholicam receptam, aliis magis tutam et securam existere). A propósito, há uma tradução para o português da Mirabilis Deus que pode ser adquirida no Instituto Aquinate, para quem quiser inteirar-se do conteúdo deste importante documento magisterial.

Antes de prosseguir com este breve texto, repitamos, pois, a título de ênfase:

a) a doutrina de Santo Tomás é comum da Igreja (Clemente VI);

b) é regra certíssima da fé (São Pio V); e

c) a Igreja a recebe como sua (São Pio V).

Mas há muito, muito mais. Bento XIII, por exemplo, lembra-nos em um de seus documentos magisteriais: a doutrina de Santo Tomás de Aquino foi aprovada pelo próprio Cristo em pessoa! Refere-se ali o Papa à passagem (que consta da bula de canonização de Santo Tomás e de todas as biografias, desde as primeiras) em que alguns dos confrades do Angélico ouviram a imagem de Cristo miraculosamente dizer o seguinte a ele: “Falaste bem de mim, Tomás. O que queres como recompensa?”. Ao que o Aquinate respondeu: “Nada além de Ti, Senhor”.

Por sua vez, Bento XIV, ao aprovar os estatutos do Colégio São Dionísio, em Granada, escreve que o não-ensinamento da doutrina teológica de Santo Tomás (ali ou em quaisquer centros de ensino do orbe católico) acarretará pena de excomunhão reservada à Santa Sé. Será que os leitores conseguem dimensionar bem isto, ou seja, o não-ensinamento de uma doutrina como matéria de excomunhão? Pois é isto mesmo.

Por uma questão de economia, pulemos alguns séculos de ditos solenes e magisteriais com o mesmo teor dos que acima descrevemos para chegar a Pio IX — que afirma numa conhecida alocução que Santo Tomás possuía engenho sobre-humano, o que lhe permitiu escrever formidavelmente sobre as coisas divinas e humanas, merecendo aprovação de Deus mesmo. E frisa, com sua linguagem peculiar, que, em se tratando de doutrina teológica, acima da de Santo Tomás só há a da visão beatífica (...ipse enim modo veritates revelatas tanta luce perfudit, ut extra beatificae visionis meridiem amplior nec optari nec sperari posse videatur: sed scientias etiam rationales ac naturales tanta veritate pertractavit, ut in his non secus ac in illis omnium instar merito esse possit).

De Leão XIII falar-se-á amiúde noutro texto, pois a sua famosa Encíclica Aeterni Patris merece um capítulo à parte. Falemos de São Pio X, que no motu proprio intitulado Sacrorum Antistitum diz, entre outras coisas, que os princípios da filosofia e da teologia de Santo Tomás não devem ser considerados como meramente opináveis ou discutíveis, mas como fundamentos sobre os quais se apóiam os conhecimentos acerca das coisas humanas e divinas (... in S. Thomae sun capita, non ea haberi debent in oponionum genere de quibus in utramque partem disputare licet, sed velut fundamenta in quibus omnis naturalium divinarumque rerum scientia consistit...).

A primazia doutrinal do Aquinate foi também coroada por Bento XV, que, como refere o genial tomista G.M. Manser, a incluiu no Código de Direito Canônico de 1917 (cânon 1366) com as seguintes palavras: “O sentido da filosofia e da teologia, assim como a instrução filosófica e teológica dos estudantes de teologia, devem ser dispostos pelos professores de modo a que se ajustem em tudo (omnino) ao sentido e espírito das doutrinas do Doutor Angélico, considerando-se tais princípios como coisa santa”.

Pio XI, na Encíclica Studiorum Ducem, repete o fato de a doutrina do Aquinte ser comum a toda a Igreja Universal (...sed etiam Communem seu universalem Ecclesiam Doctorem appelandum putemus Thoman).

Ditas todas estas coisas, será conveniente para um católico que estuda teologia afastar-se de Santo Tomás? Bem, conforme se apontou acima, a sua doutrina teológica foi proclamada pelo Magistério da Igreja : a) como doutrina comum; b) como aprovada pessoalmente pelo próprio Cristo; c) como inferior apenas à visão beatífica da essência divina; d) como não passível de ser discutida em seus princípios; e) como regra certíssima da fé; f) como doutrina que a Igreja recebe como sua; g) como fundamento sobre o qual se apóiam os conhecimentos acerca das coisas divinas; h) como doutrina a ser ensinada obrigatoriamente em todo o orbe católico, sob pena de excomunhão para os recalcitrantes; g) como doutrina santa; e i) como doutrina que, quanto aos seus princípios, deve ser seguida em tudo.

Bem, ainda não se disse sequer um décimo com relação à autoridade doutrinal de Tomás, que obviamente é participada — pois, como ele próprio ensinara, a autoridade da Igreja é maior do que a de quaisquer de seus Doutores, posto que dela recebem eles a sua ciência (cf. Suma Teológica, II-II, q. 10, art. 12, corpus).

No caso do Doctor Communis, a doutrina teológica é chamada “comum” porque, como afirmara Leão XIII (um ano após a publicação da Aeterni Patris, ao proclamar Santo Tomás Patrono dos Estudos católicos), é riquíssima em seu conteúdo, saníssima, perfeitamente organizada, admiravelmente acorde com as verdades da Sagrada Escritura e sinceramente obsequiosa com a fé.

Ainda há muito a dizer quanto a este tópico.

(continua)