Sidney Silveira
O bem da inteligência é a posse formal da verdade, ou seja, é o despir as coisas e as situações de seus aspectos incidentais e lhes descortinar o núcleo ontológico, a essência, chegar à forma inteligível que traduz, com fidelidade, o que elas são em si. O desvio da verdade — seja por ignorância paixão ou malícia, ou então uma mescla destas três, ainda que em doses desiguais —, acarreta no homem distúrbios espirituais, psicológicos e físicos. Sim, pois com o afastamento da verdade (e, por conseguinte, da realidade mesma das coisas), o aparato psicofísico humano é cindido, as potências da alma se desordenam decisivamente e causam males classificáveis por gente versada nas mais distintas ciências: do psiquiatra ao exorcista; do psicólogo ao clínico geral; do antropólogo ao teólogo com formação metafísica; etc. Em suma, afastar-se da verdade é ir contra a realidade, e isto só pode fazer mal ao homem, porque, como dizia o filósofo espanhol Julián Marías, a realidade não é só existência, mas também resistência, quer dizer: ela é o que resiste invencivelmente aos nossos equívocos.
É evidente que a diagnose das patologias varia de acordo com a abrangência da ciência que estuda cada caso. Não se peça ao ortopedista para dar um parecer sobre um distúrbio esquizóide, nem ao endocrinologista para assinar um atestado de delírio persecutório esquizofrênico, ou a um geneticista para identificar uma possessão demoníaca. Todos darão com os burros n’água! Neste contexto, convém salientar que um conhecimento é tanto melhor quanto abarca causas mais universais. Ou seja, por uma forma inteligível de grande alcance e profundidade, conhecem-se mais coisas particulares (tanto em sua configuração normal, como em seus desvios acidentais) do que por uma forma inteligível de menor alcance. Assim, por exemplo, se eu sei que as sociedades devem ordenar-se a Deus e prestar-Lhe o devido culto de latria, conhecendo esta verdade saberei, no ato, que uma sociedade caminha para o desastre espiritual se ignora a Deus na forma da lei, como acontece com todas as democracias liberais, sem uma exceçãozinha sequer. Mas, se desconheço totalmente aquela verdade, não terei a intelecção deste desvio específico no plano político, fonte de verdadeiras monstruosidades e aberrações.
O que se quer dizer com isto — entre outras coisas — é o seguinte: um bom metafísico, se porventura se torna psicólogo, será com toda a certeza um estudioso muito mais profundo dos fenômenos psíquicos do que um presumível especialista versado apenas em sua ciência e a partir de uma aporética perspectiva materialista, pois conhecerá as causas universais que afetam a matéria, e, no caso do homem, o corpo (que é a união da matéria com uma forma noética) e suas potências. Este é porventura o caso do psicólogo Martín Echavarría, autor do magistral livro La práxis da Psicología y sus niveles epistemológicos según Tomás de Aquino, uma lição magna de antropologia, ministrada ao longo de 800 densas páginas.
Pois bem: como se depreende da gnosiologia de Santo Tomás de Aquino, há uma identidade formal (e também intencional) entre o cognoscente e a coisa conhecida. Ou seja, ao conhecer a verdade o homem apossa-se das coisas imaterialmente, discernindo a si próprio como distinto delas e — valorando-as exatamente pelo que são — tendo uma noção de como deve agir em cada situação existencial que se apresente. Ora, quanto mais universais forem as verdades conhecidas, melhor e mais saudável será a vida de um homem. Pelo menos esta é a tendência natural. Há, pois, entre ser, conhecer e agir uma complementaridade que se rompe quando o homem se afasta da verdade, e isto sempre acarreta, como se disse acima, distúrbios internos (problemas espirituais, psicológicos e físicos), mas também externos, decorrentes daqueles (nas relações do homem com o seu entorno). Esses distúrbios podem gerar tanto o deprimido como o serial killer; tanto o melancólico como o pedófilo; tanto o misantropo como o fratricida.
Cito estas coisas a propósito do tristíssimo acontecimento de ontem numa escola do subúrbio carioca, onde um jovem patentemente problemático assassinou cruelmente 12 adolescentes, e depois se matou. Na carta que deixou, além de um conjunto de abstrusidades ele mencionava o nome de Jesus e manifestava várias idéias equivocadas sobre celibato, castidade, pureza, perdão de Deus, etc. Um prato cheio para os materialistas de plantão, que estão agora colocando a culpa na religião — pondo num mesmo balaio, obviamente, a religião que civilizou o mundo (com os seus ensinamentos e sacramentos, os seus Santos e grandes filósofos), as falsas religiões e também as seitinhas diabólicas que afastam o homem não apenas de Deus, mas também das verdades mais evidentes sobre si mesmo e sobre o mundo. Mas se com o ecumenismo a própria Igreja se coloca no mesmo plano de seitas e de religiões fundadas por assassinos e tarados, podemos condenar os materialistas por essa opinião?
Como o rapaz morreu, o complexo de causas particulares que o levaram a assassinar sem piedade essas crianças só pode agora ser conhecido, perfeitamente, por Deus. Médicos psiquiatras, filósofos, pedagogos, psicólogos e sociólogos poderão especular à vontade, mas sem jamais chegar à ciência perfeita das causas deste terrível evento, embora possam aventar hipóteses mil: problemas familiares, sociais, econômicos, políticos, físicos, psicológicos, psiquiátricos, etc. É evidente que estas circunstâncias podem ter sido concausas próximas do ato criminoso, em graus distintos, mas a verdade é que jamais o saberemos com toda a certeza nesta vida. Isto porque não podemos ter a ciência dos particulares se sequer possuímos os dados fundamentais para o estudo deles, e, como se disse acima, o rapaz está morto. Podemos, sim, saber que as razões da sua desrazão se afastam certamente das verdades mais fundamentais sobre a condição humana, dos tópicos da lei natural captados a partir da sindérese. Ora, quem se afasta dessas verdades sobre a essência do homem não impressiona que se torne um criminoso, um desvairado preso à agônica e insuportável dor de uma vida sem sentido. E, como se frisou acima, afastar-se da verdade é ir contra as coisas (e, diga-se, também contra as pessoas).
A forma do assassinato das crianças (semelhante à de alguns filmes que mostram a violência em suas configurações mais insanas), porém, nos aponta para uma outra causa do aumento, no mundo, dos crimes hediondos por motivo torpe: a cultura da morte, uma cultura satânica que dá ao mal um verniz estético, seja na literatura, na TV, no teatro, no cinema, na internet, etc. Uma cultura que, a pretexto de defender a liberdade de expressão, dá vazão ao abismo espiritual mais terrível que pode haver, no plano social. Cultura de um mundo que se fechou à ação da graça divina e, portanto, à face humana verdadeira que encontramos em Cristo — verdadeiro Deus e verdadeiro homem, como ensina o Credo de Calcedônia.
Infelizmente, a causa distante da dramática situação atual do mundo é a própria Igreja, que há 45 anos deixa de lado o seu carisma magisterial, já que este só se pode verificar se aqueles que o receberam não o depõem, culpavelmente. Uma Igreja apartada do Estado e, portanto, responsável pela multiplicação das seitas e também por uma política que não visa ao bem comum e à ordenação deste a Deus, pois o bem comum virou uma quimera. Obviamente, não que as coisas no contexto anterior ao Concílio Vaticano II fossem uma maravilha, pois a bem-aventurança perfeita só se dará no céu, mas, depois que o modernismo tomou conta do Magistério, as amarras que impediam a difusão dos males espirituais em grande escala foram rompidas...
Ora, a cultura de um mundo onde não existe autoridade espiritual manifesta, ou melhor, uma autoridade que manifeste a intenção de ensinar as verdades recebidas por Deus em alguns dos mais importantes tópicos da doutrina revelada, só pode induzir à multiplicação do que há de pior no homem. Não se assustem: a tendência é irmos descendo em círculos concêntricos cada vez mais dramáticos... Que Deus nos ajude.