Sidney Silveira
Um costume perverso (prava consuetudo), de acordo com Santo Tomás, é uma disposição produzida por um comportamento reiterado que vai contra as inclinações e apetências naturais ao homem. E tanto mais grave será tal costume quanto contrarie as potências e faculdades mais elevadas da natura humana. Assim, o mentiroso contumaz é, em si, mais corrompido do que o sujeito que dá vazão a algum tipo de incontinência sexual, pois o costume da mentira contraria o que de mais excelente há no ser humano: a natural inclinação da inteligência à verdade, tão verificável que, como dizia Santo Agostinho, o maior mentiroso odeia que lhe contem a mais ínfima lorota; tão verificável que uma das maiores angústias do mundo é a de estar num mar de dúvidas, sem o esteio, sem o conforto psicológico que a certeza da verdade traz consigo. Ademais, como destaca o Aquinate em diferentes lugares de sua magnífica obra, a verdade é o bem da alma porque é o fim de sua potência mais elevada, a inteligência — a que lhe permite alcançar, por abstração das qüididades materiais, a essência dos entes.
Pois muito bem: a autopresença estrutural do “eu” — à qual chamamos consciência — é o que nos propicia reconhecer-nos continuamente no tempo, e, por conseguinte, nos dá uma identidade. Reconheço que “eu sou eu” apenas porque a consciência reflete a minha unidade e permanência em meio à abundância de episódios, de eventos e coisas distintas de mim com que ela depara. Agir contra os ditames da consciência é, portanto, agir contra algo fundamental. É agir contra um dos signos distintivos da pessoa (não no sentido maléfico e hipertrofiado com que certas teologias, embebidas de liberalismo, qualificam a pessoa humana, diga-se). É agir contrariando algo importantíssimo da nossa natureza, e tanto é assim que, mesmo quando está em erro, a consciência dita a regra da ação e do pensamento; nas palavras de Santo Tomás, a consciência errônea obriga. Sendo assim, se alguém age, voluntariamente, contra a consciência comete um pecado nada desprezível que, em algum momento, será acusado ou remordido pela própria consciência, a menos que esta esteja absolutamente cauterizada.
Esse breve preâmbulo foi feito apenas para dizer o seguinte, acerca da tão propalada crise diplomática internacional suscitada pela declaração feita por um dos bispos da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, D. Richard Williamson, que recentemente deu uma declaração à imprensa na qual negava o (número de 6 milhões de mortes do) holocausto judeu. A propósito, ele já se desculpou ao Papa, publicamente, pela imprudência de ter emitido tal opinião — pelos constrangimentos criados à Santa Sé. Ele já foi também “chamado às falas” pelo próprio superior da Fraternidade, D. Bernard Fellay, que reiterou o seguinte: a autoridade de Williamson é simplesmente nenhuma, nessa matéria. Agora, querem a obrigá-lo a desdizer o que disse, e isto é algo que não se pode tolerar em hipótese alguma, sob o risco de remediar um mal por um meio moralmente ilícito. Nem mesmo os seus superiores da Fraternidade têm autoridade para fazê-lo ir contra a própria consciência; têm autoridade, isto sim, para mandá-lo calar-se (e parece que já o fizeram), mas não a tem para obrigá-lo a emitir um juízo contrário ao que pensa. Nem o Papa nem a Igreja têm essa jurisdição sobre o foro íntimo da consciência das pessoas, embora tenham autoridade magisterial para reprimir, apontar e impor limites e sanções aos erros, ensinar, moldar as consciências à verdade eterna, participada pelo próprio Cristo à Igreja. Em suma, a consciência, embora não seja a raiz da liberdade humana (como querem os liberais), é o seu invólucro, e não nos cabe rasgá-lo a fórceps.
Outra coisa: um mundo que não se contenta com um imediato (e público) pedido de desculpas, como o que foi feito pelo bispo da Fraternidade São Pio X, é um mundo perverso, invertido. Sob a capa do “diálogo”, é na verdade um mundo diabolicamente ditatorial, que quer dominar as pessoas interiormente, controlando as suas consciências. Neste sentido, há uma dose cavalar de hipocrisia, por exemplo, na postura da primeira ministra alemã, Angela Merkel, ao dizer que o pedido de desculpas de Williamson ao Papa e a posterior afirmação do Vaticano de que esta não é a posição da Igreja foram “insuficientes”. Insuficientes para quem e para quê? Na verdade, essa pressão para que o bispo diga algo contrário ao que pensa, pois se não o fizesse seria novamente "excomungado" (como li em alguns jornais e na internet), é absurda por vários motivos: em primeiro lugar, simplesmente porque, como prevê o Código de Direito Canônico, essa opinião de Williamson sobre o holocausto judeu não se enquadra em nenhum dos casos previstos pela Igreja para a pena de excomunhão: profanação das sagradas espécies, violência física contra o Romano Pontífice, consagração ilícita de um bispo sem mandato pontifical, etc. Ou seja: não propicia nem sequer a matéria jurídica para que se aplique a pena de excomunhão. Ademais, que raio de diálogo inter-religioso é este em que, presumivelmente, os membros de uma religião definem e impõem sanções canônicas aos de outra religião? Ora, o Papa, chefe supremo entre nós do Corpo Místico de Cristo, já disse que a opinião de Williamson não é a posição da Igreja, e isto deve bastar. Se não, daqui a pouco aonde vamos parar?
Para encerrar, vale dizer que tudo neste caso está, curiosamente, em oposição radical, em gritante contradição com o “dogma” da intocabilidade da consciência individual (que, conceitualmente, rege o mundo contemporâneo!), "dogma" impresso em vários documentos sobre a dignidade da pessoa humana que vêm sendo veiculados, com espantosa uniformidade de princípios, desde o longínquo ano de 1789, data de publicação da Déclaration des Droits de l’home et du Citoyen. Ué, não se prega nesses verdadeiros púlpitos laicos em forma escrita que a pessoa não pode ser coagida a defraudar a própria consciência, expressando opiniões que lhe sejam contrárias? Vejamos, por exemplo, o que diz o artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
“A pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, SEM INTERFERÊNCIA, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
Esse “direito” liberal, tão democrático, ao que parece não se aplica ao bispo Williamson.
Um costume perverso (prava consuetudo), de acordo com Santo Tomás, é uma disposição produzida por um comportamento reiterado que vai contra as inclinações e apetências naturais ao homem. E tanto mais grave será tal costume quanto contrarie as potências e faculdades mais elevadas da natura humana. Assim, o mentiroso contumaz é, em si, mais corrompido do que o sujeito que dá vazão a algum tipo de incontinência sexual, pois o costume da mentira contraria o que de mais excelente há no ser humano: a natural inclinação da inteligência à verdade, tão verificável que, como dizia Santo Agostinho, o maior mentiroso odeia que lhe contem a mais ínfima lorota; tão verificável que uma das maiores angústias do mundo é a de estar num mar de dúvidas, sem o esteio, sem o conforto psicológico que a certeza da verdade traz consigo. Ademais, como destaca o Aquinate em diferentes lugares de sua magnífica obra, a verdade é o bem da alma porque é o fim de sua potência mais elevada, a inteligência — a que lhe permite alcançar, por abstração das qüididades materiais, a essência dos entes.
Pois muito bem: a autopresença estrutural do “eu” — à qual chamamos consciência — é o que nos propicia reconhecer-nos continuamente no tempo, e, por conseguinte, nos dá uma identidade. Reconheço que “eu sou eu” apenas porque a consciência reflete a minha unidade e permanência em meio à abundância de episódios, de eventos e coisas distintas de mim com que ela depara. Agir contra os ditames da consciência é, portanto, agir contra algo fundamental. É agir contra um dos signos distintivos da pessoa (não no sentido maléfico e hipertrofiado com que certas teologias, embebidas de liberalismo, qualificam a pessoa humana, diga-se). É agir contrariando algo importantíssimo da nossa natureza, e tanto é assim que, mesmo quando está em erro, a consciência dita a regra da ação e do pensamento; nas palavras de Santo Tomás, a consciência errônea obriga. Sendo assim, se alguém age, voluntariamente, contra a consciência comete um pecado nada desprezível que, em algum momento, será acusado ou remordido pela própria consciência, a menos que esta esteja absolutamente cauterizada.
Esse breve preâmbulo foi feito apenas para dizer o seguinte, acerca da tão propalada crise diplomática internacional suscitada pela declaração feita por um dos bispos da Fraternidade Sacerdotal São Pio X, D. Richard Williamson, que recentemente deu uma declaração à imprensa na qual negava o (número de 6 milhões de mortes do) holocausto judeu. A propósito, ele já se desculpou ao Papa, publicamente, pela imprudência de ter emitido tal opinião — pelos constrangimentos criados à Santa Sé. Ele já foi também “chamado às falas” pelo próprio superior da Fraternidade, D. Bernard Fellay, que reiterou o seguinte: a autoridade de Williamson é simplesmente nenhuma, nessa matéria. Agora, querem a obrigá-lo a desdizer o que disse, e isto é algo que não se pode tolerar em hipótese alguma, sob o risco de remediar um mal por um meio moralmente ilícito. Nem mesmo os seus superiores da Fraternidade têm autoridade para fazê-lo ir contra a própria consciência; têm autoridade, isto sim, para mandá-lo calar-se (e parece que já o fizeram), mas não a tem para obrigá-lo a emitir um juízo contrário ao que pensa. Nem o Papa nem a Igreja têm essa jurisdição sobre o foro íntimo da consciência das pessoas, embora tenham autoridade magisterial para reprimir, apontar e impor limites e sanções aos erros, ensinar, moldar as consciências à verdade eterna, participada pelo próprio Cristo à Igreja. Em suma, a consciência, embora não seja a raiz da liberdade humana (como querem os liberais), é o seu invólucro, e não nos cabe rasgá-lo a fórceps.
Outra coisa: um mundo que não se contenta com um imediato (e público) pedido de desculpas, como o que foi feito pelo bispo da Fraternidade São Pio X, é um mundo perverso, invertido. Sob a capa do “diálogo”, é na verdade um mundo diabolicamente ditatorial, que quer dominar as pessoas interiormente, controlando as suas consciências. Neste sentido, há uma dose cavalar de hipocrisia, por exemplo, na postura da primeira ministra alemã, Angela Merkel, ao dizer que o pedido de desculpas de Williamson ao Papa e a posterior afirmação do Vaticano de que esta não é a posição da Igreja foram “insuficientes”. Insuficientes para quem e para quê? Na verdade, essa pressão para que o bispo diga algo contrário ao que pensa, pois se não o fizesse seria novamente "excomungado" (como li em alguns jornais e na internet), é absurda por vários motivos: em primeiro lugar, simplesmente porque, como prevê o Código de Direito Canônico, essa opinião de Williamson sobre o holocausto judeu não se enquadra em nenhum dos casos previstos pela Igreja para a pena de excomunhão: profanação das sagradas espécies, violência física contra o Romano Pontífice, consagração ilícita de um bispo sem mandato pontifical, etc. Ou seja: não propicia nem sequer a matéria jurídica para que se aplique a pena de excomunhão. Ademais, que raio de diálogo inter-religioso é este em que, presumivelmente, os membros de uma religião definem e impõem sanções canônicas aos de outra religião? Ora, o Papa, chefe supremo entre nós do Corpo Místico de Cristo, já disse que a opinião de Williamson não é a posição da Igreja, e isto deve bastar. Se não, daqui a pouco aonde vamos parar?
Para encerrar, vale dizer que tudo neste caso está, curiosamente, em oposição radical, em gritante contradição com o “dogma” da intocabilidade da consciência individual (que, conceitualmente, rege o mundo contemporâneo!), "dogma" impresso em vários documentos sobre a dignidade da pessoa humana que vêm sendo veiculados, com espantosa uniformidade de princípios, desde o longínquo ano de 1789, data de publicação da Déclaration des Droits de l’home et du Citoyen. Ué, não se prega nesses verdadeiros púlpitos laicos em forma escrita que a pessoa não pode ser coagida a defraudar a própria consciência, expressando opiniões que lhe sejam contrárias? Vejamos, por exemplo, o que diz o artigo XIX da Declaração Universal dos Direitos Humanos:
“A pessoa tem direito à liberdade de opinião e expressão; este direito inclui a liberdade de, SEM INTERFERÊNCIA, ter opiniões e de procurar, receber e transmitir informações e idéias por quaisquer meios e independentemente de fronteiras”.
Esse “direito” liberal, tão democrático, ao que parece não se aplica ao bispo Williamson.