Há irmãos de sangue,
irmãos políticos e irmãos espirituais. Nos dois últimos casos, a palavra
“irmão” é usada com analogia de atribuição, na qual um mesmo conceito — no
caso, fraternidade (ou irmandade) — é atribuído a coisas distintas a partir de
certa similitude. Como deveria ser evidente para quem tem dois dedos de miolos,
“irmão” não pode ser termo unívoco aplicado a realidades de natureza díspar, e
aqui reside a riqueza da analogia, presente em todas as instâncias da vida
humana, desde os falares coloquiais do povão à ciência mais elevada: como nenhuma linguagem esgota o ser, é
preciso que todas elas se valham de semelhanças e diferenças a partir das quais
a realidade vai crescentemente adquirindo sentido. Se as comparações analógicas não existissem, até hoje o homem não teria
inventado a roda.
Se não caminham juntos,
estes tipos de fraternidade — familiar, política e espiritual — acabam por gerar
frágeis razões de amizade, de identidade e de unidade. A fraternidade meramente
política, por exemplo, produz seitas, ideologias, facções, tiranos, revoluções,
genocidas. A fraternidade meramente sangüínea é a mãe das máfias, do compadrio,
dos favorecimentos ilícitos e de um sentido de lealdade igual ao estabelecido entre
comparsas no crime. Existe aí verdadeira amizade? Não. A menos que usemos a
palavra “amizade” em sentido equívoco, no qual os conceitos referidos à mesma
palavra não guardam entre si nenhuma semelhança.
Ou a amizade política e a amizade sangüínea baseiam-se na
verdadeira fraternidade espiritual — aqui entendida não apenas no sentido religioso,
mas sobretudo noético, de amor à
verdade —, ou acabam um dia por descambar
em horrores de todos os matizes. A cínica fraternidade da Revolução
Francesa, por exemplo, produziu uma igualdade em que os desiguais foram
silenciados na baioneta e na guilhotina, e uma unidade de consciências tão
falsa que logo o Terror mandou para o beleléu os próprios revolucionários. A
fraternidade de famiglias de
imigrantes italianos convulsionou os EUA durante décadas, que o digam Charles
“Lucky” Luciano e, depois, Al Capone. O mesmo se pode dizer do coronelismo das
oligarquias familiares brasileiras e de outros incontáveis exemplos históricos
colhidos da Enciclopédia da Suma Sem-Vergonhice, obra aberta e apátrida.
Como católico do tipo “tradicionalista”,
gente detestada com particular ênfase por católicos da espécie liberal-conservadora,
ao olhar a guerra entre o Hamas e Israel prefiro recorrer à luz do Magistério eclesiástico
e tê-lo como referência para uma tomada de posição, pois se trata “apenas” do
carisma participado por Jesus Cristo para que a Igreja por ele fundada ensinasse
as verdades da fé, cuja sombra benfazeja civilizou o mundo na literatura, na
arquitetura, na filosofia, na teologia, no direito, na ciência, na música, na
política. Ora, não sendo uma vitoriosa aquisição da consciência individual em
suas inquirições acerca da finalidade do universo, do sentido da vida ou da
natureza das coisas, mas uma força espiritual infundida por Deus na consciência
à revelia desta (lembremos aqui da
conversão fulminante de São Paulo, à guisa de exemplo),[1] a fé enraíza na alma do católico novos critérios, novas maneiras de julgar as
coisas e, portanto, de agir.
Em suma, a fé custodiada pela Igreja sempre ensinou que os muçulmanos e os judeus não são irmãos políticos dos católicos, não são irmãos de sangue dos católicos e
não são irmãos espirituais dos
católicos. Os judeus não aceitaram — e continuam a não aceitar — o Messias
anunciado pelos profetas. E os sarracenos, bem... quem quiser informe-se um
pouco acerca deles no livro “Contra sectam Sarracenorum”, do grande abade
Pedro, o Venerável, dê uma lambida no Magistério eclesiástico de sempre e leia
o que sobre eles escreveu um tal de Santo Tomás de Aquino, cuja obra a Igreja
elevou ao patamar de doutrina comum.
Pois bem.
Estabelecida — sempre à
luz da fé custodiada pela Igreja, reiteremos até morrer — a impossibilidade de existir qualquer tipo de
verdadeira irmandade de católicos com judeus ou com muçulmanos, não
obstante possa haver convivência e tolerância, mormente com os judeus, pois socialmente
o islamismo é violentamente impermeável a tudo o que lhe é estranho, isto não
implica a impossibilidade de aquilatar o atual conflito entre Israel e Hamas. Mas
sem nunca perder de vista, é claro, o quão firmemente a Igreja se posicionou,
com São Pio X, Bento XV e Pio XII, contra o sionismo, no tocante ao
estabelecimento de Israel como Estado; sem nunca perder de vista o fato de o
Islã, em qualquer linha, ser inimigo figadal da civilização cristã. Ou melhor:
da civilização em geral, como mostrou genialmente o escritor argentino Rubén
Calderón Bouchet num breve livro intitulado “El Islam, una ideología religiosa”.
O fato inelutável é que o Estado de Israel hoje existe. E
está incrustado no meio de inimigos cujo objetivo é não menos que dizimá-lo,
aniquilá-lo, pulverizá-lo. Quem leu trechos do estatuto do Hamas conhece o caráter
intrinsecamente mau e belicoso desse tipo de fanatismo cuja escala de maldade é
imensurável para o homem ocidental distraído, emasculado, culpavelmente cego,
sem Deus no coração. Homem para cujo lastimável estado espiritual contribuiu de
maneira efetiva a Igreja pós-Vaticano II. Aqui, para ser econômico, cito apenas
o inacreditável beijo ecumênico que João Paulo II deu publicamente no Corão.
Ao contemplar a guerra
acima aludida, o católico sabor “teologia
da libertação” defende o Hamas. A sua idiotice é um bloco granítico
inexpugnável e discutir com ele é tolice. O católico sabor “liberal-conservador” defende Israel valendo-se de argumentos
vários. O problema é que uma defesa e outra geralmente amputam as razões
históricas e principalmente as teológicas — coisa que, por exemplo, São Pio X
tinha de maneira clara em mente ao dizer a Theodor Herzl que os judeus não
tinham nenhum direito sobre a Terra Santa, a qual foi santificada por Cristo e
somente por Cristo.
Os israelenses
provavelmente acabarão por ser culpabilizados pelo mundo ocidental manietado
pela ONU, ficarão politicamente sozinhos e acuados, em vista do fato de se defenderem de um inimigo nefasto em si. Um
inimigo mau em si. Um inimigo da razão. Um inimigo completamente fanático e
violento. Um inimigo que, em nome de “Deus” ou do demônio, não hesita em
sacrificar as suas próprias mulheres e crianças, em vez de protegê-las.
Em tal contexto, dada a atitude religiosa e politicamente nula do
Papa Francisco diante do assassinato em massa, por meios os mais cruéis, de católicos na Síria, no Iraque, no Egito,
etc., assim como os seus atos públicos recentes no
sentido de colocar a cereja do bolo na obra do Concílio Vaticano II — malgrado o árduo trabalho do exército de católicos conservadores, sempre de prontidão para explicar o inexplicável vindo da hierarquia atual da Igreja e desvincular o Concílio de seus frutos mais evidentes —, quem sabe
esta geração ou a próxima veja a conversão dos judeus, prévia ao retorno do
Messias?
Na verdade, só Deus sabe. Mas Ele também nos disse para ficarmos atentos aos sinais dos tempos.
Na verdade, só Deus sabe. Mas Ele também nos disse para ficarmos atentos aos sinais dos tempos.
Seja como for, só quem — estando fora da fé — não acredita no caráter omniabarcante da
Divina Providência pode supor que a Gruta de Belém pegou fogo por “acaso”, logo
após as peripécias recentes do Papa Francisco na Terra Santa. Eu não consigo não ver neste fato e em vários outros epifanias eloqüentes, avisos do céu de que a vaca está a mugir furiosamente no brejo.
Enfim, mais do que
tomar partido de maneira acrítica ou apoiando-se em razões mutiladas, para o
católico a urgência parece-me ser a de redobrar a vigília e a oração, pois o
Dia do Senhor virá de noite, como um ladrão.
Mais ou menos como diz
São Paulo na Epístola aos Tessalonicenses (I, 5, 2).
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1- Antes de tudo, lembremos que as
verdades da fé não são objeto de especulações filosóficas. Não se prova a
Virgindade Perpétua de Maria por meio de lucubrações fulgurantes oriundas da
mais fina lógica, mas se crê nisto (que para a razão é intrinsecamente inescrutável)
por fé! Não se prova por equação
matemática que Cristo é a Segunda Pessoa da Santíssima Trindade, mas se crê
nisto graças à virtude teologal da fé, essa força espiritual vinda do alto.
Falemos de maneira sumária e desagradável para a maioria dos católicos liberais:
a consciência não pode dizer “sim” a
algo que está para além dos conteúdos inteligíveis a que ela mesma pode chegar.
Por isso, quando se afirma que Deus infunde a fé na consciência à revelia desta se está dizendo algo
muito, muito simples: que, pela graça, a consciência passou a aceitar um conjunto
de conteúdos inteligíveis aos quais sequer poderia ter acesso como conclusão de
especulações racionais. A consciência é, pois, iluminada pela fé. Por isso diz Santo Tomás que uma ignorante velhinha
com fé, em certo sentido, sabe mais que Aristóteles...