sexta-feira, 22 de agosto de 2014

Morrer lutando


Sidney Silveira

AGRADEÇO IMENSAMENTE AO lexicógrafo e amigo Sergio Pachá pelos agradáveis momentos de aprendizado que as gravações do curso "A Língua Absolvida", do Instituto Angelicum, me têm proporcionado. 

Graças ao contato mais aprofundado com alguns dos grandes estudiosos da língua portuguesa, como Mário Barreto, Said Ali, Gonçalves Viana, Heráclito Graça, Ramiz Galvão, Mattoso Câmara Jr. e outros mais ou menos desconhecidos, porém todos de importância capital, cada um em sua especialidade (ortógrafos, foneticistas, sintaticistas, filólogos, lexicógrafos, dicionaristas, etnógrafos, etc.), enraíza-se em mim, definitivamente, a visão da gramática como CIÊNCIA AUXILIAR DA LINGUAGEM.

Como ciência codificadora dos fatos da língua, complexos e dinâmicos.

As melhores gramáticas não são um conjunto de regras impermeáveis à plasticidade do idioma por elas estudado; daí não esgotarem a "razão de lei", como diria um escolástico, porque é nota essencial de toda lei o ser proclamada por alguma autoridade — e a nenhum gramático é concedida autoridade para legislar acerca dos fatos da linguagem, para definir o que é certo ou errado de maneira alheia à tradição e às tendências conaturais ao idioma.

A normatividade da gramática é, pois, relativa, visto referir-se a algo que lhe é anterior, cronológica e ontologicamente: a índole mesma da língua. E esta abarca a norma e muitas vezes a quebra da norma, sem que tal desvio consciente deixe de ser absolutamente castiço. Seja em prol da clareza, da precisão, da concisão ou da beleza. 

Se a gramática fosse indiferente a tudo isso, seria letra morta.

A riqueza de qualquer gramática é compreender as tensões intrínsecas da língua. Tensões que se resolvem assintoticamente na abertura de novos caminhos expressivos, numa espécie de espiral que não termina enquanto a língua vive nos falares e na escrita de um povo. 

Por tais motivos, dominar virtuosamente o idioma materno — por exemplo — não é decorar um compêndio interminável de regras pétreas. É penetrar o DNA da língua, freqüentar os seus modelos, compreender os seus distintos registros, saborear a sua história. É ouvir a música própria do idioma, única e irrepetível como uma impressão digital.

Ora, neste momento em que políticos estúpidos e professores charlatães em busca de publicidade querem impor-nos mais uma reforma "ortográfica", é hora de lhes dizer um veemente "NÃO". 

Não, seus mentecaptos, vocês não têm delegação para mexer sequer num jota da língua "em que Camões chorou, no exílio amargo, o gênio sem ventura e o amor sem brilho". 

Desobedecer ao monstrengo que pode ser em breve parido em nosso Senado é dever moral. A coisa, para quem não sabe, já tem mais de 100 mil assinaturas colhidas, sabe Deus como.

É hora de reunir todas as pessoas de bem com conhecimento de causa e que entendem o presente momento anticivilizacional — limítrofe, ostensivamente tirânico. Momento em que os políticos, não satisfeitos com o butim do erário público pelo qual lesam a nação, querem tirar dela até o idioma, servindo-se para tanto de idiotas úteis em busca de glórias mesquinhas e, provavelmente, também do vil metal.

Ainda existimos em português. Não deixemos essa gente ordinária destruir o que não lhe pertence. 

Editores, escritores, jornalistas e professores, organizem-se! Realizem colóquios com pessoas especializadas, de notório saber, para pulverizar com argumentos irrefutáveis mais esta palhaçada perpetrada por quem não tem o menor senso cívico. Não fiquem com o rabo comodamente refestelado em seus locais de trabalho, em suas casas. 

Independentemente de simpatias ou antipatias políticas, da preferência por este ou aquele gramático sério,  mexam-se enquanto é tempo. 

Ou vamos perder a luta sem mover um dedo.