Sidney
Silveira
Compor e dividir
raciocínios — que é o modo propriamente humano de inteligir — traz consigo, em
estado germinal, a capacidade de prever alguns eventos. Não por outro motivo a ciência, ao estabelecer-se como
vitoriosa inquirição da verdade nalgum tópico de um campo de pesquisa, dá-nos a presciência de certos fatos
futuros. Assim, quem conhece o Princípio de Arquimedes, famoso pela fórmula
I = gVp, é capaz de antever, por
exemplo, os movimentos de determinado corpo imerso n’água, considerando-se a
massa e o volume do corpo, a densidade do fluido, a força de impulsão, a
aceleração da gravidade, entre outros fatores cujo influxo causal esteja devidamente
considerado no cálculo.
À luz deste caráter
raciocinante da inteligência do homem, podemos dizer o seguinte:
> Futuro NECESSÁRIO é o que se infere do pleno conhecimento de
causas essencialmente ordenadas.
> Futuro CONJECTURAL é quando as causas apontam predominantemente
para um vetor, porém sem se fechar de todo a outras possibilidades.
> Futuro LIVRE é o que radica nas escolhas humanas.
O primeiro é próprio das
ciências axiomáticas, que estatuem normas universais a partir de elevados graus
de abstração; o segundo, das ciências empírico-esquemáticas, assim como das
chamadas "ciências humanas"; o terceiro é contingente e
incerto ao ponto de não ser decifrado por nenhuma ciência, porque lida com a radical imponderabilidade da vontade no exercício dos seus
atos livres. É, portanto, possível prever o movimento de um corpo
imerso num fluido líquido ou gasoso, mas não se um menino de quatro anos será
jogador de futebol ou engenheiro; se escolherá isto ou aquilo a determinada
altura de sua trajetória existencial.
Com relação ao que aqui chamamos
de “futuro livre”, afirme-se: nem mesmo uma inteligência intuitiva, que chegasse
à verdade sem passar pelos escolhos do plano sensitivo, ou seja, sem abstrair
os conceitos das notas individuantes da matéria, poderia prever os futuros
contingentes, não obstante pudesse ter deles notável estimativa — pois quanto
mais universal é a causa conhecida, e quanto mais perfeito é o modo de
inteligir, maior número de efeitos o sujeito cognoscente vislumbra. Por isso
diz Santo Tomás que o demônio,
entidade espiritual que está na posse de elevadíssimas espécies inteligíveis, não pode conhecer os futuros provenientes
de causas absolutamente acidentais, embora tenha capacidade dedutiva e
indutiva de deixar qualquer lógico de quatro, a mastigar alfafa.
Só Deus, cuja
inteligência causa o ser dos entes, pode dizer “Eureca!” com relação ao que
poderia ser ou não ser.
Pois muito bem. Quanto ao futuro de uma nação, a certeza
possível será sempre de natureza conjectural, numa escala que pode ir da abstrusa opinião contrária às evidências históricas à probabilidade mais
elevada e argutamente vislumbrada, em meio a variantes de difícil interpretação.
No caso brasileiro, uma análise básica dos elementos educacionais, sociais,
morais, econômicos e políticos contemporâneos nos capacita a conjecturar o
seguinte: se a curto ou médio prazo não emergir uma merda ainda mais fenomenal do
que a convulsão coletiva vigente, geradora de cinqüenta mil assassinatos por
ano, é porque ou um poderoso e inusitado elemento entrou em cena, de maneira
abrupta e avassaladora, ou um milagre se deu.
Ora, não é necessário
ter luzes proféticas para saber que Macunaíma, o herói sem nenhum caráter, fenótipo
literário do “homo brasilianus modernus”, não pode virar Aristóteles num passe
de mágica, a menos que desenvolvesse faculdades metapsíquicas nunca antes vistas
em wonderland; que o caos não é dotado de potências intrínsecas,
nem inclinação natural, para a ordem; que a cupidez imoralista dos nossos
parlamentares e dos homens do Poder Executivo em geral, expressão eloqüente da corrupção média oriunda do atávico
"jeitinho" brasileiro, não se transmutará em altruísmo — como se num
belo dia cada senador, cada deputado, cada vereador, cada prefeito, cada
governador virasse um Péricles, um Carlos Magno, um São Luís de França ou
qualquer outro personagem político imbuído de elevado sentido do bem comum.
“Ex nihilo nihil fit”.
Seja como for, para o
que interessa apontar neste breve texto, chamo “conjectura infernal” não àquela
que acerta na previsão de fatos potencialmente contidos na massa pluriforme e
indomável em que se transformou a sociedade brasileira. Mas àquela que,
contemplando a realidade, conclui adocicada ou estupidamente com o espírito do
Dr. Pangloss, de Pollyana ou do insuportável Fernão Capelo Gaivota.
Quem faz isso é gente acometida duma cegueira mais ou menos voluntária. Gente que ri o riso fátuo das almas automutiladas.
A tais pessoas poderíamos dizer: desventurosos os que não choram, quando deveriam chorar,
porque não terão nem mesmo a verdade
como consolo.