"A lógica deve ser estudada para a filosofia, ou seja, para pensar-se com adequação ao real. A lógica estudada por si mesma só forma charlatães ou o pior dentro deste gênero: ideólogos".
Pe. Álvaro Calderón
("Los Umbrales de la Filosofía")
Sidney Silveira
Se o sujeito não conhece
a diferença entre razão e inteligência,
e mesmo assim pretende embrenhar-se nos problemas de lógica, chegando a
pontificar a respeito deles como se fosse o Papa a ensinar as verdades da fé do
alto de sua cátedra romana, o mínimo que podemos dizer dele deve soar como
benevolente elogio: trata-se de um consumado boçal. Seria como alguém querer
compor uma sinfonia sem conhecer o dó-ré-mi-fá-sol-lá-si — e isto denota, a um
só tempo, elevado grau de obtusidade e uma pretensão que raia os píncaros da
soberba. Acontece corriqueiramente com pessoas vocacionadas ao horizonte
asnático das pedagogias feitas de encomenda para impedir que a inteligência
realize a operação que lhe é própria: chegar à região dos conceitos universais,
compondo e dividindo raciocínios.
O intelecto humano é três coisas: antes de tudo, potência para os inteligíveis; depois, forma imaterial da realidade entendida;
por fim, operação, que é o ato de
entender propriamente dito.[1] O nome dado por Tomás de Aquino ao ápice dessa operação interior da alma
intelectiva é verbo, ponto de
tangência por meio do qual a nossa inteligência escarafuncha a realidade
naquilo que ela tem de propriamente inteligível. O verbo está para a
inteligência assim como o caminhar está para as pernas, ou como o ato está para
a potência. Seja como for, porque o homem não pode expressar todos os conceitos que
extrai da realidade com um só verbo perfeitíssimo que os abarcasse a todos
(pois neste caso seria Deus, cujo Verbo único esgota toda a inteligibilidade
das coisas e todas as operações da ordem do ser), ele precisa servir-se de
muitos verbos imperfeitos,[2] pelos quais expressa o que apreende por diferentes atos da inteligência e
atribui predicados às coisas.
Em resumidas contas, a nossa inteligência é imaterial do começo
ao fim: na radical potência para os inteligíveis, que a constitui; na
assimilação da forma entendida; e no ato mesmo de entender, cujo núcleo é o
verbo. Neste contexto, vale dizer que a
inteligência não se identifica com o cérebro nem com os neurônios, pois
estes são o substrato de que ela se vale instrumentalmente para alcançar o seu
ato próprio. Materialistas e imanentistas de todos os matizes têm enorme
dificuldade de compreender isto porque lhes falta o domínio dos conceitos de
ato e potência, e não raro identificam a atividade da inteligência com funções neuropsíquicas — por meio das quais ela, entre outras coisas, se torna apta a resolver problemas com algoritmos. É quase impossível que vejam algo óbvio para um metafísico: pensar não é entender, raciocinar não é
inteligir, entrar na posse duma verdade qualquer não é ato radicado na matéria. Neste contexto, sejamos breves: a razão é o meio de que se vale a inteligência humana para
identificar-se formalmente com o ser.
Embora a razão seja o modo próprio de atuar da inteligência humana, ambos não se confundem. Por este motivo, nem todo raciocínio
conduz à inteligência do real, visto ser possível racionar bem e concluir
mal. Voltemos ao Aquinate, que esclarece a questão com meridiana clareza: inteligir
é o ato de apreender a verdade inteligível; raciocinar é passar de um tópico a outro, com o intuito de chegar a inteligir.[3] Daqui podemos muito bem inferir que entender é o fruto maduro de uma razão que
opera retamente. Não entremos na distinção tomista entre “razão superior”
e “razão inferior”, pois para o esclarecimento que temos em vista basta
assinalarmos a subsidiaridade da razão com relação à inteligência. [4]
Digamos por fim o
seguinte: a lógica é ciência auxiliar, subalterna, na medida em que está a
serviço de todas as demais. Trata-se da arte
do bem raciocinar, mas que também não se confunde formalmente com o
raciocínio, pois há raciocínios verdadeiramente ilógicos, ou seja, mal
ordenados em suas premissas. A lógica é, pois, um ponto de apoio da razão para
que labore sem grandes impedimentos, mas jamais percamos de vista que não cabe à
lógica abstrair os conceitos, chegar ao verbo mental, ao conceito universal, pois este é o papel razão, servindo-se da lógica. Em suma, a inteligência humana é essencialmente abstrativa, e o meio dessa abstração é racional.
Noutras palavras: o
homem intelige a realidade raciocinando ordenadamente. A partir desta imagem, podemos refazer todo o quadro dos três conceitos elementares aqui implicados,
para ter a noção da funcionalidade teleológica entre eles, ou seja, verificar
como um está em função de outro:
> a lógica ordena-se à razão;
> a razão ordena-se à inteligência; e
> a inteligência ordena-se ao ser, que provém de Deus.
Com relação a esta
proveniência metafísica (a saber: dos entes em relação ao Próprio Ser, que é
Deus), vale escrever outro breve texto. Por ora fiquemos com a elementar distinção entre inteligência, razão e lógica — na falta da qual muitas
vocações filosóficas perderam-se funestamente.
Ao passo que a
metafísica, malgrado os seus detratores, continua de pé, iluminando inteligências.
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1- Cfme.
Tomás de Aquino, Comentário ao Prólogo de João, Cap. I,
Lectio I, n.25.
2- Cfme.
Tomás de Aquino, Comentário ao Prólogo de João, Cap. I,
Lectio I, n.27.
3- Cfme. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q.29, a. 3, ad.4).
4- Aqui não está em tela a inteligência que é
potência para os inteligíveis, porém sem raciocinar, visto que é intuitiva (a dos Anjos); nem a Inteligência pura, da qual procedem todos os
inteligíveis (a de Deus).