quinta-feira, 3 de abril de 2014

Inteligência, razão, lógica


"A lógica deve ser estudada para a filosofia, ou seja, para pensar-se com adequação ao real. A lógica estudada por si mesma só forma charlatães ou o pior dentro deste gênero: ideólogos".
Pe. Álvaro Calderón
("Los Umbrales de la Filosofía")
Sidney Silveira
Se o sujeito não conhece a diferença entre razão e inteligência, e mesmo assim pretende embrenhar-se nos problemas de lógica, chegando a pontificar a respeito deles como se fosse o Papa a ensinar as verdades da fé do alto de sua cátedra romana, o mínimo que podemos dizer dele deve soar como benevolente elogio: trata-se de um consumado boçal. Seria como alguém querer compor uma sinfonia sem conhecer o dó-ré-mi-fá-sol-lá-si — e isto denota, a um só tempo, elevado grau de obtusidade e uma pretensão que raia os píncaros da soberba. Acontece corriqueiramente com pessoas vocacionadas ao horizonte asnático das pedagogias feitas de encomenda para impedir que a inteligência realize a operação que lhe é própria: chegar à região dos conceitos universais, compondo e dividindo raciocínios.
O intelecto humano é três coisas: antes de tudo, potência para os inteligíveis; depois, forma imaterial da realidade entendida; por fim, operação, que é o ato de entender propriamente dito.[1] O nome dado por Tomás de Aquino ao ápice dessa operação interior da alma intelectiva é verbo, ponto de tangência por meio do qual a nossa inteligência escarafuncha a realidade naquilo que ela tem de propriamente inteligível. O verbo está para a inteligência assim como o caminhar está para as pernas, ou como o ato está para a potência. Seja como for, porque o homem não pode expressar todos os conceitos que extrai da realidade com um só verbo perfeitíssimo que os abarcasse a todos (pois neste caso seria Deus, cujo Verbo único esgota toda a inteligibilidade das coisas e todas as operações da ordem do ser), ele precisa servir-se de muitos verbos imperfeitos,[2] pelos quais expressa o que apreende por diferentes atos da inteligência e atribui predicados às coisas.
Em resumidas contas, a nossa inteligência é imaterial do começo ao fim: na radical potência para os inteligíveis, que a constitui; na assimilação da forma entendida; e no ato mesmo de entender, cujo núcleo é o verbo. Neste contexto, vale dizer que a inteligência não se identifica com o cérebro nem com os neurônios, pois estes são o substrato de que ela se vale instrumentalmente para alcançar o seu ato próprio. Materialistas e imanentistas de todos os matizes têm enorme dificuldade de compreender isto porque lhes falta o domínio dos conceitos de ato e potência, e não raro identificam a atividade da inteligência com funções neuropsíquicas — por meio das quais ela, entre outras coisas, se torna apta a resolver problemas com algoritmos. É quase impossível que vejam algo óbvio para um metafísico: pensar não é entender, raciocinar não é inteligir, entrar na posse duma verdade qualquer não é ato radicado na matéria. Neste contexto, sejamos breves: a razão é o meio de que se vale a inteligência humana para identificar-se formalmente com o ser.
Embora a razão seja o modo próprio de atuar da inteligência humana, ambos não se confundem. Por este motivo, nem todo raciocínio conduz à inteligência do real, visto ser possível racionar bem e concluir mal. Voltemos ao Aquinate, que esclarece a questão com meridiana clareza: inteligir é o ato de apreender a verdade inteligível; raciocinar é passar de um tópico a outro, com o intuito de chegar a inteligir.[3] Daqui podemos muito bem inferir que entender é o fruto maduro de uma razão que opera retamente. Não entremos na distinção tomista entre “razão superior” e “razão inferior”, pois para o esclarecimento que temos em vista basta assinalarmos a subsidiaridade da razão com relação à inteligência.[4]
Digamos por fim o seguinte: a lógica é ciência auxiliar, subalterna, na medida em que está a serviço de todas as demais. Trata-se da arte do bem raciocinar, mas que também não se confunde formalmente com o raciocínio, pois há raciocínios verdadeiramente ilógicos, ou seja, mal ordenados em suas premissas. A lógica é, pois, um ponto de apoio da razão para que labore sem grandes impedimentos, mas jamais percamos de vista que não cabe à lógica abstrair os conceitos, chegar ao verbo mental, ao conceito universal, pois este é o papel razão, servindo-se da lógica. Em suma, a inteligência humana é essencialmente abstrativa, e o meio dessa abstração é racional.
Noutras palavras: o homem intelige a realidade raciocinando ordenadamente. A partir desta imagem, podemos refazer todo o quadro dos três conceitos elementares aqui implicados, para ter a noção da funcionalidade teleológica entre eles, ou seja, verificar como um está em função de outro:
>  a lógica ordena-se à razão;
>  a razão ordena-se à inteligência; e
>  a inteligência ordena-se ao ser, que provém de Deus.
Com relação a esta proveniência metafísica (a saber: dos entes em relação ao Próprio Ser, que é Deus), vale escrever outro breve texto. Por ora fiquemos com a elementar distinção entre inteligência, razão e lógica — na falta da qual muitas vocações filosóficas perderam-se funestamente.
Ao passo que a metafísica, malgrado os seus detratores, continua de pé, iluminando inteligências.
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1- Cfme. Tomás de Aquino, Comentário ao Prólogo de João, Cap. I, Lectio I, n.25.
2- Cfme. Tomás de Aquino, Comentário ao Prólogo de João, Cap. I, Lectio I, n.27.
3- Cfme. Tomás de Aquino, Suma Teológica, I, q.29, a. 3, ad.4).
4- Aqui não está em tela a inteligência que é potência para os inteligíveis, porém sem raciocinar, visto que é intuitiva (a dos Anjos); nem a Inteligência pura, da qual procedem todos os inteligíveis (a de Deus).